A terceirização do imperialismo

O Conselho de Segurança da ONU aprovou no dia 02 de outubro de 2023 uma nova intervenção militar no Haiti, dessa vez liderada pelo Quênia,  uma continuidade do trabalho comandado pelo Brasil durante a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) entre 2004 e 2017. De acordo com informações da BBC, a articulação brasileira foi essencial para garantir a aprovação, evitando vetos da China ou da Rússia.

Além disso, a expectativa é que o governo brasileiro use a experiência de forças como o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro atuando no país caribenho para contribuir com o treinamento da Polícia Nacional Haitiana.

A legitimidade dada pelo apoio do primeiro-ministro haitiano Ariel Henry (que não foi eleito democraticamente e é suspeito de envolvimento no assassinato de seu antecessor) sob a justificativa de que a operação é necessária para combater as combater as gangues que se multiplicam no país, arrasado pelo colonialismo e mantido no subdesenvolvimento por intervenções similares articuladas pelos EUA, não dão nenhum indicativo de que a nova missão será diferente da anterior, que deixou um rastro de massacres, centenas de casos de abuso sexual e uma epidemia de cólera (doença que sequer existia no país antes da operação).

A militarização da política externa brasileira está profundamente ligada à intervenção estadunidense durante a Guerra Fria. A aproximação ideológica do Pentágono com a Forças Armadas brasileiras gerou a elite militar que executou o golpe de 1964 e usou a ditadura para inserir o Brasil na divisão internacional a partir da lógica daquilo que Ruy Mauro Marini* descreve como subimperialismo.

Em linhas gerais, se trata de um projeto nacional pautado não em superar a dependência de países do centro do capitalismo, mas de buscar vantagens para a burguesia nacional dentro desse sistema dominado pelo capital estrangeiro. O pacto consolidado na ditadura militar foi que o Brasil abandonaria a política externa independente dos anos Jango e seria submisso aos EUA – em troca, receberia o monopólio de dominação geopolítica, diplomática e econômica a ser exercida na América Latina.

A maior parte das ambições expansionistas dos generais não se concretizaram, mas o governo brasileiro chegou a atuar diretamente no golpe militar de 1971 na Bolívia e fechou acordos com o novo regime para explorar petróleo, gás e certos tipos de minérios do país a baixo custo. A embaixada brasileira também apoiou a manutenção colonial de Salazar na África e Médici assinou tratados que permitiram às empresas brasileiras operar nas colônias portuguesas no continente.

Após a chamada ‘redemocratização’ e o período dos anos 80 e 90, marcado pelo consenso neoliberal, a chegada de Lula à presidência traz uma nova independência. A postura, em linhas gerais, foi, e é, de não submissão aos EUA (vide as posições sobre Cuba e Venezuela, e as críticas bem colocadas ao genocídio promovido pelo estado de Israel), mas evitando hostilizar demais o Ocidente.

O comando da operação que levou o Brasil ao Haiti,  —após o golpe militar promovido pelos EUA em 2004 — é interpretado por muitos, como o sociólogo haitiano Franck Seguy**, como o teste dado para o Brasil se provar digno da tão sonhada cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Sim, ocupar a ilha abriu uma nova frente para o mercado brasileiro, mas o maior beneficiário foi o mesmo de sempre: o império estadunidense,  que precisa da miséria do sul global para se sustentar, alimentar seu aparato bélico terrorista e gerar mão de obra barata para ser explorada por suas multinacionais parasitas.

O preço foi pago, com sangue haitiano. E o que veio em troca? Bem, a Minustah serviu para treinar militares que atuaram na Intervenção Federal no Rio de Janeiro e para catapultar a carreira de nomes como Tarcísio de Freitas (chefe da seção técnica da Companhia de Engenharia do Brasil durante a missão), Augusto Heleno (primeiro coordenador da Minustah), e muitos outros golpistas que compuseram a cúpula do governo fascista de Bolsonaro.

Mas não rendeu cadeira na ONU. Também não impediu os EUA de apoiar o golpe de 2016, ou a Lava Jato e a prisão de Lula.

Durante a maior parte do século XXI, os países cujas tropas ocuparam o Haiti não foram EUA, Reino Unido, Alemanha ou França. Foram o Brasil, agora o Quênia, e outros como Argentina, Bolívia, Uruguai, Paraguai, Chile, Senegal, Burkina Faso, Bangladesh. A periferia do capitalismo.

Mas se tornar parte da máquina mortífera que oprime os povos da América Latina, Ásia e África para engordar o lucro da burguesia europeia e norte-americana não vai dar controle sobre os rumos da política global para nenhum país que não os mesmos no comando no último século. 

Mesmo assim, o Brasil se coloca de novo nesse lugar.

Colaboração: Hugo Mota Pinheiro