Omeros: Cantando os Ecos do Atlântico

“É assim que, numa manhã, cortamos os cedros em canoas”. As árvores, pilares dos antigos deuses, vão ao chão e, em seu lugar, uma pergunta emerge das ondas: o que é que nos define? Qual é a essência latino-americana? Nossa língua, nosso continente… ou algo a mais?

A resposta se esconde atrás das praias caribenhas de Santa Lúcia. Os cedros, antes que contem o que sabem, se tornam canoas, feitas por dois jovens pescadores: Aquiles e Heitor.

Omeros, o épico de Derek Walcott, abre com essa cena quase mitológica e nos causa, já de cara, um estranhamento. Esses pescadores são reencarnações dos heróis gregos? São o símbolo de uma guerra? Sem uma resposta clara, os personagens do poema seguem a busca central de qualquer nação latino-americana: reencontrar sua identidade.

A dupla vive uma vida tradicional na ilha, pescando para sobreviver, se divertindo nas rodas de conversa e despistando os turistas. Mesmo sem saber a origem de seus nomes, carregam consigo um peso antigo, histórico. Como se uma dor aguda os afligisse, sem que soubessem descrevê-la. 

A obra versa sobre essas várias camadas de apagamento, ocorridas num só lugar. Desde as divindades-árvores dos Aruacas e Caribes, até a “constelação apagada pela travessia” dos negros escravizados, arrastados para o Novo Mundo. Santa Lúcia, apesar de ter sido colônia inglesa, carrega a mesma herança que qualquer outra nação latino-americana. 

Como contar algo tão complexo, tão doído? O próprio autor não sabe por onde começar, então puxa tudo para dentro: os gregos, ingleses, africanos, indígenas, passado, presente e até si mesmo. Em uma cena, narra as batalhas em Tróia. Na outra, reencontra-se com o fantasma de seu pai, com quem caminha por sua terra natal.

O autor constrói um mundo denso, pesado, mas que não deixa de ser lindo. Omeros é um poema sutil, humano, que a todo tempo questiona suas próprias intenções: afinal, que há em comum entre Grécia e Caribe? Há, em todos os versos, muito amor pela ilha e um desejo de contar sua história como os grandes poetas do passado, como Homero. Ainda que comece confuso, agitado, há algo nele esperando para ser desvendado. 

O estilo pós-moderno brilha nos versos, misturando visões etéreas da natureza com Coca-Colas, Bob Marley e Land Rovers. Nessa disputa entre tradição e modernidade, um britânico entra em cena. Major Plunkett, enquanto dirige uma Rover, relembra a Batalha dos Santos em que ingleses e franceses disputavam o controle da ilha, apelidada de “A Helena das Antílhas”.

Helena. Poucos nomes moveram o mundo como esse. Em Omeros, a imagem da princesa de Tróia assombra duas outras figuras: a própria ilha e a garçonete de um resort, outra Helena. Disputada por Aquiles e Heitor, a moça é o motor da narrativa, mas parece flutuar acima de qualquer conflito.

Por ela, Aquiles corta Heitor com uma espada. Por ela, Heitor decide comprar uma van e abandonar a vida tradicional de pescador. A rivalidade entre os dois começa a amplificar os ecos da história, revelando um grande buraco na cultura latino-americana.

De onde viemos, nesse mundo?

Conhecemos os detalhes da Ilíada, o cavalo de Tróia, o calcanhar de Aquiles. Mas onde está o épico africano? Transmitido por cultura oral, arrancado dos negros escravizados vindos ao Novo Mundo. Não só os épicos, como tudo: cultura, família, nome. Também perdidos estão os épicos indígenas – as lendas de um mundo enterradas, as lendas de outro esquecidas do outro lado do Atlântico.

Dois negros pescadores chamam-se Aquiles e Heitor, mas de onde esses nomes vêm? Aquiles, desolado com a perda de sua Helena, navega em mar aberto até desmaiar. Acorda em um rio muito antigo, familiar.

Afolabe, seu ancestral, pergunta seu verdadeiro nome. Aquiles não sabe responder. Mas a sutileza do verso de Walcott carrega toda a importância desse momento, um reencontro impossível com nossas raízes. Para o autor, para Aquiles, para Santa Lúcia, para a América. Ali, num passado distante, o herói vê os costumes que carrega em sua rotina, danças e cerimônias que sempre fez sem saber bem o por quê. A miragem cessa, mas transforma o jovem pescador.  

As dezenas de camadas que se sobrepõem durante todo o épico começam a se aquietar. As perguntas sem resposta: “Por que o livro chama Omeros? Por que são gregos, os pescadores?” perdem importância, substituídas pelas andorinhas e lagartos. O poeta narra tempestades regidas por Zeus e Ogun, numa terra que não é nem Europa nem África, nem Aruaque.

Nesse vazio de resposta, porém, surge algo de novo. Sem negar a herança paradoxal de nossa história, Walcott parece ganhar coragem para cantar um épico, não grego, mas caribenho. E, como todo bom épico, traz consigo a tragédia. 

Walcott é personagem e autor de Omeros, incapazes de se distanciar da história de sua terra natal.

Nunca deixando escapar de vista sua própria relação com o lugar, o poeta narra um mundo em transformação. Para Heitor, a vida moderna o deixa incompleto. Mesmo tendo conquistado Helena, vê seu rival Aquiles encontrar paz de espírito, reconectando-se com sua herança ancestral. 

A narrativa vai aos poucos abandonando as metáforas e comparações, se libertando de definições exatas. Não sendo possível descrever em palavras a experiência latin0-americana, o poeta a faz sentir em emoções. Sabemos quem somos e sentimos quando algo nosso começa a mudar. Os turistas, fotografando a vida pacata de Aquiles, são o símbolo dessa nova colonização, uma reconquista de Helena.  

Algo, porém, une não só os latino-americano, como os humanos: o mar. A cada onda que se quebra na costa da Santa Lúcia, um novo épico é reescrito. O mar reconstrói sua história diariamente, permitindo sempre um recomeço melhor.  Os ecos do Velho Mundo ressoam sobre as montanhas da “ilha com chifres”, mas, em contato com nossas origens, servem também como resistência para novos apagamentos.

As feridas abertas, que os personagens não conseguem descrever, vão aos poucos se fechando. Helena pode ser uma metáfora para a ilha, para o colonialismo, para Tróia… mas também pode ser apenas uma moça, uma jovem tentando sobreviver. Depois das páginas densas, confusas, duras e poderosas, o livro termina de forma clara e sutil:

“Nós vamos nos curar.”

Omeros
Poesia Épica
Derek Walcott
1990
440 páginas
Companhia das Letras
Tradução: Paulo Vizioli