A gente aprende desde cedo que o Brasil é um país miscigenado, fruto da colonização portuguesa e com uma cultura que mescla as influências europeias, africanas e indígenas. Mas esse conhecimento não vale de nada sem compreender o peso dessa influência. Os saberes indígenas foram e são essenciais na alimentação e medicina mundial.
Histórico
Existe um meme na internet que divide a Europa entre a parte das batatas e a parte dos tomates. Afinal, o que seria da Inglaterra sem o seu fish and chips ou da Itália sem um molho pomodoro? Acontece que nenhum desses ingredientes é endêmico da região. Na realidade, elas são plantas americanas, levadas pelos europeus durante momentos de crise e de fome.
O doutor Nelson Sanjad, historiador da ciência e pesquisador no Museu Paraense Emílio Goeldi, comenta que, no contexto das grandes navegações, existiam pessoas responsáveis por catalogar a flora nativa e seus usos, assim como a fauna, a geografia e a cultura locais. “Os jesuítas foram pioneiros por catalogar a fauna e a flora na América do Sul, na América Central e até na Ásia. Eles estavam fazendo um ‘inventário do mundo’”.
Afinal, a busca pelo “novo mundo” tinha alto interesse financeiro envolvido, além do caráter científico do “descobrimento”. Era papel desses atores entender as técnicas de manejo, uso culinário, medicinal e até ritualístico que diferentes plantas tinham para os povos a fim de assimilar o que eles julgassem útil.
Esse julgamento, inclusive, ajudou a definir o que seria incentivado e o que seria demonizado. Foi assim que o uso de entorpecentes de uso ritualístico como a ayahuasca e a coca foi tão condenado, pela relação com a espiritualidade dos povos. O grande ponto fora da curva foi o tabaco que, de tão valorizado, se tornou commodity pelo seu valor agregado, mas em troca disso o que aconteceu foi o esvaziamento de seu significado.
O advogado Konstantin Gerber pesquisou no doutorado o uso tradicional e contemporâneo de plantas ritualísticas, bem como suas regulamentações. Sobre a questão do tabaco, ele traça um paralelo entre a popularidade dele em oposição à ayahuasca. Inicialmente, o uso dos dois aparece muito intrinsecamente. A cerimônia da ayahuasca, comenta, é feita a partir de um mix de ervas, com receitas tradicionais para cada povo. Contudo, uma planta que marca presença constante é o tabaco, muitas vezes na forma de rapé, complementando a ritualística.
Enquanto a ayahuasca é marginalizada, o tabaco caiu no gosto popular como fumo. “O tabaco, em contexto de rituais, também era perseguido pela inquisição”, comenta Gerber. Mas ele acabou se tornando produto comercializado e globalizado pelas navegações. “O tabaco, ainda que não tenha sido proibido, tem uma total descaracterização (no cigarro) do uso tradicional. E isso é uma violação do patrimônio cultural indígena”. Um esvaziamento tão forte que hoje pouco lembra a origem americana do tabaco ou de suas propriedades medicinais.
Atualmente
Por outro lado, nem tudo é esvaziamento. No Paraguai, por exemplo, a cultura guarani se sobressai na região mesmo tendo havido diversas tentativas da colônia de apagá-la. “A língua guarani segue sendo falada nas casas. A cultura guarani está no nosso sangue”, afirma a professora do Instituto Superior Ateneo De Lengua y Cultura Guarani, Porfírio Orrego Invernizzi.
Lá, as plantas medicinais e a “medicina alternativa”, como é chamada, são comuns e populares. O conhecimento tradicional se popularizou, chegou às cidades. Algumas plantas, que sequer tinham uma tradução do nome para o espanhol, são vendidas em mercados. Invernizzi comenta que não é difícil descobrir por lá o que tomar para cada mazela e os métodos para manejar essas ervas.
As propriedades das plantas seguem sendo discutidas em esfera global. No campo da alimentação, os alimentos encontram novos modos para serem comercializados, com pouco ou nenhum retorno para as comunidades indígenas. O açaí, por exemplo, já é um produto exportado e consumido Europa afora. Ainda assim, a produção segue regional, o que não pode ser dito também da indústria farmacêutica.
A ciência e a farmacologia já avançaram a ponto de não precisarem mais das ervas em si para conseguir o princípio ativo para um remédio. O que geralmente acontece é que esse composto é isolado e reconstruído em laboratório. Ou seja, a pesquisa feita a partir dessas plantas exige muito menos da matéria-prima.
No papel, existem leis internacionais para proteger as comunidades tradicionais. Gerber explica que o Protocolo de Nagoia, acordo internacional a partir da Convenção de Diversidade Biológica, engloba uma repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos dos conhecimentos tradicionais. Isso significa que os portadores desse conhecimento têm direito aos recursos e às tecnologias derivados de seus saberes. No Brasil, esse acordo é implementado a partir da Lei da Biodiversidade. “O desafio agora é instituir protocolos comunitários para que exista essa repartição de benefícios”, afirma o advogado.
E, além da defesa legal, as comunidades indígenas também batalham para divulgar a potência e a importância da cosmovisão desses povos. Não é apenas sobre o conhecimento utilitarista da planta, mas de como cultivá-la e compreender a relação dela com o corpo, com o espírito e com a natureza.
Txha é indígena da região de Porto Seguro, na Bahia. Atualmente, ela é dona de um restaurante em São Paulo, mas é evidente como a sua relação com suas raízes e com a natureza não se perdeu. Com diversos vasos espalhados e um colar de sementes de açaí e o coquinho do dendê, ela conta que o contato e cultivo da terra sempre foi muito presente em sua vida. “Tudo a gente aproveita, tudo é vida. Você pode utilizar, você pode vestir. Se por acaso eu me perder numa mata, eu vou saber me alimentar porque eu sei ali o que eu não posso comer.”
Raquel Tupinambá, acadêmica, ativista e agricultora, complementa sobre a relação do seu povo com as plantas e a natureza. “O que nós, povos indígenas, fazemos no território é a mais pura e avançada ciência.” Ela traz o exemplo da mandioca, objeto de estudo de seu mestrado, e como as comunidades indígenas encontraram tecnologias para aproveitar e reaproveitar uma planta tóxica de modo seguro para consumo, com processos para diferentes usos e seleção de espécies com menores taxas de toxina.
Mas o que acontece com esse saber é que, mais do que esvaziamento, os povos indígenas muitas vezes sequer são consultados sobre a divulgação deles. Raquel comenta que alguns preparos são sagrados e não devem ser de conhecimento geral. Cada etnia tem sua cultura, e o uso desses saberes não pode perpassar o que é considerado correto para eles. É necessário, sim, que os saberes indígenas possam contribuir com a ciência moderna, mas também não se pode deixar de consultá-los e tomar a palavra deles como final.
E é uma ciência que vai além do tratamento da planta. Também diz respeito ao manejo com a terra e à relação com a natureza. É uma relação de troca entre o povo e a floresta, e entender o indígena como guardião desse conhecimento é também proteger a natureza. Validar sua experiência, compreender essa troca com a terra, do povo que está e esteve presente nela. E aprender com essa cosmovisão não é apenas uma questão social, mas de justiça climática com consequências globais.
Colaboração: Instituto IEPE