Meus pés pisam no litoral da República Dominicana com minha família. Minha mãe esconde o frio na barriga de sua primeira viagem internacional, com quase 60 anos.
A natureza é de uma exuberância impactante. Mas algo na paisagem humana quebra minhas expectativas. Brancos americanos e europeus circulam aos montes, mas não vejo dominicanos nas praias ou passeios. No hotel, encontro-os sempre nos mesmos locais: atendendo na recepção, servindo comida, limpando quartos. Causa impacto, também.
Ouço mais inglês que espanhol. Nada ouço sobre os povos locais. Uma apresentação caricata de merengue é o único contato com a cultura dali. Aquele pequeno paraíso tropical parece um planeta à parte, descolado do país que eu pensava que iria desbravar. Conheço um guia nativo. Ele se irrita com a onipresença dos celulares entre os turistas. “Disfruta!”, incentiva a um público desinteressado, durante uma atividade em alto mar. Ninguém parece ouvir. Ele desiste e passa, sozinho, a admirar as águas claras e o horizonte do lugar onde nasceu, com silenciosa veneração.
Bariloche, Argentina
O sul gelado da Patagônia me lembra o solo dominicano: a mesma intensidade da beleza das paisagens, o espanhol. Os descendentes dos povos mapuche, com a pele bronzeada que destoa dos bisnetos de alemães, ali estão também – sempre servindo, cozinhando, limpando e atendendo. A história deles não faz parte de nenhum dos muitos locais e eventos programados para a semana. Nenhum. A ordem imposta só é subvertida por uma pichação numa rua escondida: “Liberdade às presas políticas mapuche!”
Crianças turistas muito jovens, muito ricas e muito brancas aprendem a esquiar com aulas particulares nas montanhas nevadas. Acesso e equipamentos são cobrados. Um motorista de van de turistas que vive há gerações na cidade me conta que a filha, de oito anos, está prestes a realizar o sonho de aprender a esquiar também. Ela cresceu entre as montanhas, mas nunca pôde frequentá-las. Eu a imagino deslizando na neve com os cabelos ao vento, a alguns anos dali – forte, imponente, tomando para si o que sempre foi seu.
Tennessee e Georgia, EUA
O frio dos Andes me faz recordar do norte da América. Depois de avós que emigraram fugindo da pobreza há muitas décadas antes, fui a primeira da família a deixar o Brasil. Depois de muitos “nãos”, finalmente, uma bolsa de estudos.
Minha família teme. “Minha mãe diz que sou um pássaro/mas quando diz isso, ela quer dizer que o mundo inteiro é minha gaiola”. Penso nesses versos quando lembro dessa época.
Ao chegar no meio-oeste, a riqueza espanta. Na rua em que me hospedo, sou a única pessoa de cabelos castanhos. “Muitos aqui nunca viram alguém como você”, diz uma professora da universidade. “Fica tranquila. É dos mexicanos que não gostamos”, diz uma mãe de família.
No Brasil, sou branca. Ali, latina. Inegavelmente latina. Chola. Os nós das minhas mãos sangram com a falta de luvas adequadas para o frio. No shopping, uma vendedora me segue numa loja. Outras tentam me atender em espanhol.
Na porta da balada com um amigo, também inegavelmente latino, um funcionário nos mede de cima a baixo e diz, contrariado: “The female is ok”. Mas não podemos entrar, afirma em seguida. A desculpa é a jaqueta esportiva do meu acompanhante.
Na cidade de Martin Luther King Jr, a tensão racial é palpável. Num culto tradicional, uma elegante moça negra, com chapéu fascinator, me observa altiva e curiosa. Ela parece saber algo que não sei.
Volto ao país com minha família anos depois. Minha mãe chora ao ser escolhida para uma revista agressiva no aeroporto. Não fala inglês. Parda. Inegavelmente latina, ela também.
São Paulo, Brasil
Um inglês me diz na Av. Paulista que o clima faz dos brasileiros menos propícios ao trabalho. Um alemão, gentil e condescendente, afirma que seu povo é mais inclinado à organização, lógica e pontualidade.
“Minha mãe diz que sou um passarinho/mas quando diz isso, ela quer dizer que o mundo inteiro é minha gaiola”.
Me dou conta que nunca conheci alguns dos principais museus da cidade. Eles já.
Mas então me lembro do guia dominicano apreciando a paisagem de onde nasceu. Da menina argentina desbravando suas montanhas. Da indignação das presas mapuche respingando em tinta spray pelas paredes da cidade que foi primeiro delas. E das raízes que me permitem reivindicar São Paulo como minha. Inegavelmente latina, a cidade nunca me pareceu mais bonita.