“Essa aqui é uma vihuela, ela tem um som bem estridente e muito contrastante com o guitarrón, o baixo mexicano, que é de três a quatro vezes maior ” demonstrava Enrique Hugo Figueredo o conjunto de instrumentos no estúdio, enquanto ressoava dois acordes no pequeno violão.
Do traje inteiramente preto, chamava atenção a camisa social bordada com detalhes prateados em ambos os ombros. Não demorou muito tempo para que Figueredo mostrasse o sombrero rajado, igualmente preto e prateado.
A indumentária tornava impossível não identificar o ofício do homem de meia idade. Afinal, o mariachi se eternizou como uma das figuras máximas do imaginário latino-americano, reconhecida até mesmo como um patrimônio imaterial da humanidade.
Enrique Hugo Figueredo é argentino, trabalha há 25 anos com música latino-americana, é produtor e um dos fundadores da banda Mariachi São Paulo Brasil. O grupo, que fará quatro anos em dezembro de 2023, ganhou popularidade durante a pandemia de covid-19, através das lives.
Com o fim das restrições sanitárias, começou a receber pedidos de serenatas, aniversários, casamentos e até a participação em um velório. “Os mariachis surgiram como um grupo para celebrar os momentos da vida e até mesmo a morte. É muito comum na tradição do México a presença de mariachis em velórios para cantar músicas em forma de homenagem para aqueles que partiram”, resgata Figueredo.
Hoje, a banda de cinco integrantes roda o estado de São Paulo em shows, eventos particulares e públicos. Em maio deste ano, participaram do quadro “Rango Brabo” no canal “Pod Pah”, um dos mais assistidos no YouTube.
Embora necessidades comerciais acabem ditando a formação do repertório, o que explica a presença de mega hits nas apresentações — como Despacito, por exemplo — o músico menciona um cuidado de incluir canções tradicionais.
“Principalmente para públicos mais jovens, gostamos de intercalar músicas mais tradicionais para que elas também sejam conhecidas”, salienta Figueredo.
Os mariachis são celebrados pela cultura pop contemporânea, mas a existência, importância e influência desses músicos vai além de um capricho estético e de uma rotulação estereotipada de uma tradição: os mariachis mexicanos tiveram papel fundamental na formação da música sertaneja “de raiz”.
O cancioneiro de uma paixão ardente: surge a ranchera
A tradição dos mariachis remonta a meados do século XIX. Vagavam em bandos pelos ranchos e estradas de Jalisco, região ocidental do México onde predominavam vaqueiros de descendência europeia (chamados de charros), a cantar serenatas para casais apaixonados.
Não por acaso, a etimologia do termo mariachi remete a uma celebração romântica, já que se trata de um neologismo da palavra marriage (matrimônio em francês), que se forma no momento de ocupação do México pelo Segundo Império Francês, entre 1861 e 1867.
Apesar da etimologia da palavra mariachi estar próxima da França, o professor e sociólogo Ángel G. Quintero Rivera levanta a hipótese de outras origens para o termo.
“Há quem argumenta que o termo vem de línguas indígenas; provavelmente o termo originou-se associado a cantos a Maria, seja em sua acepção religiosa, seja em sua associação laica como sinônimo de mulher”, diz em texto que pertence à Latinoamericana, enciclopédia contemporânea da América Latina originalmente publicada em 2006.
O canto gritado, acompanhado pela profusão de timbres de violas, violões e instrumentos derivados foram constituindo as bases de um cancioneiro regional mexicano. Assim nascia a ranchera.
Violeta Vaal, pós-graduanda no curso de Literatura Comparada da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), pontua que a ranchera também pode ser vista como um termo “guarda-chuva”, ao abarcar gêneros mais específicos como a banda sinaloense e o norteño. De uma forma ou outra, diz Vaal, o gênero está historicamente ligada aos mariachis.
Se na forma a ranchera destaca-se pela orquestra de violas e pelo bel canto masculino, na lírica, o gênero é transbordado pelo amor masculino idealizado, a solidão e o desespero da por parte da figura feminina.
Violeta Vaal lembra que essa profusão de sentimentos tão passionais não raramente descambam em puro machismo. La media vuelta, canção composta por José Alfredo Jimenez, considerado o maior expoente da música de mariachi, revela a temática do amor possessivo:
“Te vas porque yo quiero que te vayas
A la hora que yo quiero te detengo
Yo sé que mi cariño te hace falta
Porque quieras o no. Yo soy tu dueño”
Alejandro Fernández, filho de “El Rey” Vicente Fernández Jr., vai além em Cascos ligeros. Na canção de 1993, a mulher é equiparada a um “égua”, grosseira, sobre quem o eu-lírico tem propriedade.
“O amor na ranchera está constantemente moldado pela coisificação da mulher, da declaração intencional da traição e até mesmo o feminicídio”, explicita Vaal.
Um exemplo disso é a música “El Preso Numero Nueve”, de autoria dos irmãos Roberto Cantoral Garcia e. Antonio Cantoral Garcia:
“Porque mato a su mujer y un amigo desleal
Dice así al confesar
Los maté si señor
Y si vuelvo a nacer
Yo los vuelvo a matar”
A pesquisadora, nascida em Tepic, no estado de Sinaloa, lembra que diversos destes temas persistem ainda hoje. Porém, nos últimos anos, com o ingresso de artistas mulheres e LGBTQIA+ na cena da música regional tem contribuído para contrapor a tradição machista.
“Há artistas mulheres como Vivir Quintana, que, em Canción Sin Miedo, fala sobre o feminicídio. Mais recentemente, o vocalista do Grupo Firme (banda de Tijuana fundada em 2014) veio à público se dizer gay. A entrada desses artistas ajudam a diversificar a identidade da música regional mexicana como um todo.”
A Revolução e a imagem do mexicano para o mundo
“Eu tento fugir da Revolução Mexicana [risos], mas ela teve um impacto muito grande”, responde Violeta ao ser perguntada sobre como aconteceu o processo de difusão da figura do mariachi e, consequentemente, da ranchera para o resto do continente latino-americano.
“Gosto sempre de fazer o paralelo com a Semana Moderna de 22, por que no caso dela também se pensou na identidade do mexicano e o que se desejava construir como futuro da nação”, complementa a pesquisadora.
As emboscadas que culminaram nas mortes de Emiliano Zapata, em 1919, e Pancho Villa, em 1923, não impediram que a Revolução Mexicana exercesse profunda transformação no tecido social e cultural do país nas décadas seguintes.
Nos motores do renascimento nacional, estava o muralismo de Orozco, Siqueiros e Diego Rivera, e a defesa de uma arte intrinsecamente popular. Data desse mesmo período os esforços mais amplos pelo indigenismo mexicano, estimulado por diversos achados arqueológicos das civilizações Maia e Azteca.
Na sétima arte, a pós-revolução deu espaço à “Época de Ouro do Cinema Mexicano”. Entre 1936 e 1956, o México dominou completamente a produção cinematográfica da América Latina, com um ritmo de 80 a 100 filmes por ano.
Diferentemente da pintura, a cinematografia mexicana da época optou por um nacionalismo menos político e mais prosaico, ao retratar temas da sociedade e da história mexicana a partir de gêneros como o drama romântico e a comédia. Através daqueles personangens, o público estrangeiro foi se familiarizando com uma imagem específica do mexicano comum.
E quem era ele? Fundamentalmente, o charro, o ranchero de sombreros largos e roupas batidas do campo. E se empunhavam violas e violões nas mãos, imediatamente se transfiguravam em mariachis.
Um dos resultados mais conhecidos desse casamento entre cinema e música de mariachi foi o próprio José Alfredo Jimenez. Ao longo da sua vida, Jimenez compôs cerca de 1000 canções, muitas delas regravadas por dezenas de intérpretes dentro e fora do México, e 25 filmes.
Outro nome com bastante circulação na época foi de Miguel Aceves Mejia, conhecido como “Rei do Falsete”. Sua interpretação da ranchera La malagueña salerosa é uma das mais lembradas até hoje, tendo inspirado a dupla sertaneja brasileira Chitãozinho e Xororó a reproduzi-la no disco Vida Marvada, de 2006.
Ao Sul
Com a ajuda de Jiménez e Mejía nas películas e também nas rádios, a música ranchera e o símbolo do mariachi decolaram rumo ao Sul do continente, onde se entrelaçaram às tradições de cada um dos países.
Segundo Christian David Portuguez Mosquera, colombiano de Cali e pesquisador da área de etnomusicologia pela Universidade Estadual de Campinas, esses trânsitos culturais entre o global e o local podem ser explicados pelo conceito de “glocalização”, formulado por Roland Robertson.
“No caso da Colômbia, o gênero [ranchera] se glocalizou. Os ídolos, as músicas, as vestimentas dessa música fazem alusão aos dois países. Como exemplo, temos os mariachis, grupos originalmente mexicanos, mas que na Colômbia passam a cantar músicas mexicanas e colombianas.”
Para o pesquisador, a glocalização no caso brasileiro é ainda mais particular, também devido à transposição linguística. “No Brasil, a ranchera foi ressignificada ao ponto de virar um gênero local. Ninguém fala de ‘ranchera brasileira’, e ninguém conecta ao México ao escutar sertanejo raiz”.
Taça da Dor, de Pedro Bento e Zé da Estrada, é considerada por muitos estudiosos da música popular brasileira como a primeira ranchera nacional. Tanto que a dupla natural do interior paulista ficou conhecida como “Os amantes da ranchera”, quando passaram a se vestir de mariachis nas capas de discos e também nos shows realizados no início da década de 1960.
Uma passagem da autobiografia de Pedro Bento, recuperada pelo pesquisador do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, Danilo Cymrot no artigo “Disseram que eu voltei mexicanizado: sertanejo raiz e a incorporação da canção rancheira”, dá detalhe do alvoroço gerado pelas indumentárias tradicionais mexicanas.
Afirma o pesquisador no artigo: “Pedro Bento relata que tinha gente que vinha aos shows só para ver os chapéus coloridos” e que, por causa da roupa, até hoje o povo pensa que eles são do México”.
Em entrevista concedida a Cymrot no final de 2015, Bento havia dito que a sua principal influência foi Miguel Aceves Mejía, a quem ouvia por disco e no rádio e viu cantar em Ribeirão Preto,em 1963. Pedro Bento faleceu em 2019, aos 84 anos.
Sobre a influência do rádio na difusão da ranchera mexicana, Cymrot lembra que Mejía era um dos artistas preferidos da programação de Zé Bettio, considerado um dos maiores radialistas da história do Brasil.
Recebendo cerca de cinco mil cartas por semana de fãs, Zé Bettio tinha fidelidade particular da audiência do interior brasileiro. Uma pesquisa publicitária feita por uma fabricante de caminhões na época chegou à conclusão que cerca de 68% de todos os caminhoneiros ouviam o programa do radialista.
A mistura entre a cultura mexicana e a cultura sertaneja serviu de inspiração musical e lírica a uma safra de sertanejos marcada por nomes como Milionário e José Rico, Belmonte e Amaraí, Tibagi e Miltinho, Nenete e Dorinho e o Trio Parada Dura.
À época, esses artistas, hoje reconhecidos como representantes da música sertaneja de raiz, foram acusados por críticos musicais e duplas mais antigas – como Tião Carreiro e Pardinho – de estarem “corrompendo uma música rural, folclórica e nacional” com modismos estrangeiros.
O uso de trompetes, trombones e outros instrumentos característicos das rancheras mexicanas explicavam parte da “fúria” pelos estrangeirismos cometidos por essa segunda geração de músicos sertanejos.
Eventualmente, com a virada do século e a chegada do sertanejo universitário, os acusados da época se transformaram em acusadores, percebendo-se hoje como bastiões de uma suposta “pureza” do gênero.
A tecnologização do espaço rural brasileiro e o contato mais próximo do sertanejo aos gêneros musicais urbanos, com pop e funk, foram levando a ranchera clássica a se tornar apenas uma das referências usadas das duplas atuais, mas, ainda assim, presente e profunda.