Sons da resistência: a revolução cultural do reggae maranhense

Por Giovanna de Oliveira e Julia Mantuani

Em setembro de 2023, foi sancionada a lei 14.668, que concede à cidade de São Luís, no Maranhão, o título de Capital Nacional do Reggae. O ritmo, que surgiu no final da década de 60 na Jamaica, conquistou os ouvidos dos maranhenses por volta de 1970.

“Chamou a minha atenção que um ritmo cantado em um idioma que a maioria das pessoas não compreende, esteja tão fortemente presente em seus cotidianos”. Foi assim que Carlos Benedito, pesquisador natural de Campinas, em São Paulo, e que escolheu São Luís do Maranhão como lar, se interessou em estudar o reggae em 1985.

Quem nunca ouviu uma música do Bob Marley, Peter Tosh ou Jimmy Cliff? Eles, sem dúvidas, são alguns dos maiores nomes do reggae no mundo todo. Mas, para uma parte da população de São Luís, o ritmo vai muito além dos três grandes cantores, segundo o pesquisador.

As músicas que faziam sucesso na região nos anos 70 eram só de artistas jamaicanos, cantadas em inglês. Mas isso não foi um impeditivo para chamar a atenção das pessoas.

O gingado do reggae se constituiu como um veículo de forte mobilização e identificação da população negra e de baixa renda que habitava as palafitas da cidade de São Luís: “Ali o reggae começou a ser frequentado nos chamados barracões, tornando-se o principal elemento de lazer para essa população”, explica Benedito.

O ritmo, nesses mais de cinquenta anos no estado do Maranhão, ganhou vida própria e várias características particulares do reggae maranhense – não é à toa que São Luís recebeu o título de capital do reggae no Brasil. Hoje, existe uma infinidade de artistas da região que criam os chamados “melôs”, as músicas de reggae típicas do estado.

Para José Reis de Souza, produtor de melôs conhecido como DJ Reis Show e morador de São Luís, o reggae maranhense é uma forma de identificação entre quem escuta as músicas: “A letra é contagiante, romântica, sofredora… fala da nossa vida”.

O ritmo “regueiro” não é algo exclusivo das fronteiras do estado do Maranhão. As músicas alcançam várias outras partes do país, como é o caso de Cristiane Lima da Silva, que prefere ser chamada de Estrela. Moradora de Salvador, na Bahia, e grande fã do reggae maranhense. Ela defende que o que chama a atenção no reggae são as lutas pelo amor, paz e luz.

Um grupo de reggae que nasceu na Ilha do Amor e ganhou todo o Brasil, por exemplo, foi a Tribo de Jah. A banda surgiu em 1985 e o sucesso é tanto que, em um vídeo de um show ao vivo do grupo, publicado no ano passado, as visualizações já ultrapassam a marca de 1,5 milhão de visualizações.

Além dos melôs, outra particularidade é que, diferentemente do que normalmente se faz em outros lugares do mundo, no Maranhão, o reggae se dança a dois, “agarradinho”.

O pesquisador Carlos Benedito explica que “isso reflete determinada sensualidade inscrita na tradição da herança cultural dos corpos negros livres, de homens e mulheres denunciando a exclusão que a escravidão impôs e os processos da modernidade sustentam”.

Ou seja, além de ser uma forma de lazer e uma manifestação cultural bem expressiva na região, trata-se também de uma estratégia de resistência.

Os caminhos do reggae até o Maranhão

Mas, afinal, como o reggae chegou no Maranhão? A verdade é que ninguém sabe ao certo como o ritmo conquistou o estado. O que se tem hoje são algumas teorias.

Uma das mais conhecidas é a de que moradores maranhenses sintonizavam o rádio em emissoras do Caribe durante a madrugada, ainda nos anos 70. Por isso, criaram familiaridade com ritmos afro-caribenhos, como o bolero, salsa, carimbó, merengue e, principalmente, o reggae.

Outra, é a de que que marinheiros que chegavam ao porto de São Luís deixavam discos trazidos da Jamaica como moeda de troca em áreas de prostituição.

Além disso, um fator importante, segundo Carlos Benedito, é a semelhança entre a história da Jamaica e a do Maranhão.
No país da América Central, 90% da população é negra. No estado do Nordeste brasileiro, o percentual é de 80%. “As características foram herdadas dos povos africanos escravizados nas Américas e no Caribe e as práticas de exclusão impostas pelas elites coloniais acabam sendo um elo de ligação entre as duas regiões”, afirma o pesquisador.

Cortesia: Ingrid Barros

As teorias sem dúvidas existem, porém ainda há várias incertezas sobre as origens do reggae do Maranhão. Mas isso não impede que o pulsar contagiante do ritmo que encontrou solo fértil nas raízes do Maranhão esteja transformando a imagem de São Luís.

Atenas brasileira dá lugar à Jamaica brasileira?

A capital maranhense é conhecida como a “Atenas brasileira” e a “cidade fundada por franceses” pelos intelectuais maranhenses desde o século 19. No entanto, a predominância do reggae tem feito cada vez mais essa visão dividir o posto com um novo título: o de “Jamaica brasileira”.

Centro histórico da capital maranhense (velha São Luís), com a cidade nova ao fundo (nova São Luís).

É claro que essa transformação não ocorreu do dia para a noite. Logo que chegou ao Maranhão, o reggae era um ritmo escutado por negros marginalizados, que povoavam as palafitas do estado. Ou seja: era visto de forma pejorativa pela elite maranhense.

Por volta dos anos 80, começaram os programas de rádio FM, levando o reggae a outros ouvidos – às populações brancas de classe média, universitários e artistas tradicionais que passaram também a frequentar os clubes de reggae mais próximos ao centro da cidade.

Isso fez com que o reggae atingisse a classe empresarial e política, sendo usado em propagandas das lojas e campanhas eleitorais.

Foi aí que o reggae cresceu exponencialmente na cidade de São Luís e se tornou uma ferramenta de lazer em grande parte do estado. No entanto, embora o ritmo tenha alcançado grupos mais elitizados, o preconceito sobre a música de origem nas palafitas e guetos maranhenses segue presente.

Para Carlos Benedito, mesmo que tenha se expandido atualmente para outros setores considerados “mais higienizados” da cidade, o reggae ainda não é aceito por esses grupos como um símbolo da cultura maranhense, pois isso remeteria São Luís a uma Jamaica negra e pobre.

Marcelo Carlos, que é morador de São Luís e fã de reggae desde que tinha 8 anos, explica que sente na pele os preconceitos sobre o ritmo que toma conta das ruas maranhenses: “Tem muita gente que gosta, mas outras também sentem muita raiva das músicas”.

Cortesia: Ingrid Barros

Símbolo de resistência latino-americana

O reggae na Jamaica brasileira, portanto, é muito mais do que apenas um gênero musical, é um símbolo vibrante de resistência. Nas palafitas e vielas, o reggae se tornou o grito de uma população negra de baixa renda, resistindo à marginalização imposta.

Nos últimos anos, o ritmo tem alcançado algumas conquistas importantes para manter a história do reggae no estado maranhense e em todo o Brasil. Em 2018, foi inaugurado o Museu do Reggae, na cidade de São Luís. 

No acervo do museu há vídeos e fotos históricas, depoimentos gravados com personalidades do gênero, discos raros e as transformações da moda reggae ao longo do tempo.

O espaço de manifestação cultural é, também, uma forma de aquecer o turismo da região e, consequentemente, gerar renda. Entre 2018 e 2020, nos dois primeiros anos do museu, 120 mil pessoas visitaram o lugar e cinquenta mil delas eram turistas.

Ou seja, o reggae também é uma forma de movimentação da economia de São Luís. Milhares de pessoas vivem da renda gerada por meio das músicas, como é o caso do DJ Reis Show, dos clubes de reggae e do turismo de quem visita a cidade para conhecer, de perto, o ritmo.

Portanto, nessa jornada, o reggae maranhense se revela mais do que uma manifestação artística: é uma força que conecta São Luís à sua própria essência e reforça as origens da população local. Ao som dos melôs e da dança agarradinha, o reggae ressoa como um poderoso símbolo de resistência latino-americana e ecoa pelos corações da Jamaica brasileira.