Quem controla sua energia?

Funcionários da Eletrobras lutam para associar a privatização da empresa a uma perda econômica nacional

“Você acha justo entregar estatais brasileiras para estatais chinesas? Você entrega estatais estratégicas como a de geração e transmissão de energia a estatais de outros países ou para capital externo, quem vai propor o preço desse bem aqui? Vai ser eles. Eles vão investir aqui para que? Para você ter felicidade ou para eles terem dinheiro? No passado, alguém poderia fazer [a Usina de] Itaipu? Alguma empresa privada poderia fazer Itaipu? Teria que ser a União, ok? Em parte alí, os governos militares fizeram isso aí. Entre mais de 20 hidrelétricas no Brasil. E agora o pessoal critica os militares, e querem entregar nossa energia para o capital externo. Aí que tá errado! Vem os liberaiszinhos (SIC) da vida, acostumados a tomar [Nes]quik de manhã e Danoninho o dia todo, né? E ficar com a vovó vendo televisão à tarde. Me criticando de estatizante. Então venda sua casa e alugue-a; venda teu carro e alugue teu carro! Não é assim que funciona. Qual país do mundo entrega a sua energia para outros países?”

— Jair Bolsonaro, data indeterminada antes da eleição de 2018, em vídeo recuperado no canal do YouTube da Federação e Confederação Nacional dos Urbanitários.

No dia 14 de junho de 2022, foi concluída oficialmente a privatização de uma das maiores estatais brasileiras, com uma cerimônia na bolsa de valores, a B3. O presidente Jair Bolsonaro esteve presente, mas não discursou.

Já seu ministro da economia à época, Paulo Guedes, fez uso da palavra e pensou em uma analogia para ilustrar o simbolismo do momento: “A empresa é como um filho que saiu de casa, não precisa mais de proteção do estado. Tinha esgotado a capacidade de investimento, estava perdendo fôlego. Ela precisa investir R$ 16 bilhões ao ano só para garantir sua fatia de mercado, mas não conseguia investir mais do que R$ 3 bilhões.”

Diferente de outros processos de privatização, a venda da Eletrobras aconteceu com a diminuição da participação do governo nas ações de 72% para 43%. Além disso, a influência do governo também ficou contida por outro dispositivo, compreendido no modelo de “corporation”, no qual é vedado a qualquer acionista exercer o direito de voto com mais de 10% das ações votantes, independente de seu peso acionário.

A gravação de uma reunião interna, obtida pela Folha de S. Paulo e publicada em 11 de junho de 2023, mostrou como a gestora 3G Radar, subsidiária do grupo 3G Capital — mesmo com apenas 1,3% do capital total e 0,05% das ações ordinárias, que dão direito a voto — conseguiu ocupar posições no conselho de administração da empresa, definindo a diretoria e traçando estratégias, através de vínculos especiais estabelecidos desde o governo Temer.

O grupo 3G Capital, dos empresários Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles, também é apontado pelo ex-CEO da Americanas, Miguel Gutierrez, em carta a CPI da Câmara dos Deputados, como participante ativo na gestão financeira da empresa, quando revelou-se uma fraude contábil de R$ 25 bilhões, maior da história brasileira.

Para viabilizar a operação entraram na negociação duas instituições evidentemente públicas, de diferentes nacionalidades. O antigo Government of Singapore Investment Corporation (atual GIC Private Limited), parte da reserva soberana do país do sudeste asiático, responsável por administrar mais de U$ 100 bilhões, e o CPPIB canadense (Canada Pension Plan Investment Board), formado com a contribuição dos trabalhadores canadenses, serviram de investidores-âncora, garantindo o valor de venda das ações e criando mais interesse para os investidores privados com menos capital.

Reunião da CPI das Americanas,  presidida pelo Dep. Gustinho Ribeiro.  Nessa sessão foi apresentado o plano de trabalho do relator, Dep. Carlos Chiodini (MDB – SC)
Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Quem é afetado por isso?

Um fator determinante para garantir interesse do capital privado para a extração de lucro da empresa é a descotização. É uma mudança no regime de comercialização da energia, que em termos práticos significa determinar os preços conforme o mercado livre de energia. Segundo o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), essa mudança equivale a injeção de novos R$ 67 bilhões no negócio. 

Já o custo dessa nova precificação gradualmente recai sobre os consumidores, com aumento nas contas de energia. Segundo dados abertos da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), em 2022, a tarifa média aplicada pelas distribuidoras era de R$ 0,68 por quilowatts-hora (kWh). Já em 2024, o índice acelerou para R$ 0,73/kWh, 7% de aumento desde o ano da privatização.

A proposta aprovada para a Eletrobras também previa a contratação de 8 gigawatts de termelétricas movidas a gás natural, que exigiam a construção de gasodutos e linhas de transmissão para distribuição. “Apenas as térmicas vão representar 10% de aumento na tarifa de energia no Brasil, algo que pode chegar a R$ 27 bilhões ao ano”, estimou o presidente-executivo da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), Paulo Pedrosa, em uma audiência pública na Câmara em 2022.

Ainda que os interesses por trás da privatização estejam com velhos nomes do capitalismo brasileiro, há pela imprensa boas reportagens tocando no tema do aumento do custo da energia brasileira. No dia 6 de agosto de 2021, foi ao ar o programa “Greg News – Eletrobras”, contando todos os meandros da aprovação do projeto de lei, e fazendo alertas bem humorados ao estilo late-night talk show satírico.

Porém pouco tem se olhado para aqueles que sofrem mais abertamente com o que foi a privatização de uma das maiores estatais brasileiras: seus trabalhadores. Os consumidores podem criar diversas explicações para o aumento do custo de sua energia, mas quem trabalha na Eletrobras, sente no cotidiano o que significam mudanças culturais, metas de lucratividade e precarização do trabalho.

A resistência

Um repórter ávido por contar a história de resistência dos trabalhadores da Eletrobras, na procura por fontes para falar sobre o assunto, vai se deparar com um movimento que tem pressa para aparecer, ou melhor dizendo, reaparecer.

“A criação da Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobras) foi proposta em 1954 pelo presidente Getúlio Vargas. O projeto enfrentou grande oposição e só foi aprovado após sete anos de tramitação no Congresso Nacional. Em 25 de abril de 1961, o presidente Jânio Quadros assinou a Lei 3.890-A, autorizando a União a constituir a Eletrobras. A instalação da empresa ocorreu oficialmente no dia 11 de junho de 1962, em sessão solene do Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (CNAEE), no Palácio Laranjeiras, no Rio de Janeiro, com a presença do presidente João Goulart.”

— Portal da Eletrobras/História.

Dois dos atores políticos mais significativos para a fundação da empresa foram Getúlio Vargas e seu ex-ministro do trabalho, e depois presidente, João Goulart, ambos do Partido dos Trabalhista Brasileiro (PTB).

Na história recente, a figura mais marcante que está associada à memória desse PTB desenvolvimentista, é Leonel Brizola, que disputou acirradamente a legenda após voltar do exílio imposto pela ditadura militar brasileira. Perdida a disputa pelo nome, Brizola fundou o PDT, enquanto a herança do PTB continuava com Ivete Vargas, sobrinha-neta de Getúlio, até a fase final do partido em 2023.

Para quem é mais novo e não conheceu Brizola, o PTB é a insígnia de deputados como Roberto Jefferson, delator do mensalão, e mais recentemente, convicto guerreiro bolsonarista, que reagiu ao decreto de sua prisão arremessando tiros e granadas contra agentes da polícia federal.

Esse cenário de terra-arrasada, nos momentos finais do PTB, abriu espaço para uma refundação. Quem encabeça o processo de recolhimento de assinaturas e petição no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para refundar o partido, é o ex-deputado constituinte, advogado e orgulhoso herdeiro do trabalhismo, Vivaldo Barbosa.

Plenário do Senado Federal durante sessão deliberativa extraordinária.
(E/D):
ex-deputado Vivaldo Barbosa;
senador Armando Monteiro (PTB-PE).
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Foi sua equipe a mais rápida para responder a solicitação de entrevista, e em publicar no canal de YouTube d’O Trabalhismo em Movimento, a gravação improvisada deste repórter, sem cortes ou enquadramento.

Barbosa não contou grandes novidades sobre a resistência dos trabalhadores da Eletrobras. O PTB em reconstrução compõe em menor número as atividades, reuniões e agitações dos eletricitários, mas está longe de conduzir o processo. O que parece acontecer é que o compasso político atual tenha se endireitado tanto, que os trabalhistas da década de 40, uma vez torturadores de comunistas como Luís Carlos Prestes, agora se encontram como fortes aliados na defesa do que um dia se configurou como um projeto nacional desenvolvimentista brasileiro.

Da adoção do salário mínimo à conquista da carteira de trabalho, passando pela fundação da Petrobras e da Eletrobras, Barbosa sabe se situar entre as maiores marcas do trabalhismo brasileiro, como uma prisão de nostalgia, de um tempo que não volta mais. Para responder por que o desenvolvimentismo não encontra campos políticos férteis nos corredores de Brasília, Barbosa passa por uma reclamação abstrata da elite brasileira, até apelar a um absurdismo irracional que acomete os poderosos e parece ser uma das explicações para todas as agruras da atualidade.

Cabe aos cientistas políticos e sociais explicarem porque não chegamos a um projeto de desenvolvimento comum para todas as forças políticas do país. Fato é que até a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), marca do capital industrial brasileiro, tem suas reclamações quanto à privatização da Eletrobras.

“É um duro golpe contra a liberdade de escolha para os consumidores de energia”, dizia uma nota da entidade, criticando o deputado Elmar Nascimento (União Brasil), ao entregar o relatório final da medida provisória que tratava da privatização.

A organização

A Eletrobras é enorme. Tanto que é possível considerar que existem pelo menos sete empresas diferentes operando dentro dela. Itaipu, Eletronorte, Chesf, Furnas, Eletronuclear, CGT Eletrosul e Amazonas GT. São mais de 120 usinas de geração de energia. Até 2020, o relatório de administração anual apontava o número de 12.527 empregados efetivos, espalhados pelo Brasil em estações e subestações de controle e distribuição.

O ataque mais patente aos trabalhadores, nessa transformação de uma empresa que prestava o serviço de fornecimento de energia ao país e agora presta ao lucro dos acionistas, está nos planos de demissão voluntária (PDV’s).

Em menos de dois anos sob a nova estratégia, os cortes deixaram a empresa com apenas 8.328 funcionários. Os desligamentos se concentram em trabalhadores da área de operação, levantando suspeitas sobre a capacidade de treinamento de novos funcionários e a queda na qualidade dos serviços de manutenção.

Outro foco da nova administração é “pacificar” financeiramente todos os compromissos previdenciários assumidos quando a empresa era estatal. Não à toa os planos de demissão estão ajustados para, aceleradamente e sob menor custo, dar cabo dos grandes fardos de aposentadorias dos trabalhadores.

A distância e o isolamento de cada pelotão de trabalhadores em suas respectivas estações também serve de elemento estratégico. As resistências dos trabalhadores aos PDV’s são negociadas em pequenos blocos, fazendo com que os trabalhadores mais organizados e resilientes fiquem cada vez mais isolados na luta.

Desde o início da luta entre o novo capital da Eletrobras e seus tradicionais funcionários, as partes contam com a mediação da Justiça do Trabalho, estabelecendo prazos e homologando os acordos de demissão.

Os trabalhadores tentam fugir do isolamento usando estratégias de comunicação que ampliam o debate através das redes. Além do Trabalhismo em Movimento, outros coletivos e organizações propagam sua voz digitalmente a fim de atingir a revolta dos consumidores finais de seu trabalho.

Destaca-se o trabalho de divulgação do movimento “Salve a Energia”, que está centralizado na coordenação do Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE), em conjunto com a Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), que por sua vez é organizada sob a Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Se há um apagão em São Paulo, ou uma mínima menção da Eletrobras feita pelo presidente Lula à imprensa, há logo após uma postagem atualizada no instagram @salveaenergia. Há mais de dois anos, o movimento aposta no timing exato dos assuntos polêmicos que mais reverberam nas redes, junto com vídeos de políticos de expressão nacional, como o deputado Glauber Braga (PSOL), ou a deputada Erika Kokay (PT).

A relativa dissociação que o movimento criou com medida às entidades representativas formais possibilitou flexibilidade, dinâmica nas postagens e um leque amplo de militantes dispostos ao trabalho de divulgação, mesmo que sua filiação partidária seja avessa à orientação de quem dirige a FNU, por exemplo. Essa particular descentralidade passa a ser um fator importante, quando da inversão de forças no executivo federal resultante da eleição de 2022. 

Governo Lula

“O Lula falava em reestatizar a Eletrobras durante a campanha”, reclama Ikaro Chaves, engenheiro eletricista e ex-funcionário da empresa. Ele foi uma das vozes mais ativas do sindicalismo durante o processo de privatização, e depois, sofreu forte perseguição até sua resignação frente às atuais condições de luta para a reestatização.

Ikaro Chaves denuncia perseguição – Arquivo pessoal

Na data em que Ikaro foi entrevistado, os interesses do Governo Lula tinham se rebaixado apenas a uma disputa por mais direitos acionários, através de ações movidas pela Advocacia Geral da União (AGU) na justiça. 

A litigância tem base jurídica sólida, já que o governo foi afastado de processos decisórios na empresa a partir de uma cláusula inédita no direito, cabendo assim o questionamento de sua constitucionalidade. Porém Ikaro desistiu dessa batalha justo aí, chegando a cogitar que o governo faz, na realidade, um funeral encenado da grande luta pela energia nacional.

“Fui visitar meus colegas recentemente. Muito desânimo, todo mundo cabisbaixo, esperando o pior, mais demissão”, relatou. Quando percebeu que estava insistindo só, ele que estava ameaçado de demissão por justa causa, optou por um modelo do PDV, que sequer cabia para si, mas que foi negociado com a direção, que estava ávida por vê-lo fora da empresa.

Segundo Ikaro, as peças já se moveram e cabe agora entender o que a privatização significa na escala macroeconômica. “O Brasil vai deixar de ser um país que vê a energia como uma impulsionadora da economia. Que garante distribuição para áreas remotas através do excedente em regiões populosas. A infraestrutura de geração, paga com nossos impostos, agora vai se converter em lucro privado.”

Do ponto de vista de quem resiste à privatização parece emergir a conceituação da energia como o potencial humano, revigorando o encanto que a tecnologia elétrica suscitava no início do século XX, na mão dos modernistas, quando o líder da maior revolução proletária bradava: “O comunismo é o poder dos sovietes mais a eletrificação de todo o país.”

Essa reportagem não conta com o ponto de vista particularmente expresso da nova administração da Eletrobras. Para entender quais encantos os movem, foi enviado à assessoria de imprensa os seguintes questionamentos: 

  1. Quais valores têm guiado o desenvolvimento da empresa desde o processo de desestatização?
  2. Quais são as estratégias de gestão por trás do processo de redução de custos e dos planos de demissão voluntária?

Os responsáveis pela resposta confirmaram via Whatsapp o recebimento dessas perguntas, expressaram interesse em responder e informaram que tudo estava em andamento. Porém, até a presente data não houve retorno.

Abaixo está reproduzido o trecho inicial do capítulo 10 – “Gestão de Pessoas” do Relatório da Administração & Demonstrações Financeiras de 2023 da Eletrobras, para seus investidores, que pretende explicar, em termos próprios, o que se passa com os funcionários da empresa e seus direitos.

“Após a capitalização ocorrida em 2022, a Eletrobras iniciou um movimento de reestruturação organizacional, promovendo uma gestão centralizada da estratégia e otimizando as estruturas organizacionais, pautada por cinco direcionadores estratégicos:

  • Suportar o novo posicionamento estratégico da Companhia, garantindo dinamismo e disciplina de capital na identificação, seleção e implantação de oportunidades de criação de valor;
  • Minimizar o risco de descontinuidade operacional, garantindo elevada disponibilidade dos ativos e cultura de segurança;
  • Garantir ganho de eficiência, agilidade e integração, criando uma cultura meritocrática orientada à inovação e geração de resultados;
  • Assegurar que áreas com grande valor e elevado desafio atual tenham foco prioritário durante os esforços de transformação;
  • Posicionar a Eletrobras como uma das líderes nas agendas ESG e de sustentabilidade, fortalecendo sua tese de Green Major.”