PUTUSP: zona de prostituição já funcionou dentro da USP, foi tema de hit nacional e hoje sofre com especulação imobiliária

colagem de jornais dos anos 1980 sobre o PUTUSP e de foto atual da região

De um lado, o enorme estande de vendas daquele que será “o mais alto e luxuoso prédio do Butantã”, como anunciam com pompa os corretores, vendido hoje por R$ 14 mil o metro quadrado. Do outro, o enorme estande de vendas do primeiro grande hotel da região, onde investidores podem adquirir um quarto por cerca de meio milhão. No meio, uma casa vermelha antiga e malcuidada, com um letreiro neon onde se lê “259” em letras garrafais. 

Ao sair do ponto inicial, a Estação Butantã, na Zona Oeste da capital paulista, o ônibus circular que leva ao campus da USP dá de cara com esses três estabelecimentos, que passam despercebidos para a maioria dos estudantes. 

Na casa do meio, funciona um restaurante simples e mal iluminado, que vive cheio com os operários dos muitos canteiros de obras ali em volta. À direita, na mesma parede em que opera uma discreta banquinha de jogo do bicho, fica uma escada escura, onde uma placa colorida e piscante anuncia que, lá em cima, funciona um “bar”: uma casa de prostituição. 

Na primeira vez que me aproximei da casa vermelha, conhecida nos fóruns especializados como “Privê da Rua Camargo, 259”, a situação não me parecia tão diferente daquela dos anos 1980, quando essa região vivia seu auge. Enquanto conversava com o segurança, fomos interrompidos por um motorista de caminhão, que perguntava se havia travestis trabalhando ali. “Só pista”, responde o segurança.  

Dentro do “privê”, sou recebido com bastante hostilidade (e uma certa ironia) quando peço uma entrevista. Segundo elas, sou o primeiro jornalista – e o primeiro aluno da USP – a procurá-las para fazer perguntas.  

Lacônica, sem me olhar, a responsável pela casa me diz que nada mudou por ali, apesar das mudanças lá fora. Nenhuma das mulheres que trabalham no privê (exceto pelo segurança, nenhum homem trabalha no 259) sabe precisar há quanto tempo ele existe. “Algumas vem e ficam uma semana, outras ficam meses”.  

Consigo traçar a história do bar pelo menos até 2004. No fórum especializado, é ali que começam as resenhas do local. E as histórias que os clientes contam parecem dizer que algo mudou sim.  

No início, todos falam das propagandas distribuídas na rua e espalhada pela região. Eu me lembro de vê-las quando mudei para cá, há quatro anos. Hoje, porém, o 259 opera discreto. Depois de 2009, só dois usuários adicionaram comentários ao tópico sobre o Privê. No fórum, ele sumiu entre mais de 400 “bares” e impressionantes 46 mil resenhas. 

Circular da USP sai em frente ao Privê 259
O Privê da Rua Camargo, 259. Foto: Diogo Leite

Um passado glorioso 

Jornal do Campus (JC), abril de 1984, editoria “Polícia”. No topo da página, em letras garrafais, um título sucinto: “PUTUSP”. 

Essa foi uma das primeiras edições do jornal laboratório do curso de Jornalismo da Universidade de São Paulo. Em um lugar onde o cinema se chama cinUSP, o ônibus, bUSP, o teatro, tUSP, e por aí vai, a matéria reforçava o branding de “um dos maiores ‘pontos’ de prostituição e, principalmente, de travestis de São Paulo, […] o conhecido ‘PUTUSP’”. 

Fac-símile de matéria descrita no parágrafo anterior.
Reportagem sobre o PUTUSP no JC de abril de 1984. Imagem: Acervo JC/Reprodução.

Hoje, quem busca esse termo no Google não encontra muito mais do que memórias: o registro do local no extinto Foursquare, ex-alunos comentando sobre suas experiências lá, atuais alunos se perguntando “onde fica esse tal de ‘PUTUSP’”.  

Na própria Universidade, conversando com pelo menos uma dezena de alunos e ex-alunos, só encontrei dois que já tinham ouvido essa palavra. Um estudou aqui ainda no final dos anos 1990. O outro pesquisa o tema há cinco anos. 

Foi só nos arquivos físicos do JC que descobri que o PUTUSP, nos anos 1980, era famoso. A primeira edição do Jornal do Campus já dedicava meia página ao local. Na época, a prostituição não era novidade.  A grande notícia era a chegada “dos [sic] travestis”.  

As matérias, apesar de apresentarem a defesa de mulheres trans (tratadas sempre por pronomes masculinos), mostravam moradores em polvorosa com a chegada das novas trabalhadoras ao bairro. 

Entre 1983 e 1986, as páginas do Jornal nos apresentam Diana, uma travesti que chegou a trabalhar em Paris, e que ganhava até R$ 800 (em valores atualizados) por noite no PUTUSP. Outra matéria dá voz a Valdete, que durante o dia trabalhava como faxineira no Hospital das Clínicas, e que vivia sozinha depois de cortar relações com a família.  

Em fotos de página inteira, com o rosto bem à mostra, aparece quase nua Patrícia, que tinha apenas 15 anos e estava em São Paulo depois de fugir da casa da família em Madureira, Rio de Janeiro. 

Fac-símile de reportagem do JC sobre a travesti Patrícia, com grandes fotos dela.
Matéria sobre a travesti Patrícia no Jornal do Campus de agosto de 1986. Imagem: Acervo JC/Reprodução.

Todas, acusadas pelos moradores de praticarem assaltos e tráfico de drogas, contam sobre um outro tipo de violência. Como não faziam nada ilegal (a prostituição não é crime, a cafetinagem é que é), eram levadas ao 51° Distrito Policial por delitos como “vadiagem”, “só para perder a noite”. Patrícia diz que os policiais a forçavam a transar com eles. “E se a gente não for dão coronhada e é arriscado até matar a gente”. 

Solicitei ao Distrito as ocorrências policiais do período, para tentar saber mais sobre essas mulheres. Segundo a Polícia Civil, todos esses registros sumiram. O Hospital das Clínicas também não foi capaz de encontrar dados de Valdete em seus quadros de pessoal dos anos 1980. 

Nessa mesma época, o PUTUSP chegou a fazer sucesso nacional nas paradas musicais. Dois locutores da Rádio Antena 1, que fica ali por perto, lançaram em 1983 uma paródia de “Você não soube me amar”, sucesso da Blitz, que fazia referência à Avenida Valdemar Ferreira, ponto de prostituição de mulheres trans que desemboca bem no Portão 1 da USP.  

A música, chamada “(O nome dela é) Valdemar”, também se perdeu no tempo, até porque é bastante transfóbica para as novas gerações, mas está fresca na memória dos meus pais, o que quer dizer que chegou a tocar muito nas rádios do interior de Minas Gerais. 

Até os anos 1990, o tema foi recorrente no jornal. De repente, o PUTUSP sumiu. Com o surgimento da AIDS, se falava de prostituição mais do que nunca. As prostitutas ao redor do campus, porém, ficaram fora da pauta. 

Perto das putas, longe da USP 

Nesses anos todos, só o Jornal do Campus, a Gazeta de Pinheiros (outro jornal do bairro) e, vez ou outra, algum grande jornal paulistano, registraram algo sobre o PUTUSP. A Universidade que batizou a região nunca teve muito interesse em pesquisar sobre ela. 

No Google Acadêmico, um único trabalho cita o termo: é uma tese de doutorado em biologia, que inclui um agradecimento a um professor pelas “caronas […] com direito a um show do ‘PUTUSP’ ao vivo”. O único artigo sobre o tema saiu em 2019, escrito pelos então estudantes de Antropologia Sabrina Damasceno e Júlio César Oliveira. 

A pesquisa dos dois, na verdade, começou na Paraíba, com a professora Silvana Nascimento. Quando chegou no Departamento de Antropologia da USP, ela reencontrou, nos arredores da Universidade, travestis que foram suas interlocutoras em estudos na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).  

Com a ajuda de Sabrina e Júlio, a professora decidiu iniciar uma pesquisa etnográfica sobre o trabalho sexual no Butantã, que os alunos continuam até hoje em seus trabalhos individuais. 

Sabrina me explica que, na região, as mulheres cis são em geral paulistanas e mais velhas, e atuam ali há muitos anos – muitas inclusive escondendo das famílias essa profissão. Já as mulheres trans vêm de outras regiões do Brasil e têm o PUTUSP como um local de passagem.  

Próxima do centro financeiro da capital, a região tem programas mais caros (geralmente entre R$ 100 e R$ 300), e dá para juntar dinheiro para fazer cirurgias de afirmação de gênero, para se reaproximar da família (o que muitas vezes acontece mediante o envio de ajuda financeira) e até para realizar o que para muitas é um sonho: se tornar prostituta de luxo na Europa. 

Entre todas essas profissionais, Sabrina e Júlio encontraram um consenso: a “era de ouro” do PUTUSP já ficou no passado. 

“Onde fica esse tal de PUTUSP?” 

O mapa do PUTUSP segue mais ou menos o mesmo desde os anos 1980. Como a relação entre mulheres cis e trans não é muito amistosa – muitas prostitutas cis acusam as travestis de trazerem violência à zona e de “abaixarem o nível” da região –as áreas de trabalho são bem delimitadas. As primeiras ocupam os prostíbulos e as ruas dentro do City Butantã, um bairro de mansões que fica entre a Estação Butantã, da Linha Amarela do metrô, e a Marginal Pinheiros. Na Marginal e na Avenida Valdemar Ferreira ficam as travestis. 

Não é difícil achar profissionais quando se está procurando. Em frente ao metrô, há um prostíbulo decorado com luz neon multicolorida que até pouco tempo tinha um locutor nas ruas anunciando os serviços durante a madrugada. Essa casa tem, inclusive, um vídeo institucional no Youtube. 

Na Rua Camargo, bem na rota dos ônibus circulares que ligam a USP ao metrô, existem mulheres trabalhando em quase qualquer hora da noite (ou do dia). Fóruns e sites especializados também têm tópicos dedicados à região do Jóquei Clube e do PUTUSP. 

De todos os uspianos com quem conversei, só aqueles mesmos dois já tinham reparado no mercado peculiar da região. Mesmo Sabrina conta que demorou meses para entender do que a movimentação na rota do circular se tratava. Nos fóruns da internet, os alunos aparecem só para perguntar o que é, e onde fica, “esse tal de PUTUSP”. 

Pergunto ao Júlio o que aconteceu com essa zona, que migrou de manchete de jornal a lenda urbana da Universidade. Para ele, as respostas são várias. 

A região começou a se desvincular da USP já no início dos anos 1990, quando a Universidade foi cercada por muros e grades e a entrada no campus começou a ser controlada. Antes, o próprio Jornal do Campus relata, os programas eram feitos dentro da Cidade Universitária, que de noite se transformava em um “verdadeiro motel”. A partir daí, o nome “PUTUSP” começa a entrar em decadência, mas a prostituição, não. 

O próximo grande baque, diz Júlio, vem só em 2011. Alegando uma escalada de violência no local, atribuída à chegada de mais mulheres trans, os moradores da City Butantã começaram um movimento cobrando medidas para tirar as profissionais do sexo do bairro. João Doria chegou a fazer disso promessa de campanha 

Em 2017, várias ruas do City Butantã foram fechadas, e sua circulação ficou restrita a moradores. Depois, em 2019, a CET mudou o sentido do tráfego de ruas na região para dificultar o acesso de motoristas às profissionais.  

Não foi a primeira vez que os moradores cobraram o fim da prostituição no Butantã. Isso acontece pelo menos desde os anos 1980. Faltou dizer que, também em 2011, chegou à região a Estação Butantã do metrô.  Com ela, e depois da mudança do Plano Diretor de São Paulo em 2013, o PUTUSP ficou no meio de um “Eixo de Estruturação da Transformação Urbana”. Em outras palavras, ficou liberada a construção de prédios residenciais enormes ali, tudo com incentivo da prefeitura e com alta demanda, afinal, a Estação Butantã está a poucos minutos da Avenida Faria Lima, coração financeiro da capital. 

A associação de moradores ganhou aliados na luta contra a prostituição, e o PUTUSP virou um canteiro de obras. Andaimes e caçambas ocuparam alguns pontos de trabalhadoras do sexo, hotéis utilizados para fazer os programas deram lugar a prédios residenciais, aumentou a presença de seguranças e de câmeras, o que afasta muitos clientes, e chegaram “novos corpos para ocupar o espaço”, nas palavras de Júlio.  

Fachada da Hospedaria Butantã, com placas de "vende-se"
O prédio da Hospedaria Butantã, na Rua Camargo, ponto tradicional para os programas, foi vendido recentemente, e a Hospedaria deve fechar em breve. Foto: Diogo Leite

Na Avenida Valdemar Ferreira, uma enorme dark kitchen tornou a região um polo de entregadores de aplicativo. Uma profissional, que fazia ponto lá há anos, conta que teve de sair depois de ser ameaçada por alguns deles. “Você é uma velha, devia estar fazendo tricô”, ela ouviu. Como muitas das mulheres cis ali, ela é idosa, mas segue na profissão para se sustentar. 

A decadência do PUTUSP também tem uma certa ligação com a Universidade. Em 1984, no Jornal do Campus, Cláudia, uma travesti que trabalhava no local, dizia que os estudantes da USP eram seus maiores clientes. 

Hoje, as trabalhadoras ouvidas por Júlio listam funcionários e professores da Universidade na sua clientela, além de trabalhadores das empresas de Pinheiros e do centro expandido. Os alunos sumiram da lista.  

Nos fóruns especializados, lá no início dos anos 2000, era um uspiano, sob a alcunha de “estudantesp”, o principal guia da região. Até pelo menos 2010, volta e meia apareciam nesses sites relatos de alunos que, indo ou voltando da Universidade em seus carros, gostavam de usufruir dos serviços do PUTUSP. Um deles chegou a ser morto em uma tentativa de assalto praticada por uma profissional do sexo. Essas histórias, junto com o termo, sumiram quase totalmente de lá. 

Nesse meio tempo, a USP ficou menos elitizada, e os programas caros da região deixaram de ser acessíveis para boa parte dos estudantes.  A cultura das novas gerações também mudou: os jovens de hoje parecem mais distantes do mercado do sexo (ao menos fora do mundo virtual).

Júlio também destaca a pandemia como um ponto de virada na história do PUTUSP. Sites especializados substituíram as “vitrines” nas ruas, hotéis e prostíbulos sucumbiram mais rápido às imobiliárias, e, no caso das mulheres cis, alguns clientes mais antigos morreram. 

Tinha um puteiro no meio do caminho 

De volta ao 259, resolvo me passar por cliente nos estandes imobiliários ao lado do Privê. 

No estande da esquerda, também um pouco decadente e vazio, os corretores me dizem que o diferencial da obra é que não “mistura públicos”. Todos os apartamentos são igualmente gigantes e caros, diferentemente de outros prédios por ali, que têm algumas unidades mais em conta. Quando menciono os vizinhos, e pergunto se espantam compradores, eles riem nervosamente, enquanto a recepcionista, que ouvia a conversa de longe, responde que sim, sem titubear. 

estande de vendas imobiliário com diversas placas de anúncio
À esquerda, o estande de um luxuoso prédio residencial. Foto: Diogo Leite

Na direita, um corretor elegante minimiza, tranquilo, a minha “preocupação”.  “Isso aqui é para ganhar dinheiro, e o hotel é de alto padrão. O pessoal daquele puteiro não tem o perfil de um hotel desses. Mas, pagando e não fazendo bagunça, que mal tem? É dinheiro.” 

estande de vendas imobiliário
À direita do Privê, o estande de vendas de um grande hotel. Foto: Diogo Leite

Cabe dizer que o Privê é acessível. Os quartos são simples, sem camas – apenas colchões no chão. Um programa fica entre R$ 50 e R$ 70. Na região, é difícil achar algo por menos de cem. 

A certeza geral, que só as trabalhadoras do 259 se recusaram a verbalizar, é de que é uma questão de tempo até que elas saiam de lá. Pelo que me dizem, até agora ninguém tentou comprar a casa vermelha. Os apartamentos luxuosos com vista para o terreno 259, no entanto, já são vendidos mais baratos. Os compradores temem perder a vista livre quando se erguer um novo prédio ali.