Nascido no Bronx em 1933 e repórter na América Latina há mais de seis décadas, Norman Gall aponta para duas fotografias tiradas por ele, expostas no alto da parede de sua sala de leitura, e conta: “este homem se chamava Spiro California, ele foi o rei dos ciganos no Chile, e a mulher era sua esposa, chamada Rosa Pontich, eles vieram da Iugoslávia”.
O casal romani fotografado em 1964 possui um semblante semelhante entre si. O rosto de Rosa aparece ao redor de uma peça de tecido branca acima de seu vestido florido, combinando com o chapéu branco e a gravata com padrões de folhas usada por seu marido Spiro, que olha com seriedade para a câmera e exibe o formato característico de um maço de cigarros no bolso esquerdo da camisa.
A fotografia não foi planejada, Norman conta que era correspondente especial do Washington Post na época, cobria a posse do ex-presidente chileno Eduardo Frei Montalva e se locomovia com um táxi pelo país: “eu tive um orçamento do Washington Post, não era generoso, mas me permitiu contratar um táxi, e acabei encontrando este acampamento por acaso, totalmente por acaso”.
Na beira da rodovia Pan-Americana ele para e conversar com o grupo. Dali surgiram tanto as fotografias e uma matéria, publicada em 6 de dezembro de 1964, intitulada “Rei dos ciganos do Chile promete nunca desistir de sua vida nômade”, a história da disputa entre os grupos de Augusto Nicovich e Spiro California, ambos auto proclamados rei dos romanis chilenos.
Nicovich jurava que nunca se assentaria, dizia a matéria: “eu nasci numa tenda e morrerei numa tenda, há muita liberdade no Chile e somos amigos da polícia. Não queremos que nossas mulheres vistam vestidos comuns. Gostamos da estrada e das tendas”, ele contava para Norman enquanto mostrava orgulhosamente sua certidão de cidadania chilena e uma espécie de certificado que o permitia portar armas.
Já Spiro California vivia próximo do acampamento, mas num agrupamento de casas de alvenaria. Ele era herdeiro de Francisco California, que havia falecido em 1957 e deixado seu título de rei reconhecido dos romanis.
“Eu sou o Rei dos ciganos no Chile,” contava para Norman: “Há muitos chefes de famílias, mas apenas um rei. Eu não recebo nenhum dinheiro dos ciganos para guiá-los, apenas ajo como juiz entre eles e intervenho por eles com as autoridades, pois tenho conexões.”
Spiro dizia ser amigo de Eduardo Frei, que acabava de ser eleito presidente do Chile: “eu era amigo do Presidente Frei, nas eleições de setembro os ciganos apoiaram Frei, eu consegui 2210 votos para os Democratas Cristãos e fizemos uma caravana de 55 caminhões para eles, somos democratas, e não comunistas.”
A matéria de Norman também relatava as esperanças de Spiro para aprimorar a vida dos romanis: “os ciganos deveriam deixar a vida nômade, eu comprei três casas em Santiago e alguns de meu povo entraram no comércio atacadista.
Nós queremos que nossas crianças estudem nas escolas, o único problema é que os garotos apanham quando ficam nas escolas públicas comuns. Eu acho que teremos que começar uma escola especial para ciganos. Apenas os analfabetos querem continuar na estrada”.
A matéria de 1964, curiosamente, exibia apenas duas fotografias, a de Augusto Nicovich e a de Rosa Pontich, que não era mencionada na matéria, sem fotos de Spiro.
O jornal argentino La Nación, de maio de 1957, contava mais do passado dessa disputa e a repercussão da morte de Francisco California, chamando-o de rei dos ciganos da América Latina e a longa discussão entre sua filha, Teresa California, e José Nicolich. Spiro tinha 45 anos na época e se encontrava no Equador, de acordo com sua irmã ao jornal. José era um democrata cigano e se dizia inimigo da monarquia, enquanto Teresa rebatia as críticas e contava das boas ações de seu pai.
Após a conversa de Norman com o acampamento e a publicação de sua matéria, há muitos artigos e livros que citam o nome de Spiro California. No livro “Allende, el hombre y el político: memorias de un secretario privado”, de Ozren Agnic, o autor conta de um encontro interessante com a filha dele: “comentaram que a sua tribo era da Bósnia e Herzegovina, Iugoslávia. Uma delas era ninguém menos que a filha do rei dos ciganos do Chile, Spiro California. Ele me disse que seu pai, o Rei, simpatizava com a ideologia política de Salvador Allende e que seria interessante que nos encontrássemos.”
O nome de Spiro também é citado no livro “El Ultimo Tango de Salvador Allende”, de Roberto Ampuero, e em “Violeta Se Fue a los Cielos” de Ángel Parra, em que era lembrado como o homem que comandou os romanis allendistas, indicando uma continuação de seus laços com políticos chilenos. Seu legado com o povo romani no Chile é lembrado inclusive em novelas como “Romané”, lançada em 2000, que tratava da cultura deste povo e tinha membros herdeiros da família California entre os personagens principais.
Spiro California morreu em Julho de 1972. Houve 3 dias de velório e uma série de celebrações, um recorte de um jornal chileno desconhecido dizia após o anúncio de sua morte em letras garrafais que Spiro deixou 18 filhos e 60 netos, e sobre seu desejo de uma vida sedentária, dizia: “O fabuloso monarca Spiro California queria viver em um chalé construído por suas próprias mãos”.