Onda da extrema direita engole a marola rosa latino-americana

Com 56% dos votos válidos, Javier Milei derruba o peronismo argentino e vence as eleições presidenciais em novembro de 2023. O economista se denomina como “antissistema”. É liberal na economia e conservador nos costumes, contra a liberação do aborto, a educação sexual nas escolas e políticas de direitos humanos, e condena o casamento homoafetivo. Javier Milei é mais um político caricato que se junta à nova onda da ultradireita. Esta que engoliu a Onda Rosa da esquerda latina e, para especialistas, ainda estamos longe de ver o pico.

O avanço da extrema direita é um fenômeno global de emergência populista que começou em 2010 e atingiu a América Latina, conforme explica Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo (USP). Nas últimas eleições latino-americanas foi evidente o crescimento do poder de ultradireitistas, no Executivo e, principalmente, no Legislativo.

Em junho de 2022, o senador de esquerda, Gustavo Petro, derrotou Rodolfo Hernandez, que já se declarou fã de Hitler, com uma diferença de apenas 3,2 pontos percentuais nas eleições presidenciais da Colômbia. Em outubro de 2022, Rafael López, o “Bolsonaro peruano” venceu as eleições para a prefeitura da capital, Lima. Em abril deste ano, o ex-senador Paraguayo Cubas, o “Bolsonaro Paraguaio”, conseguiu uma votação expressiva em sua candidatura à Presidência, 23% dos votos. E pela primeira vez, o partido extremista, a Cruzada Nacional, elegeu cinco senadores e mais cinco deputados. Já no Chile, a população escolheu em maio deste ano apoiadores de Pinochet para revisar a Constituição do próprio ditador. O Partido Republicano, de extrema-direita, venceu em 15 das 16 regiões do país

Em entrevista à Revista Babel, a Embaixada Brasileira na Argentina comentou que estes votos em políticos que se denominam“outsiders” e “antissistema” são considerados votos de protesto e descontentamento do povo latino-americano. 

Histórico latino-americano

O desenvolvimento econômico na América Latina permaneceu apenas na promessa ao longo dos anos, conforme conta Clarissa Franzoi Dri, coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão em Cooperação Regional da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para manter o status quo e evitar a implementação de reformas como tributária, agrária e educacional, a direita se organizou de forma autoritária com as ditaduras militares nas décadas de 60 e 70, sob o discurso de ordem e o combate ao comunismo.

Intimidada diante das forças democráticas, a direita latina passou para o centro e seguiu o Consenso de Washington, recomendações econômicas neoliberais dos Estados Unidos à América Latina. Estado mínimo e autorregulação do mercado passaram a guiar a direita conservadora na década de 90. Menem, da Argentina, e FHC, no Brasil, defendiam essas bandeiras. Até que nos anos 2000 foram rasgadas, em crise. A “Onda Rosa” de governos de esquerda era percebida, pela população latino-americana, como a salvação diante do empobrecimento das camadas médias e baixas.

Carlos Menem e George H. W. Bush, cabeças por trás do
Consenso de Washington durante os anos 1990.

No entanto, a chegada da esquerda pela via eleitoral não conseguiu contemplar as complexas demandas sociais e econômicas da região. De acordo com os especialistas ouvidos pela Babel, muito por conta do distanciamento das plataformas dos partidos de esquerda destas demandas.

“Os governos de esquerda da América Latina estão adotando políticas de caráter assistencialista e atendem as demandas sociais por meio de medidas paliativas, o que não é ser de esquerda”, analisa Vidigal.

A esquerda latina necessitou remanejar a direita em busca de governabilidade. Em troca, as esquerdas perderam muito das suas bases sociais, como a perda de setores populares para as igrejas evangélicas e de espaço político devido à fragilidade dos sindicatos. Para Vidigal, a esquerda propõe mudanças estruturais na sociedade no sentido do igualitarismo, portanto, hoje praticamente não há partidos desse alinhamento.

Pablo Ortellado observa outra questão social como um dos fatores que desencadearam o avanço da extrema direita: a guerra cultural. Ná década de 70, a esquerda aderiu aos novos movimentos sociais, como o negro e o feminista. À medida que essas mudanças se consolidam nas instituições, inicia-se uma reação dos conservadores, que passam a se ver como minoria, segundo o professor. Assim, a extrema direita começou a se organizar em relação a temas como a legalização da posse de armas e do aborto, por exemplo, como pautas centrais de debate político. 

Carlos Eduardo Vidigal, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), considera que o avanço da ultradireita foi uma consequência do meio de trabalho. A globalização foi acompanhada pelo desemprego estrutural, a desqualificação do trabalho, em complemento ao enfraquecimento dos sindicatos e da Onda Rosa.

Lula e Néstor Kirchner, representantes da “onda rosa” dos anos 2000. Foto: Valter Campanato/ABr.

As forças de direita já são as elites econômicas, políticas e midiáticas, os mesmos grupos de poder que se revezam entre si. Essas novas direitas que chegam na América Latina, de acordo com a professora Franzoi, são populistas e utilizam elementos fascistas dos regimes militares, como a ideia de unir o povo para combater o falso inimigo externo ou interno. Mas, na lógica fascista, o povo unido é o povo puro. Como na América Latina o povo é miscigenado, o inimigo é interno, diferente do facismo europeu. “Os inimigos são a população negra e a periférica, por isso a direita realiza o desmonte ideológico dos direitos humanos e coloca a polícia a favor do ‘cidadão de bem’. Assim a extrema direita conquista o voto do conservador”.

Esse argumento da extrema direita de “antisistema” e de combate ao comunismo possui um uso midiático apenas, e não substancial, conforme analisa Vidigal. Como a direita comanda a mídia tradicional, facilitou a amplificação do discurso pelas redes sociais. “Esse discursos extremistas e ultraliberais não são propostas políticas sérias que devam ser consideradas no seu conteúdo, apenas como instrumentos para engalhar votos, sobretudo, de militares de direita, empresários e reacionários, afirma o professor. 

Uma das consequências do avanço da ultradireita no plano nacional é o aumento da violência contra os direitos humanos. Já no plano externo é a tendência de desmonte de instituições internacionais. Assim como o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, boicotava a Organização Mundial do Comércio (OMC), os governos de extrema direita, que sofrem influência norte-americana, desmancharam a União de Nações Sul-Americanas (UNASUR), conforme a avaliação de Franzoi. Para ela, a vitória de Milei na Argentina aumenta a possibilidade de desmanche do Mercosul e o avanço da ultradireita na América Latina.

Pablo Ortellado reforça a tendência de sabotagem de instituições internacionais pelos governos ultradireitistas, visto que eles consideram esses acordos anti-soberanistas e globalistas. Para o professor, a tendência é que a onda da extrema direita ultrapasse em alguns anos a atual pequena Onda Rosa, uma marola.

O ex-presidente do Brasil inspira outros “Bolsonaros” pela
América Latina. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Fontes da Embaixada do Brasil ressaltam que o Mercosul permanece uma instituição consolidada com acordos políticos-econômicos relevantes em discussão com a União Europeia e com o Canadá. Além disso, afirmam que, mesmo com a vitória de Milei, a Argentina não vai romper relações diplomáticas com o Brasil, somente serão adaptadas.

Para a professora Franzoi, a eleição do novo presidente argentino é preocupante para a democracia e para o multilateralismo na América Latina. As instituições regionais, como Mercosul e CELAC, terão mais dificuldade de diálogo e operação. Os propósitos extremistas e irracionais que fundamentaram a campanha eleitoral de Milei podem embasar as futuras políticas públicas. A defesa da ditadura militar por membros de sua equipe pode legitimar o aumento da violência de Estado, tanto na Argentina quanto nos demais países latino-americanos.