Por Beatriz Herminio, Guilherme Caldas e Sofia Kercher
Com o fechamento do Congresso e o controle sobre o Poder Judiciário, o exército extinguiu os partidos políticos, instalou a censura e eliminou direitos trabalhistas. A isso, somaram-se as torturas e perseguições a opositores do regime.
No presente, os que buscam prestar tributo àqueles que foram assassinados pela ditadura participam da tradicional marcha La Romería, na qual ecoa o grito “Ni perdón, ni olvido” (“Não perdoe, não esqueça”). Mesmo com o fim do governo de Pinochet, os efeitos econômicos, sociais e culturais da ditadura chilena permanecem até hoje no país.
“Foram tantas as atrocidades cometidas pela ditadura chilena e penetraram tão fundo na população como um todo, que tornou-se impossível cada 11 de setembro, dia do Golpe de Estado, passar despercebido, ainda mais esse ano quando se completaram cinquenta anos do fatídico episódio”, afirma o diretor do Centro de Estudos de História da América Latina da USP, Horácio Gutierrez.
Do socialismo democrático a laboratório do neoliberalismo
O médico Salvador Allende já havia concorrido à presidência três vezes antes das eleições de 1970, em que foi eleito com 36% dos votos – à frente de Jorge Alessandri, com 34,9%, e de Radomiro Tomic, com 27,8%. A ausência de maioria absoluta dos votos obtida fez com que a eleição de Allende fosse submetida à aprovação do Congresso Nacional, que acabou por corroborar a decisão popular.
Natural de Valparaíso, Salvador Allende era membro da Unidade Popular (UP), uma coalizão de partidos de esquerda formada para a disputa eleitoral de 1970. Sua vitória demonstrou a possibilidade de se obter uma experiência socialista por meio do voto na América Latina, que tinha como exemplo as conquistas da Revolução Cubana de 1959.
Entre as medidas tomadas pelo presidente estavam a melhora na distribuição de renda e a nacionalização de indústrias, bancos e da mineração – o país é um dos maiores produtores mundiais de cobre. Além disso, Allende buscou dar continuidade a reforma agrária iniciada no governo anterior. O Chile era, no começo do século XX, um país cuja estrutura rural era determinada por latifúndios e por uma rígida hierarquia social. As medidas, no entanto, provocaram reações internas e externas ao país.
Ainda inseridos no contexto da Guerra Fria, os Estados Unidos tiveram um papel importante na aniquilação da democracia chilena, especialmente por meio da Agência Central de Inteligência (CIA).
“O Golpe de 1973 foi arquitetado por poderosos setores do capital industrial e financeiro chileno e transnacional, principalmente estadunidense, com a finalidade
de recuperar privilégios que tinham perdido”, explica Gutierrez.
Allende morreu no dia do golpe, e a causa de sua morte é motivo de controvérsias no país. Segundo a justiça chilena, ele teria cometido suícidio enquanto o Palácio de La Moneda, sede da Presidência da República, sofria ataques aéreos e terrestres.
“Presidente, os militares já invadiram o primeiro andar e nos deram 10 minutos para descer”.
Durante um instante me olha profundamente de longe e sinto que será definitivo, que o final se aproxima. Ouço dizer: “Desçam todos. Deixem as armas e desçam. Eu serei o último”. Em fila, meus companheiros descem, eu continuo olhando para o presidente que anda em direção ao salão Independência. Ao atravessar a porta de Morandé, 80 sou levado, com as mãos na nuca, a me apoiar no sólido muro do palácio. Atrás de mim, alguém soluça. É Enrique Huerta, o intendente do palácio. “O que está acontecendo, Enrique?”, inquiro. “O presidente está morto”, me disse desolado. Entrou no salão Independência, sentou-se em uma cadeira grande de cor vermelha, e se suicidou. Estava sozinho. Nenhum militar tinha chegado ao segundo andar. – [Extrato de Allende, a biografia, de Mario Amorós, jornalista e historiador espanhol. O relato é de Óscar Soto, médico do presidente]
Atualmente, uma das principais causas de descontentamento da população chilena reside na Constituição vigente no país, criada em 1980 durante o governo de Pinochet. Após uma revolta popular que desencadeou manifestações em 2019, o Chile aprovou, em 2020, a substituição da Carta Magna.
“Durante muitas décadas, muitas das tentativas de reforma foram bloqueadas pois esbarravam em artigos da Constituição, criada durante o período militar”, lembra o doutor em estudos latino-americanos pela Universidade do Chile, Enrique Riobo.
Um exemplo disso é a presença de artigos que dificultam a implementação de políticas sociais de combate à exclusão no país e o acesso a serviços essenciais, além de ter como princípio um Estado subsidiário.
O artigo 19 da Constituição chilena, por exemplo, diz que não é papel do Estado atuar em áreas que podem ser geridas pela iniciativa privada, o que torna o país dependente de serviços privatizados em áreas como saúde, educação e previdência.
“A Constituição pinochetista não garantiu direitos sociais para a população, apenas direitos individuais como a propriedade privada. As demandas principais em relação a uma nova Constituição são que o Estado volte a ser um Estado social e democrático”, diz Gutierrez.
Segundo Riobo, o Estado só aparece como última possibilidade, depois que a iniciativa privada demonstra incapacidade de suprir as necessidades da população.
“Há uma mudança muito intensa que afeta a população e tem um efeito cultural muito forte no sentido do que hoje parece ser um individualismo extremo, uma lógica de competitividade, uma ideia de ‘cada um por si’”, declara o chileno, que atuou como assessor de gabinete na subsecretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça já no mandato de Gabriel Boric, atual presidente do país. Para ele, não há dúvidas de que o golpe abriu o Chile para o neoliberalismo.
Os chamados Chicago Boys eram economistas chilenos, em maioria pós-graduados pela Universidade de Chicago, considerados os primeiros a aplicar na prática os pensamentos neoliberais do que foi chamado de “milagre do Chile” pelo teórico desta corrente, Milton Friedman.
“Pela via democrática, passando pelo congresso, não havia meios de se implementar o que queriam os Chicago Boys. Só o autoritarismo é que permitiu esse laboratório no Chile”, ressalta o mestre em história pela USP, Adir de Almeida Mota.
Entre os principais nomes deste grupo estavam Jorge Cauas, ministro das finanças de Pinochet entre 1975 e 1977, e Sergio de Castro, que ocupou o cargo de 1977 a 1982.
Memória e história
Desde seus primeiros dias, a ditadura de Augusto Pinochet teve a repressão e a violência como algumas de suas marcas mais fortes.
Nos primeiros meses do regime, pela incapacidade de alocar tamanho número de presos políticos, o Estádio Nacional do Chile, em Santiago, tornou-se uma espécie de prisão para mais de 40 mil militantes de partidos de esquerda e opositores do governo. Estimativas apontam mais de 300 mortos no local.
“As violações aos direitos humanos cometidas pela ditadura são até hoje os mais extremos e mais graves atos de violência já vistos no Chile, e as consequências desses atos são até hoje o cerne do debate sobre direitos humanos no país”, explica Riobo.
Uma das técnicas de repressão utilizadas pelo governo chileno foi o chamado “degredo”. Mota afirma que a técnica, considerada menos violenta que as torturas e assassinatos que o governo também cometeu, tinha como objetivo evitar alarde sobre a repressão.
“O degredo é mais utilizado no fim dos anos 70 e início dos 80, quando o povo já se mostrava bastante insatisfeito com o governo”, explica. “A punição consistia em mandar agitadores políticos e guerrilheiros para regiões muito remotas do Chile, em áreas desérticas e rurais. Isso separava grupos organizados e enfraquecia mobilizações contrárias ao governo.”
Até hoje, a violência da ditadura deixa marcas na população. O número de mortos e desaparecidos é incerto, mas estima-se um total de mais de 3 mil vítimas.
Entre elas, está o cantor e poeta Victor Jara que, aos 40 anos, foi torturado e morto em um ginásio localizado na capital do país, que também foi usado como prisão improvisada nos primeiros dias do regime. Desde 2003, o antigo Estádio Chile leva o nome de Jara.
A longa despedida de Pinochet
Essa não é a primeira vez que o país tenta se desvencilhar da herança de Pinochet. Em setembro de 2022, a população do Chile foi às urnas votar por uma nova Constituição. Resultado: 61,8% dos chilenos votaram contra a proposta — fazendo do país o primeiro na história da América Latina a ter uma Constituição negada por plebiscito popular.
Há algumas razões para tal. Nesse primeiro processo, houve uma maior abertura para movimentos sociais e candidaturas independentes. Dos 155 membros eleitos em maio de 2021 para redigir a Carta Magna, 17 cadeiras foram ocupadas por povos originários – contra apenas uma no processo atual, iniciado em 2023.
O resultado foi uma proposta de Constituição progressista, que previa uma ampla agenda ecológica, direitos trabalhistas e direitos da mulher (incluindo a legalização do aborto). “Na época, os setores de esquerda e centro esquerda estavam indo muito bem como instituição, e as coisas iam muito mal para a direita”, relembra Riobo.
No final de 2021, Gabriel Boric teve vitória sobre o candidato de extrema direita José Antonio Kast nas eleições presidenciais. Quando a proposta de Constituição foi apresentada em setembro de 2022, contudo, Boric estava com quase 70% de desaprovação popular, especialmente devido à crise econômica que assolava o país. Isso somado ao alastramento das fake news e à obrigatoriedade do voto, a desaprovação da Constituição foi quase um movimento de “vingança” contra o presidente.
“A Frente Ampla [coligação política chilena, composta sobretudo por partidos de esquerda] não cumpriu um papel muito feliz naquele contexto”, opina Riobo. “Foi incapaz de articular os setores institucionais com os setores que estavam fora da institucionalidade de esquerda, o que acabou excluindo os setores mais à esquerda da perspectiva institucional. Isso amplia a ‘lógica identitária’ em vez de reduzi-la.”
Ele acredita que isso foi um erro político da Frente Ampla e que influenciou a perda da proposta constitucional. “Houve setores que viam a nova Constituição como a destruição do Chile, e eles acabaram conseguindo convencer a população chilena de tal.”
Desde o início de 2023, o Chile promove um novo processo constitucional. Dessa vez, 51 parlamentares foram eleitos na expectativa de que uma nova Carta Magna substitua o texto atual – tentando deixar, finalmente, essa parte do legado da ditadura para trás.
“As principais demandas em relação a uma nova Constituição são que o Estado volte social e democrático, que aceite e valorize a pluralidade, e que tenha um compromisso central com o respeito aos direitos humanos”, explica Gutierrez.
Mas nem tudo são flores. No conselho constitucional, 33 membros são de partidos da direita. “Agora, o processo tem um caráter bastante partidarista”, diz Riobo. “Há elementos religiosos, movimentos de redução de impostos, somados a acusações de uma falta de rigor no trabalho de elaboração da Constituição – muitas coisas estão incertas.”
Cada vez mais, os chilenos veem a decisão como um erro, especialmente porque o processo ocupa muito da rotina política do país. A perspectiva atual é de que a decisão está impedindo melhorias concretas no dia a dia da nação, uma vez que a Constituição é um problema estrutural, e não necessariamente se expressa nos aspectos da vida cotidiana.
É nesse cenário agridoce que o Chile tenta deixar, ainda sem sucesso, o legado de Pinochet para trás. Por um lado, a Frente Ampla vê como a melhor alternativa a rejeição da nova Constituição, dado que, da maneira como está elaborada, estenderia a posição do país enquanto laboratório neoliberal. Por outro lado, com o povo já desiludido em relação ao movimento constitucional, um novo “não” pode ser a gota d’água para o descarte completo de uma nova Constituição.
Não há saída fácil. Meio século depois, a ditadura insiste em cravar as garras nas instituições chilenas. “Hoje, o Chile é um país muito polarizado. Quando fui visitar o Museu da Solidariedade Salvador Allende, resolvi perguntar para alguém [sobre sua percepção da ditadura]. Falando com um senhor, a resposta dele foi ‘eu sou militar, não falo com comunistas’. Ele me identificou como um por estar visitar um museu que homenageia Allende”, relembra Adir Mota.
“Ao mesmo tempo em que não há muita menção ao socialismo, fica no ar uma ideia de descontentamento com o que sobrou da ditadura. Também há uma memória de preservação da ditadura muito grande com pessoas mais velhas, militares. É nítida a luta de classes”, conclui.