Entre a espada e a cruz: as aparições marianas na América Latina

“Rogai por nós”, é o que pedem os fiéis da igreja católica à mãe de seu Messias, Maria. Na América Latina, o clamor parece ressoar mais do que em qualquer outro canto do globo. O continente americano concentra a maior proporção de católicos: são 64,1 fiéis por 100 habitantes, segundo o último Anuário Pontifício, divulgado em outubro deste ano pela Agência Fides.

Teria sido o próprio Jesus quem teria a entregue a seus fiéis como figura materna, segundo as escrituras bíblicas: “Aí está sua mãe”, disse apontando Maria a um de seus discípulos, narra o evangelho de João.

A suposta virgem tomou forma de protetora na região sul do continente americano, com cada uma de suas aparições associando características de seus crentes nos locais onde se mostrava a eles.

Ao mesmo tempo que Maria assume o papel da mãe de povos que sofrem e buscam o perpétuo socorro, ela também é símbolo da colonização que assolou o continente.

“A virgem de Guadalupe é uma das respostas religiosas mais inteligentes da evangelização cultural”, afirmou Martha Robles, que escreveu o capítulo “La Virgem Maria de Guadalupe y la Diosa Madre Tonantzin”, integrante da coletânea de artigos “Virgenes y Diosas de América Latina”, publicada originalmente em espanhol .

Segundo a autora, a imagem das padroeiras serve de instrumento para gerar união nacional sob um símbolo aparentemente milagroso, a solução para um sofrimento coletivo que a América Latina foi levada a acreditar ser inevitável.

Para Robles, o culto às aparições marianas na América Latina é dotado de uma “ambiguidade engimática”. No âmbito particular, a santa parece capaz de resolver as mazelas pessoais das famílias, em uma “devoção doméstica à sua misericórdia”, e coletivamente, “um emblema de um povo desprovido de outras divisas de identidade dotadas de importância semelhante”.

Em algumas regiões, a devoção à mãe do Cristo se tornou símbolo político. O exemplo mais proeminente é Nossa Senhora de Guadalupe, a padroeira do México e de toda a América Latina. Ela apareceu como símbolo em 1810, na luta pela independência do país, e em 1914, quando os zapatistas entram com a imagem dela na Cidade do México.

Também no Chile, símbolos europeus e coloniais católicos foram retomados e ressignificados por revoluções. A devoção à Virgem do Carmo, de origem europeia, se espalhou pela América espanhola durante o processo de colonização. No entanto, durante a luta pela independência chilena no início do século 19, ela foi proclamada patrona do exército andino. Na versão latina, a Virgem do Carmo ganhou uma cruz de Maipu, símbolo do povo chileno.

No Brasil, a aparição de Nossa Senhora Aparecida ajudou a criar uma identidade católica nacional. Dois pescadores teriam tirado a imagem das águas do Rio Paraíba do Sul – estátua esta que reside no Santuário Nacional Aparecida, o maior templo no mundo dedicado a Maria, segundo informações da própria instituição.

Aqueles que resgataram sua imagem, ao perceber a cor da pele de Aparecida, teriam comentado: “negra feito o nosso povo”.

Na região do Vale do Paraíba, a imagem de Maria movimenta a economia e o turismo. Todos os anos, perto do dia 12 de outubro, data dedicada à santa, multidões caminham até o Santuário, ocupando as estradas, hotéis e comércio da região.

Uma estimativa da instituição religiosa informa que mais de 100 mil romeiros passaram pela Basílica no feriado da Padroeira em 2023. Diversas missas foram realizadas, cada uma com lotação máxima de 35 mil fiéis. A imagem de Nossa Senhora Aparecida – a original, aquela encontrada no rio – fica exposta em um mosaico dourado reluzente. No dia em que a santa é celebrada nacionalmente, a fila para vê-la chegou a exigir 40 minutos de espera.

A santa padroeira da Bolívia é Nossa Senhora de Copacabana. Se o nome não é estranho, é porque o bairro mais famoso do Brasil foi nomeado em homenagem à mesma aparição mariana. Comerciantes bolivianos e peruanos chegaram ao Rio de Janeiro no século 17, trazendo uma imagem de Maria – que acabou por nomear o bairro do calçadão.

Maria faz parte não somente das orações, mas também da política, economia e sociologia do sul latino. Nas palavras da pesquisadora Martha Robles, “é a figura feminina por excelência em uma terra de órfãos”.