Dissecando o true crime

Aos 18 anos, o americano Steven Hicks achou que era uma boa ideia pedir carona a um estranho na beira da estrada, o que nos anos 70 era algo comum. Um homem aceitou levar o jovem hippie, mas propôs uma pequena escala antes do destino final. Na parada, o motorista levou Steven até sua própria casa onde o embebedou, o espancou com um halter e o estrangulou até a morte. Depois, desmembrou seu corpo, queimou as partes num forno elétrico, se livrou das cinzas e enterrou os ossos que sobraram no quintal de sua casa.

Essa descrição é do primeiro assassinato de Jeffrey Dahmer, um serial killer americano cuja história foi transformada em série de TV. Desde seu lançamento, a produção da Netflix “Dahmer: Um Canibal Americano” (2022), já alcançou mais de 196 milhões de pessoas, o que equivale a mais de 2.500 Maracanãs lotados assistindo à história da sequência de barbáries.

 

O termo “true crime”, que vem do inglês e significa crime real, é utilizado para denominar produções audiovisuais como filmes, documentários, podcasts e séries que retratam as histórias de atrocidades verdadeiras, expondo detalhadamente as ocorrências brutais, as investigações policiais e as consequências do que aconteceu. 

E por que tanta gente se interessa por histórias de virar o estômago?

O estudante Vinicius Garcia, de 21 anos, conta que já assistiu a documentários de crimes reais todos os dias. “Às vezes, eu até acordava mais cedo do que realmente era necessário para poder ver pelo menos um episódio. Era algo que me motivava a pular da cama.”

Para ele, o interesse veio antes por produções documentais no geral do que pelo tema de true crime, que por serem os que fazem maior sucesso, acabaram caindo no gosto do estudante: “meu amor por documentário foi virando amor por crimes reais. Então, sempre que eu ia escolher um próximo para assistir, não ia escolher um da National Geographic sobre um urso polar, escolheria um da Netflix sobre um crime porque eles geralmente têm sempre o mesmo formato que me agrada.”

Minéia Esteves, diretora administrativa, prefere ver filmes e séries nos quais as atrocidades têm solução, “que o culpado já tenha sido identificado e entender a forma como a polícia investiga os casos.” Ela entrou neste mundo dos fãs de true crime muito antes do “hype”, nos anos 90, quando assistia ao programa Cidade Alerta, que  mostrava encenações de crimes.

O psiquiatra Daniel Barros explica que isso é comum: “é muito prazeroso para o cérebro humano resolver questões, encontrar respostas”, então o apelo do gênero true crime não vem tanto da curiosidade pela violência, e sim pela investigação, pelo desvendar dos mistérios que envolvem os crimes. 

Além disso, outro fator importante que explica o interesse da sociedade por esse tema é também a figura do vilão: “nós gostamos de vilões porque eles representam o sujeito sem freio, sem restrições da sociedade e temos curiosidade em ver como é viver sem regras. Ver eles se darem mal no final por terem feito o que fizeram também é um ponto.”

Minéia diz que, a partir dos filmes, passa a ficar mais atenta ao seu redor e às formas de se proteger de possíveis crimes. Dr. Barros explica que essa relação que a diretora estabeleceu com os programas que assiste pode ser perigosa em alguns casos, pois existem pessoas que desenvolvem sintomas de ansiedade ao ficarem muito expostas a esse tipo de conteúdo: “nosso cérebro molda a nossa visão da realidade a partir daquilo que vemos”. A pessoa que cria essa realidade ilusória pode acabar ficando sob a impressão de que esses crimes são rotineiros e isso pode trazer um desgaste psicológico, ansiedade e insegurança.

Vinicius, por sua vez, não sente medo dos filmes exatamente por ter consciência de que, como Daniel explica, esses casos não são rotineiros e estão muito distantes da sua realidade: “crimes realizados nos Estados Unidos, na minha visão, têm muito a ver com a falta de segurança nas casas dos subúrbios americanos. Simplesmente não tem muro, não tem grade, não tem portão, você pode chegar até a porta, pode chegar até a porta de trás, pode chegar em todas as janelas, pode chegar no telhado, então eu vejo esses crimes e não sinto medo, porque eu moro num prédio. Não tem como um maluco sair com uma faca pela rua e abrir minha janela, entrar no meu quarto e me dar uma facada, sabe?”. 

Mas, essas barbáries não estão tão distantes assim. Inclusive, às vezes, estão dentro de casa. Como é o caso Richthofen, um dos crimes mais famosos do Brasil, no qual Suzane Von Richthofen, a filha mais velha de uma família da elite paulistana, ordenou e colaborou com o assassinato de seus pais, que foi executado por seu namorado e seu cunhado, os irmãos Cravinhos.

Em 2020, o diretor e cineasta brasileiro Maurício Eça lançou dois filmes sobre este caso: “A Menina que Matou os Pais” e “O Menino que Matou meus Pais”, ambos estrelados por Carla Diaz. Na semana seguinte ao lançamento dos filmes, as buscas no Google pelo nome “Suzane von Richthofen” subiram 560%, de acordo com dados da própria plataforma. 

dois posteres lado a lado das produções

Maurício conta que o gênero é muito delicado e que há muita coisa envolvida: “A maior dificuldade em retratar casos reais na ficção é o cuidado com a história em si, o cuidado em contar algo tão sério sem ultrapassar o limite”. Ele reforça que é extremamente necessário estudar e respeitar o processo judicial, especialmente em casos de tanta força.

O diretor, entretanto, mesmo trabalhando com temas difíceis como esses, se mostra positivo em relação aos impactos de obras true crime: “Acredito que é muito importante que possamos entender melhor a mente humana e esses filmes podem ser um caminho para isso.”

Por Adriana Teixeira e Sofia Kassab