“Crianças imigrantes desacompanhadas são população invisível”: acolhimento na cidade de São Paulo expõe falhas do Estado

Paulo César começa a entrevista com uma risada e diz: “É, por aqui, tem muita coisa interessante para sua área”. Ele se refere aos casos que lidou em sua carreira como juiz diretor e responsável pelo Setor Anexo de Atendimento de Crianças e Adolescentes Solicitantes de Refúgio e Vítimas Estrangeiras de Tráfico Internacional de Pessoas (Sancast), em São Paulo.

Apesar de ter vivido muitas experiências chocantes, ele ainda classifica o episódio que levou a criação do Sancast como o mais emblemático.

Paulo havia ficado encarregado de fiscalizar um abrigo em 2009, onde encontrou um menino haitiano, de 11 anos, desacompanhado de familiares ou tutores. Na época, ele presumiu que a criança tinha se perdido da família. “Ele foi deixado no metrô e acabou na estação Corinthians-Itaquera, aí foi acolhido institucionalmente”, relata.

Em poucos meses sob a tutela do Estado, um traficante apareceu na sala de Paulo, no mesmo local onde atua até hoje, e exigiu a devolução da criança. “O traficante era um haitiano distinto, falava um inglês maravilhoso e um português ótimo. Eu nunca vi um homem com tanto visto no passaporte. O cara parecia um James Bond”.

Apesar da boa pinta do homem, Paulo não cedeu e questionou por quê o homem tinha interesse na criança.

“Ele respondeu: ‘Porque eu recebi para levar esse menino do Haiti até a Guiana Francesa’. Então eu perguntei: ‘O que impede que eu leve esse menino para a Guiana Francesa?’. Ele disse que a mãe estava ilegal no país. A mãe havia pagado mil dólares para levar o filho até ela, mas o traficante disse que já havia subido o preço para mil euros”.

No entanto, conforme avançava na investigação do caso, as autoridades brasileiras descobriram que o traficante fazia parte de uma quadrilha de tráfico e contrabando de pessoas. Já o menino, muito provavelmente, seria encaminhado para a retirada de órgãos, segundo informações da Polícia Federal e da Interpol.

De acordo com uma reportagem do Fantástico em 2013, a mãe não via o filho desde que ele tinha 5 anos. Após ficar viúva, em 2003, deixou dois filhos com os avós para emigrar clandestinamente para a Guiana Francesa.

Então, depois de melhorar de vida, contratou os chamados coiotes para levar as duas crianças até ela. Contudo, os traficantes entregaram apenas a menina e passaram a viajar pela América do Sul enquanto chantageava a família, exigindo mais dinheiro para devolver a segunda criança.

Quando os parentes não aceitaram realizar o pagamento, o menino haitiano foi deixado na estação de metrô.

Com a investigação, o traficante foi preso, mas a jornada de Paulo e do menino haitiano ainda seria longa. A criança só voltaria para os braços da mãe com 14 anos de idade, três anos após a chegada no Brasil.

Apenas o começo: a criação de normas para atendimento às crianças imigrantes desacompanhadas na capital paulista

Conforme o avanço das investigações, Paulo passou a atuar de modo a conseguir fazer o reencontro do filho com a mãe.

O procedimento é defendido pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). A legislação estabelece que o direito à convivência familiar é fundamental e deve ser protegido pelo Estado, sociedade e família.

Apesar de cumprir a lei brasileira, Paulo enfrentou dificuldades com autoridades do exterior.

“Eu falei com o governador de Caiena, capital da Guiana Francesa, e ele me informou que o menino deveria voltar para mãe em menos de um mês. Só que não era verdade. Aí ficou uma questão diplomática muito complicada, porque eu tinha um menino que precisava voltar para a mãe, e a mãe estava clandestina em Caiena. E aí o que eu fiz? Eu fiz de tudo um pouco”, conta Paulo.

O juiz do caso conta que precisou da ajuda da Interpol, do  Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça (DRCI) e da Polícia Federal.

Para conseguir o passaporte do menino e devolvê-lo para a mãe, Paulo chegou a falar com o presidente do Haiti, que veio ao Brasil durante um evento no Rio de Janeiro.

Isso porque a criança chegou em território brasileiro com um passaporte falso e era necessário que o governo haitiano emitisse o documento. Contudo, entraves burocráticas dificultaram o processo. “Eu tentei ultrapassar todos os obstáculos. Depois de conseguir o passaporte, ainda tivemos problema com a emissão do visto”, diz.

Apesar das dificuldades, Paulo relata o que viveu em meio a risadas – algumas também por incredulidade. “Eu não sou um sujeito que desiste fácil”, explica. O tom leve do juiz também é motivado pelo desfecho feliz do caso.

Após três anos, ele finalmente conseguiu levar o menino até a mãe, em Caiena. Os amigos do então já adolescente haitiano o acompanharam até o aeroporto. “A mãe passou um dia chorando. Foi muito emocionante. É o meu salário, eu não sou pago apenas em dinheiro, isso também é o meu salário”, relata o juiz.

Os caminhos para crianças refugiadas desacompanhadas em São Paulo

O tom descontraído e risadas de Paulo somem quando ele comenta dos demais casos que vieram em seguida. Ele relata ter ajudado menores de 18 anos que foram estuprados, perseguidos e até mesmo uma jovem que estava sendo traficada para casar.

“Ela chegou no Brasil já com roupa de noiva, uma noiva árabe, mas estava toda vestida. Aquilo chamou atenção. Então, ela foi acolhida, e eu fui comunicado”, diz.

Paulo explica que, a partir do caso do menino haitiano, criou-se uma rede para o atendimento das crianças refugiadas desacompanhadas e vítimas de tráfico.

Assim, em São Paulo, o procedimento de acolhimento ocorre através de uma lista de prioridades, sendo a reunião familiar a mais importante. Caso não seja possível encontrar familiares no país de origem ou no Brasil, elas são encaminhadas para família extensa, ou seja, tios, avós ou outros familiares dispostos a assumir a guarda.

Contudo, quando não é possível localizar nenhum parente, elas são encaminhadas para a capacitação profissional. Em último caso, as crianças são encaminhadas para a adoção, porém ele explica que é raro.

“A própria legislação, através do ECA, determina que a adoção deve ser em último caso. Como no Brasil, em geral, as crianças chegam aqui um pouco mais velhas, são encaminhadas para a capacitação profissional e ficam nos centros de acolhimento.”, explica.

Uma vez que o ECA define que todas as crianças e adolescentes em território brasileiro estão submetidas às normas e direitos contidos na legislação, o texto é a principal diretriz para o acolhimento da população infantojuvenil refugiada e desacompanhada.

Porém, em São Paulo, formou-se uma rede com diversos órgãos e instituições que trabalham em prol da proteção desses direitos e que, normalmente, não constam na rede de atendimento à criança e adolescentes.

Dessa forma, atuam em conjunto com a Sancast, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público da União, a Conare (Comitê Nacional de Refugiados), a ACNUR (Agência da ONU para Refugiados), a Cruz Vermelha Internacional e a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo.

Paulo explica ainda que é preciso conhecer os caminhos para atender a demanda das crianças. “A barreira migratória continua sendo a maior dificuldade, uma vez que os países não mantêm as políticas de migração estáveis por muito tempo. Apesar de termos uma norma fixa, a prática varia.”, explica.

São Paulo é exemplo, mas rota do tráfico encontra outras saídas

A atuação da Sancast vem reduzindo o número de crianças que chegam no Brasil por meio do tráfico ou desacompanhadas. Segundo Paulo, no momento de maior número de crianças atendidas, o órgão prestava assistência a cinco crianças por semana. Já hoje, há apenas oito casos em andamento no momento.

No entanto, a redução também é em decorrência da alteração da rota dos traficantes de pessoas. Isso porque, com a atuação da Sancast, os criminosos perceberam que, em outras cidades do estado de São Paulo, a possibilidade de uma criança chegar ao país desacompanhada é maior.

Paulo chegou a acompanhar o caso de duas adolescentes de 13 e 14 anos que eram exploradas sexualmente por uma organização criminosa. Os traficantes fizeram de tudo para tirar as meninas da capital e transferi-las para Guarulhos, numa tentativa de evitar que voltassem para o Sancast.

Porém, o Conselho Tutelar de Guarulhos percebeu as movimentações da quadrilha e encaminhou as duas garotas de volta para São Paulo, onde há um sistema de regulação e acompanhamento das crianças imigrantes desacompanhadas e vítimas de tráfico.

Invisibilidade das crianças imigrantes ainda é dificuldade

Ainda que os números tenham caído na Sancast, os dados nacionais não são tão animadores. Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), uma média de 312 crianças desacompanhadas e separadas das famílias chegaram mensalmente ao Brasil em 2024.

Já de acordo com o levantamento Refúgio em Números, realizado em 2023, crianças e adolescentes com até 18 anos de idade corresponderam a 44,3% dos pedidos de refúgio no país naquele ano. Em relação ao destino, a pesquisa revelou que São Paulo é a terceira cidade que mais recebe refugiados, perdendo apenas para Roraima e Amazonas, estados fronteiriços.

Paulo avalia que a dificuldade em atender às demandas dessa população é motivada pela invisibilidade das crianças imigrantes desacompanhadas.

Foi apenas em 2022, no “apagar das luzes” do governo Bolsonaro, como descreve Paulo, que uma diretriz nacional específica para atender às demandas de jovens refugiados foi criada.

A resolução N.232 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), sancionada em 28 de dezembro daquele ano, estabelece procedimentos de identificação, atenção e proteção para criança e adolescente fora do país de origem desacompanhado, separado ou indocumentado.

Para o acolhimento dessas crianças, o CONANDA define que a polícia precisa acionar o Conselho Tutelar. Contudo, na percepção de Paulo, a medida não alterou – nem para melhor nem para pior – o trabalho que desempenha.

“As crianças não causam alvoroço na imprensa, não afetam a economia do país, então são uma população que se torna invisível. Os órgãos competentes ficam resolvendo casos pontuais, em vez de existir uma política pública. Não tem políticas específicas para esse nicho. Hoje, até existem abrigos para imigrantes, mas só pode adulto”, explica Paulo.

Além da Sancast: o acolhimento às crianças desacompanhadas em São Paulo

Na capital paulista, não faltam projetos, instituições e Organizações Não-Governamentais (ONGs) que tenham por objetivo proteger o direito dos refugiados e imigrantes no Brasil.

Anteriormente, quando o Sancast ainda estava em fase de estruturação, o processo de acolhida de crianças estrangeiras desacompanhadas era realizado também com o apoio da organização Caritas Arquidiocesana de São Paulo (CASP).

Porém, atualmente, a instituição não possui atendimento específico para a população infantojuvenil que chega em território brasileiro sozinha. Em mensagem a revista Babel, a organização indica a Missão Paz como entidade voltada para o atendimento às crianças refugiadas.

A Missão Paz atua desde 1978, com sede na Casa do Migrante, e é referência de atendimento aos imigrantes localizados em São Paulo. Com apoio da ACNUR, a instituição possibilita a capacitação, além de garantir os direitos básicos dessa população, como acesso à saúde, educação e à documentação.

A Missão Paz também fornece abrigo durante três meses para os refugiados, porém o prazo pode ser estendido de acordo com cada caso. A iniciativa utiliza o espaço da Igreja Nossa Senhora da Paz, uma grande construção católica localizada na Liberdade, em São Paulo.

A Casa do Migrante promove visitações frequentes, nas quais é possível entender o funcionamento e os motivos da existência da instituição. Mesmo numa terça-feira, os imigrantes e voluntários preenchem os espaços da Missão Paz.

Na recepção, quem quer ser atendido enfrenta uma pequena fila. Porém, já no primeiro andar, há diversos setores específicos para que sejam fornecidas as assistências necessárias. Além disso, a igreja conta com espaço para apresentações, refeitório e dormitórios.

Contudo, ainda que o atendimento seja referência na capital paulista, Isabela Davies, que atua na área de comunicação da organização, explica que apenas crianças acompanhadas pelos pais são acolhidas no local.

“A gente não tem expertise para atuar com crianças que não estejam com os responsáveis. A criança é o menor dos nossos problemas, porque aprendem rápido. Normalmente, são elas que dominam a língua portuguesa e traduzem as informações para os pais”, afirma.

Já Claudine Shindany, refugiada da República Democrática do Congo e que hoje atua no Centro de Apoio Pastoral do Migrante (Cami), não avalia o acolhimento das crianças refugiadas e desacompanhadas no Brasil da mesma forma. Ela avalia que já há um atendimento discriminatório, que varia de acordo com a nacionalidade dos migrantes, mas, quando se trata das crianças, elas são ainda mais esquecidas.

Claudine possui autoridade para falar sobre o tema. Ela chegou ao Brasil ainda em 2014, após sofrer perseguição política. Ela atuava como jornalista na República Democrática do Congo e tratava principalmente das  violações de direitos humanos que aconteciam contra crianças no país.

Atualmente, ela colabora com a regularização migratória dos imigrantes e refugiados que chegam ao Brasil.

Além da dificuldade de acolhimento à população infantojuvenil na capital paulista, Claudine ainda pontua que os eventos voltados para a imigração não abordam as vulnerabilidades das crianças. “O foco sempre está nos adultos. Parece que as crianças têm menos valor, mas é preciso lembrar que elas também são pessoas e precisam dessa rede de proteção”, afirma.

Claudine também avalia que o acolhimento das crianças também possui importante papel para a adaptação das famílias imigrantes. “Elas são vulneráveis, não têm maturidade e podem acabar se envolvendo com a criminalidade sem esse acesso. Com a proteção dos direitos, essa criança se tornará importante para o sustento da família e para o crescimento do país no futuro.”, afirma.

“Todo mundo perde com a falta de atendimento às crianças imigrantes. Não existe criança do Brasil, da Venezuela ou da Bolívia. Essas crianças são do mundo inteiro. A sociedade, como um todo, precisa cuidar delas”, completa.