De pixels a celulose

Walter Hugo Khouri nasceu na capital paulista em 1929, 22 anos antes de transpor o estado natal em película pela primeira vez por meio do longa O Gigante de Pedra, feito em parceria com colegas que, como ele, haviam saído da equipe da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Exibido na primeira e única edição do Festival de Cinema Internacional do Brasil, em 1954, o filme tardaria para voltar à tela grande. Em 11 de agosto de 2023, 70 anos após sua completude, ele enfim retornou, restaurado, em cópia de 35 milímetros, na retrospectiva do diretor na Cinemateca Brasileira — fragmentado devido à perda de um terço do rolo original. Como de costume, a fugacidade imposta à memória do cinema nacional já havia fincado suas garras nas lembranças de celulose.

Buscar uma história do cinema brasileiro — e latino-americano —, afinal, é contornar as infinitas lacunas deixadas pelo campo de guerra sutil, mas ruidosa, do imperialismo cultural. De Khouri, que dirigiu mais de 20 filmes ao longo de cinco décadas, pouco é acessível de maneira legal e sob as condições formais ideias. Fora as oportunas restaurações idealizadas para o deleite dos espectadores do Canal Brasil, clássicos seminais como Noite Vazia (1964) e As Amorosas (1968), do qual participa Rita Lee, são difundidos quase exclusivamente por cópias disponíveis no YouTube que não passam de 480 pixels. Mesmo assim, os longas resistem pelo borrão digital, encantando aqueles que buscam escantear os padrões de qualidade técnica hollywoodianos em prol de facetas da história interessantes demais para o catálogo da Netflix.

Dentre o repertório de Khouri, o exemplar que primeiro me seduziu foi o terror folk As Filhas do Fogo (1978), cujas imagens do sul brasileiro, comprimidas ao máximo, ora se tornam Testes de Rorschach na cópia disponível via internet. Misterioso, extasiante e profusamente queer, o longa acompanha a viagem de um casal lésbico a uma antiga comunidade na Serra Gaúcha, onde fantasmas repletos de desejo passam a assombrá-las. Com sua ambiguidade bergmaniana e seu romance evocativo do horror europeu da mesma década, o longa foge de qualquer estereótipo e imbui o público no mesmo encanto de anseio que captura as protagonistas, independentemente da qualidade da resolução.

Assistí-lo anos depois, restaurado na Cinemateca — ressurgida gloriosa após dois anos fechada por desmontes, alagamentos e incêndios —, a mim pareceu mais um réquiem pela humanidade de seus criadores que uma simples sessão de cinema. Passional e complexo, o cinema de Khouri permite que seus personagens — de diferentes facetas da sociedade brasileira e a diferentes fins satíricos e dramáticos — existam, privilégio pouco concedido a qualquer ficção latino-americana autossuficiente e desligada do circuito audiovisual anglófono. Por isso mesmo, celebrar sua obra — perante uma tela de cinema ou uma cópia gasta —, abre vazão para a descoberta de dezenas de cineastas ocultos pelas marcas de tempo, como Jean Garrett, Carlos Hugo Christensen, Ana Carolina, Carlos Reichenbach, Djalma Limongi Batista e mais.

Na América Latina, toda negligência torna-se cicatriz, que então evidencia a ferida aberta de uma cultura extirpada. O cinema, arte que se faz do rito de imagens em movimento, não abre espaço para a paralisia da dor. Khouri e seus colegas — independentemente das temáticas ou técnicas preferidas —, deixaram imagens como espelhos para a sociedade, retratos de Dorian Gray: sobre a beleza da película, materializam-se as feridas de um corpo artístico desnutrido e ignorado. Amar tal figura disforme e celebrar o restauro e preservação é imperativo, então, não apenas pela honra, mas para que tais erros deixem de ser constantes e previsíveis. Se os caminhos sinuosos da cultura latino-americana têm a mania de serem obscuros e apagados pelo domínio estrangeiro, é então fortuito que o cinema seja, justamente, a arte da luz.

Serviço:
Cinemateca Brasileira
Largo Senador Raul Cardoso,207, Vila Mariana/São Paulo

Funcionamento:
Espaços públicos e jardins: todos os dias, das 8h às 18h.
Café da Cinemateca: de quarta-feira a domingo, das 13h às 21h.
Centro de Documentação e Pesquisa: de segunda a sexta-feira, das 10h às 17h, exceto feriados.
Salas de cinema: de acordo com a programação.
Telefone: (11) 5906-8100