“A nova geração quer trabalhar sem adoecer”, diz especialista

por Maria Luísa Bassan

“Era como ir ao meu próprio enterro todo dia”. Sentada de frente a uma janela com vista para o mar, em João Pessoa (PB), é assim que a logoterapeuta Katia Miyazono descreve seus últimos anos em uma empresa de consultoria na área de recursos humanos, quando morava em São Paulo (SP). Na volta da licença-maternidade depois do nascimento do terceiro filho, ela passou a lidar com situações cada vez mais estressantes dentro do ambiente de trabalho.

“Meu chefe imediato era centralizador, agressivo e chegava a cometer assédio moral”, compartilha. Ele já abriu chamadas pelo Skype na sua frente e exigia que ela as atendesse enquanto estava em ligação com clientes, de forma a direcionar suas respostas nas conversas. As cobranças só aumentavam. 

A partir daí veio uma cascata de problemas. Primeiro, surgiram problemas no estômago e síndrome do intestino irritável. Depois, teve uma hérnia de disco por causa da tensão acumulada na coluna. “Cheguei a desenvolver psoríase [doença crônica caracterizada por manchas avermelhadas na pele], mas nunca pensei que isso estivesse associado ao trabalho”, diz Khatia. 

Então, veio o pico dramático: um dia, chegou na empresa e, ao sentar em sua mesa de trabalho, começou a sentir falta de ar. O desespero tomou conta. Sentiu a metade direita de seu corpo adormecer. Katia pensou: “estou tendo um AVC. Acho que vou morrer”. Ela passou com um cardiologista, que descartou qualquer problema específico no coração, e após uma rodada de consultas com especialistas variados, veio o diagnóstico: síndrome de burnout.

Mais que um termo em alta, o burnout é uma condição diretamente ligada ao ambiente de trabalho. O reconhecimento dessa relação é recente: em janeiro de 2022, a Síndrome de Burnout foi apontada na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11) como um transtorno ocupacional, ou seja, reúne um conjunto de sintomas – sejam físicos, psíquicos ou emocionais – relacionados ao estresse contínuo no ambiente de trabalho.

Kelly Freitas, psicóloga clínica especializada em ansiedade, depressão e burnout, explica que a síndrome envolve três dimensões clássicas: o esgotamento físico e mental, a eficácia reduzida e o distanciamento de seus pares. “O indivíduo passa a não se reconhecer no ambiente de trabalho, sem uma conexão com a empresa e com as pessoas da equipe”, afirma a especialista que mantém um site com reflexões sobre o problema.

O burnout, portanto, é uma síndrome psicossocial. Para Kelly, ela tem raízes na cultura atual do trabalho, conhecida como “hustle culture” – “aquele sangue no olho”, segundo a psicóloga.

A “hustle culture” (cultura da agitação, em tradução livre) enaltece o trabalho como centro da vida do indivíduo. Há incentivos para horas incontáveis de dedicação, incluindo finais de semana e feriados. Os adeptos desse estilo de vida destacam a produtividade, o desempenho e o esforço constantes – relacionados sempre ao trabalho.

Em 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgaram um estudo mostrando que, em 2016, cerca de 750 mil pessoas morreram de doença cardíaca e derrame devido às longas jornadas de trabalho. A jornada de trabalho acima de 55 horas semanais é considerada um dos fatores de risco para o desenvolvimento de tais problemas de saúde.

O salário na casa dos 20 mil reais mensais e o medo das críticas por não conseguir entregar as demandas eram alguns dos fatores que fizeram Katia seguir no emprego por certo tempo, trabalhando inclusive de uma cama de hospital em uma de suas crises de dor. Hoje, empreendendo em João Pessoa, ela vê que tomou a decisão certa em sair do trabalho e mudar de estado, pois “nenhum emprego vale a pena se coloca em risco minha saúde e a relação com a minha família”.

Segundo dados da International Stress Management Association (Isma-BR) de 2019, 1 a cada 3 brasileiros sofre com sintomas de burnout – cerca de 32% da população economicamente ativa. 

Além disso, o cenário atual do país traz um ponto ainda mais delicado quanto ao relacionamento com o trabalho: o desemprego. O medo de perder o posto – a taxa de desocupação bateu 8,9% no início do segundo semestre de 2022, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – pode contribuir para o adoecimento do trabalhador. “A pessoa pode ultrapassar limites para garantir o seu emprego diante de um cenário precário de trabalho”, diz Kelly Freitas.

 
 
 
 
 
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Na contramão

Em alta nas redes sociais, o termo “quiet quitting” (demissão silenciosa, em tradução livre), evidenciou uma outra relação com o trabalho por parte das gerações mais novas – em especial entre os 20 e 30 anos. O paralelo com a demissão ou um eventual corpo mole é impreciso. Em contraponto com a “hustle culture”, o comportamento sugere fazer apenas o mínimo a que foi contratado para fazer. O trabalho passa a ter um limite claro na vida do indivíduo. A frase “trabalhe enquanto eles dormem” soa cada vez mais ultrapassada.

Em seu trabalho atual como logoterapeuta e orientadora de carreira, Katia Miyazono percebe que a nova geração tem um perfil diferente de quando era jovem: casam e têm filhos mais tarde (ou nem pensam no assunto), e possuem mais coragem para bancar decisões. No ambiente de trabalho, ela vê que a mudança é clara e necessária: se os chefes não mudarem a forma de lidarem com os funcionários, o conflito entre as gerações trará problemas não só relacionados à debandada de trabalhadores, mas também processos trabalhistas.

Kelly Freitas analisa o contexto de forma parecida. “A nova geração quer ser reconhecida pelo trabalho, mas também colocar um limite no espaço que ele ocupa em sua vida”. Segundo a psicóloga, quando os empresários passam a ver os funcionários apenas pelo resultado que apresentam em suas funções, não se cria empatia nem a possibilidade do trabalhador desenvolver seu potencial e sentir-se parte da empresa. 

Ela completa apontando a importância do trabalho em nossas vidas. É por meio dele que o indivíduo pode reconhecer e identificar seu potencial de mudanças. A nova geração sabe desse papel. “Ela não almeja ser ‘demitida’, como mostra esse novo termo. O que a nova geração quer é trabalhar sem adoecer”, completa.

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