“Isso com certeza é do Paraguai”

Com um comércio associado muitas vezes às expressões “muambas” ou “produtos falsificados”, o Paraguai é um país fronteiriço ao Brasil que ganha preferência de compra de muitos brasileiros quando o assunto são produtos de consumo massivo e pessoal. Isso acontece graças aos preços em geral mais baixos em comparação aos brasileiros, impostos menos agressivos e burocracia de importação mais ágil. Mas essa relação bilateral tem raízes históricas que remetem ao século passado.

Para Sebastian Bogado, Adido Comercial da Embaixada do Paraguai no Brasil, a relação comercial entre os irmãos latino-americanos vai além de cigarros e eletrônicos baratos. Ela é muito apoiada também em commodities, como as principais soja e trigo, comercializadas por descendentes dos primeiros brasileiros que se estabeleceram na área rural do Paraguai, durante a década de 60.

“É uma população variada, mas que migrou para o Paraguai sobretudo no contexto da expansão da fronteira agrícola brasileira durante a ditadura militar e que casou com a expansão do Paraguai”, explica Fábio Luiz Barbosa dos Santos, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Programa de Pós-Graduação de Integração Latino-Americana da USP (Prolam).

A existência dos “brasiguaios”, aos quais Fábio se refere como os grandes produtores de soja brasileiros no Paraguai, e os conflitos históricos entre os dois países de fato impulsionaram as relações comerciais bilaterais. “A Guerra-Guaçu é um divisor de águas na história do Paraguai porque reordenou as relações agrárias de um país que não tinha coronelismo latifundiário e que perdeu sua trajetória autônoma, tornando-se um país satélite da Argentina e do Brasil, principalmente após a segunda grande Guerra Mundial”, explica.

Guerra-Guaçu (“guaçu” é grande em guarani) foi o que conhecemos aqui no Brasil como a Guerra do Paraguai ou a Guerra da Tríplice Aliança do ponto de vista do Paraguai que envolveu os países da bacia platina (Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai). A terminologia é usada aqui para quebrar estereótipos dos vencedores sobre o Paraguai.

Após décadas de reconstrução, os países convergem naquilo que era o bem mais precioso e comum aos dois: a terra. “Sem dúvida os setores ligados ao agronegócio são os que mais souberam aproveitar o relacionamento comercial entre os países”, complementa o Adido Comercial, Sebastian Bodago.

Ponte da Amizade e Corredor Bioceânico

Para se ter uma noção, a ponte que liga a cidade Foz do Iguaçu, no Brasil, à Ciudad Del Este, no Paraguai, é a mais movimentada do lado brasileiro. Batizada de Ponte da Amizade, a travessia tem fluxo diário acima de 41 mil veículos, de acordo com a Pesquisa de Tráfego e Perfil de Turistas na Tríplice Fronteira, de 2022.

Realizada por estudantes do Centro Universitário UDC, em Foz do Iguaçu (RS), o estudo também revelou o tráfego e o perfil das pessoas que cruzam a fronteira entre os países: 83,4 mil é o número total de viajantes, 70% deles são homens e estão na faixa etária de 35 a 49 anos. São Paulo é o segundo estado com maior número de passageiros entre os países, perdendo apenas para o Paraná e à frente de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

O comércio é a principal razão para se cruzar a Ponte da Amizade, motivo elencado por mais de 33% da população consultada pela pesquisa. De eletrônicos a cigarros, a relação comercial com o Paraguai – e especificamente com Ciudad del Este – é uma grande referência para o comércio brasileiro e abastecimento local, como nos centros comerciais do Brás, Lapa e da 25 de março, todos em São Paulo.

“Também merece destaque a ponte que está sendo construída entre as cidades de Porto Murtinho, no Mato Grosso do Sul, e Carmelo Peralta, no Paraguai”, lembra Bogado. Chamada de ponte da Bioceânica, essa estrutura faz parte da Iniciativa para a Integração Regional Sul-Americana e pode viabilizar a malha rodoviária do Brasil ao Corredor Bioceânico.

Ele tem o objetivo de unir o oceano Atlântico ao Pacifico pelas vias terrestres do centro-oeste brasileiro, Paraguai, Bolívia, Chile e Argentina, além de aproximar os países latino-americanos dos mercados asiáticos. Com essa vantagem logística, o mercado brasileiro ganha competitividade com seus irmãos latino-americanos e com a Ásia, diminuindo a rota marítima em mais de 9 mil quilômetros, por exemplo.

Principal rota de contrabando

Apesar dos atrativos de preços, impostos e de logística, ainda há muita nebulosidade sobre o contrabando do mercado paraguaio na fronteira com o Brasil. Em 2022, os cofres públicos brasileiros perderam mais de R$ 410 bilhões de reais devido atuação do mercado ilegal, de acordo com o Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade. Ainda conforme o órgão, a principal rota de contrabando é na fronteira do Brasil com o Paraguai.

De acordo com o Balanço Aduaneiro de 2022, realizado pela Receita Federal, o valor de mercadorias apreendidas em operações do órgão no Brasil ultrapassam 3 bilhões de reais. Apesar do setor de vestuário representar quase 25% do rombo fiscal, ele não é o maior responsável pelo contrabando entre o Paraguai e o Brasil. Esse protagonismo fica para o cigarro. No último ano, foram 162 milhões de maços de cigarros apreendidos em valor aproximado de 810 milhões de reais, representando 27% do valor total apreendido.

A maioria dos cigarros contrabandeados no Brasil tem sua produção no Paraguai e a porta de entrada de todo esse produto são as fronteiras terrestres das regiões sul e centro oeste. “O Paraguai produz 65 bilhões de cigarros e consome 2 bilhões. O resto é tudo contrabandeado. Não tem nenhuma exportação legal de cigarro para o Brasil”, reforça Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidades.

Preconceito

De acordo com o pesquisador do Institut de Recherche pour le Développement (IRD), Sylvain Souchaud, o comércio do Paraguai ainda é esvaziado de sentido e muitas vezes taxado com expressões pejorativas haja vista o alto número de contrabando e produtos falsificados comercializados dentro do Brasil.

”Ainda há muito preconceito baseado em desconhecimento ou em experiências antigas que podem remontar ao século passado, como o de considerar que o comércio é composto por produtos falsificados”, complementa Bogado. Essa é uma das razões pelas quais expressões como “produtos do Paraguai” são populares entre os brasileiros.

É certo que ainda existem comércios ilegais de produtos falsificados do lado paraguaio, mas o mesmo também pode ser dito para bairros populares do Brasil e outras regiões. “Isso acontece com a imagem do Paraguai assim como acontece com a imagem de outros povos, alguns até no próprio Brasil, como o preconceito sofrido pela população do nordeste brasileiro quando vai para os estados das regiões Sul e Sudeste”, compara Bogado.

Baseado em uma construção histórica de identidade dos povos que teve como objetivo fundamental nos afastar enquanto irmandade latino-americana, os brasileiros preenchem de estereótipos as identidades de paraguaios, bolivianos, argentinos e venezuelanos, avalia o professor Fábio Barbosa. “Às vezes a realidade muda, melhora, evolui, mas a massa continua arraigada às ideias antigas”, complementa Bogado.

“A gente tem que se conhecer como quem vai lutar juntos”, destaca Barbosa parafraseando o intelectual cubano José Martí. Para ele, a desconstrução das identidades que nos afastam é essencial para uma nova América Latina, assim como o interesse cultural pelos países irmãos do continente.