Entre os 10 países do mundo com maiores índices de vitimização juvenil, sete são da América Latina. Os índices de autolesão entre jovens brasileiros, na faixa etária de 15 a 19 anos, aumentaram em 740% em 10 anos, segundo dados do Datasus (base de dados do Sistema Único de Saúde do Brasil). Especialistas explicam que o número está ligado a desigualdades econômicas e sociais, como por exemplo, problemas familiares e preconceitos de raça e sexualidade.
Em 2023, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) declarou que as Américas são a única Região da Organização Mundial da Saúde (OMS) onde as taxas de suicídio têm aumentado. De acordo com o relatório “Depressão e outros transtornos mentais”, da OMS, o Brasil é o país mais depressivo da América Latina.
Dados do Ministério da Saúde do Brasil mostram que o índice de violência autoprovocada aumentou em todas as faixas etárias, mas, principalmente, em adolescentes e jovens. A violência autoprovocada compreende a ideação suicida, autoagressões, tentativas de suicídio e suicídios.
Em 2012, foram notificadas 3.864 autolesões na população entre 15 e 19 anos. Já em 2022, na mesma faixa etária, foram registradas 32.462 violências autoprovocadas, um aumento de 740% em 10 anos.
Na população entre 20 e 29 anos, foi registrado um aumento de 668% em 10 anos. As notificações passaram de 5.843 em 2012 para 44.878 em 2022. Nas faixas etárias de 30 a 39, 40 a 49, 50 a 59 e de 60 anos para cima, o aumento de autolesões foi, respectivamente, 466%, 525%, 471% e 402% em 10 anos.
No Uruguai, a taxa de suicídio de jovens entre 15 e 19 anos aumentou em 45% em 2020 segundo relatório oficial divulgado em julho de 2021. O país é o terceiro da América Latina com a maior taxa de suicídios e o sexto com maior prevalência de depressão.
Em primeiro lugar no ranking, 44,2 pessoas em 100 mil se mataram na Guiana, segundo dados da OMS. Entre 2006 e 2008, o suicídio foi a principal causa de morte entre os guianenses com idade entre 15 e 24 anos.
Raízes
Helen Mavichian, psicóloga e pesquisadora do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social da Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma que, apesar de a pandemia de Covid-19 ter agravado muitos problemas de saúde mental, “é preciso considerar outros fatores já existentes que transcendem os últimos acontecimentos decorrentes da pandemia”.
A psicóloga entende que a piora da saúde mental de adolescentes e jovens pode estar relacionada a problemas na estrutura familiar, como pais divorciados, dificuldades financeiras, o relacionamento dos jovens com os pais; entre outros fatores.
“Problemas de relacionamento entre os pais e os filhos podem impactar de forma bruta o emocional das crianças e adolescentes”, explica Helen e acrescenta: “conflitos constantes, abusos, negligência ou instabilidade no ambiente familiar podem influenciar no desenvolvimento do estresse, ansiedade, depressão, transtornos alimentares e problemas de comportamento”.
Mavichian ressalta que esses problemas psiquiátricos têm maior ocorrência em adolescentes e jovens que vivem em um ambiente familiar de pouco afeto e muito controle. São também os pais que exercem, segundo a psicóloga, um papel fundamental no progresso do tratamento de doenças psiquiátricas e no ambiente familiar do adolescente.
Segundo a OPAS, populações que vivem em condições de vulnerabilidade devido a fatores como racismo, desigualdade social, LGBTfobia, estão entre as pessoas que correm mais risco de sofrer efeitos adversos de saúde mental. “O preconceito pode causar estresse emocional, baixa autoestima e até mesmo trauma psicológico, resultando em sentimentos de isolamento, ansiedade e depressão”, diz Mavichian.
Para Caique Mendes, psicólogo pela Unesp e psicanalista clínico, é preciso pensar a relação que os indivíduos e a sociedade possuem com as questões de gênero, raça, sexualidade, entre outros. “Quando há [na sociedade] um silenciamento dessas questões, ou ainda uma tratativa como algo supérfluo (o termo “mimimi” veio aí com essa função) é uma reverberação negativa, podendo afetar autoestima, segurança pessoal, fobias”.
A relação familiar também impacta no desenvolvimento positivo ou negativo dos problemas com a saúde mental. “Se for oferecido um espaço de acolhimento e segurança para questões pessoais, há maiores chances de um efeito positivo. Caso haja um ambiente inseguro ou que não fale disso (o famoso ‘aceito, mas não quero isso dentro de casa’), gera efeitos de mal-estar”, explica Mendes.
O psicólogo ainda afirma que as desigualdades econômicas também estão relacionadas ao adoecimento mental. “O tempo é o principal ponto para pensar essa questão. Uma pessoa em vulnerabilidade tem um tempo disponível, para além do trabalho, muito limitado. Quanto tempo de qualidade é possível ter com amigos e família? É possível conhecer lugares novos? Como a cidade oferta lazer gratuito para as pessoas? As periferias são pensadas nesta oferta?”, questiona o psicólogo e continua: “Quanto maior a vulnerabilidade, geralmente, maior é o tempo de espera para um tratamento, que às vezes nem mesmo é possível”.
O deserto
Segundo dados da OPAS, quase 90% das pessoas afetadas por algum transtorno mental não recebem o tratamento necessário. Em 2020, o financiamento governamental mediano para a saúde mental representava apenas 3% dos gastos totais em saúde.
Dados da OPAS ainda mostram que metade dos fundos destinados à saúde mental foram alocados em hospitais psiquiátricos, que podem estar associados a piores desfechos de tratamento e a violações de direitos humanos. A organização também afirma que existe uma escassez de recursos humanos para a saúde mental, com a maioria concentrada nas áreas urbanas.
A organização ainda mostrou que as áreas ambulatoriais, de coleta e a notificação de dados sobre saúde mental e redução de suicídios estão mais despreparadas. Em muitos países, os hospitais especializados concentrados em áreas altamente povoadas continuam sendo o principal tipo de serviço de saúde mental prestado.
A Nova Agenda de Saúde Mental para as Américas, da OPAS, recomenda elevar a questão da saúde mental em nível nacional e supranacional e defini-la como prioridade de desenvolvimento nacional. Também aconselha integrá-la à atenção primária de saúde. A Agenda ainda sugere que deve ser adotada uma abordagem transformativa das questões de gênero em prol da saúde mental e enfatiza a necessidade de combater o racismo sistêmico.