Por que a ciência segue hostil com as mulheres? Saiba 5 desafios

“Efeito-tesoura” na ascensão profissional, apagamento autoral,  assédio, maternidade e falta de incentivo dificultam paridade, apesar de avanços recentes

A bióloga Luisa Diele-Vegas, 32, foi ameaçada pelo colega com um pedaço de madeira durante um trabalho de campo, após confrontá-lo por ele não estar desempenhando adequadamente suas funções. Além de quase agredi-la, o pesquisador gritou que não aceitaria ordens de uma mulher com cabelo vermelho, tatuagens e que usava short.

Após apresentar argumentos mais robustos do que  um colega estrangeiro durante um debate de pesquisadores na Califórnia, nos Estados Unidos, a física Márcia Barbosa, 64, ouviu do oponente que apenas se saiu melhor porque o perfume que usava o desconcentrou.

Durante um evento de pesquisadores que coordenava, a matemática Jaqueline Mesquita, 39, foi ignorada tantas vezes que um colega alertou aos demais que ela estava tentando falar há vários minutos, e somente assim eles a ouviram.

A bióloga Camila Ribeiro, 35, teve a bolsa de estudos encerrada ao fim da licença-maternidade (apesar da garantia de prorrogação prevista em lei), quando sua filha, Maria Alice, tinha apenas oito meses. Precisou concluir a tese de doutorado em ciência animal noites adentro, enquanto o bebê dormia.

Essas quatro mulheres enfrentam o mesmo desafio diariamente: a desigualdade de gênero na ciência, problema que se manifesta desde a falta de incentivos na educação básica para que meninas sigam em carreiras científicas até a dificuldade de ascensão a posições de destaque.

O problema é conhecido, mas não deixa de espantar: por que, em um campo que deveria priorizar a racionalidade e a consistência científica, tantas pesquisadoras ainda enfrentam diferentes formas de violência simplesmente por serem mulheres?

Efeito-tesoura: quem chega ao topo?

Mulheres representam 57,5% dos estudantes matriculados em cursos de graduação no Brasil, segundo o levantamento “Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil”, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgado em março deste ano.

No entanto, os cargos mais altos na pesquisa científica são dominados por homens. Dados da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) mostram que mulheres são apenas 42% do corpo docente.

O fenômeno de redução da presença feminina à medida que as carreiras científicas progridem recebe o nome de “efeito-tesoura”.

“A participação das mulheres aumentou significativamente na base da pirâmide da pesquisa científica no Brasil, em grande parte devido à ampliação do acesso ao ensino superior”, diz Moema Guedes, professora e pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). 

“Desde os anos 1980, elas são maioria nos cursos de graduação. Porém os intensos avanços na base não vêm se refletindo no topo da estrutura.” 

A disparidade se nota ao analisar a concessão de bolsas de produtividade, atribuídas pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para valorizar pesquisadores com produção científica e tecnológica de destaque. 

Das 184.728 bolsas outorgadas pelo órgão de fomento à pesquisa entre 2010 e 2021, 64,7% foram para homens e 35,3% para mulheres.

“Pesquisadores que recebem essas bolsas são considerados de ponta. Eles compõem a categoria mais valorizada do meio científico, recebendo recursos das agências de fomento para financiar suas pesquisas”, explica a especialista.

É uma profecia autorrealizável, porque um fator que dificulta a ascensão das pesquisadoras é justamente a falta de reconhecimento. Um estudo da Nature de 2022 constatou que mulheres em grupos de pesquisa têm significativamente menos chances de receber crédito de autoria em artigos científicos e patentes.

Essa disparidade se manifesta em quase todas as áreas da ciência e em diferentes estágios da carreira: 43% das pesquisadoras relatam já ter sido excluídas da lista de autores, em comparação com 38% dos homens. Elas também têm menos chances de ser mencionadas como autoras em artigos de alto impacto.

“Nos processos de publicação e obtenção de recursos, o nome feminino tende a receber avaliações mais duras. Atualmente, nas submissões de artigos, adota-se a anonimização entre revisores e autores para evitar esse tipo de viés”, diz a bióloga Luisa Diele-Viegas. O ideal, porém, seria uma revisão triplamente anonimizada, em que o editor da revista científica também não soubesse quem é o autor.

Mas a bióloga, que é cofundadora da Rede Mulheres na Zoologia, enfatiza que a anonimização é apenas uma “forma de botar panos quentes”. Para Luisa, é necessário reconstruir a cultura acadêmica sob uma perspectiva mais igualitária —visão compartilhada por Moema, socióloga da UFRRJ:

“A ciência não é uma instituição isolada da sociedade. Por ser dominada por uma elite letrada de homens brancos, ela reproduz não apenas misoginia, racismo e elitismo, como também relações de poder ligadas à criação de redes”, explica ela.

“E você cria redes participando de congressos, lançamentos de livros e conhecendo as pessoas certas, como os editores que publicarão seus artigos. Mas se você é a única mulher do ambiente, dificilmente será chamada para esse ‘clube de bolinha’.”

Ciências masculinas

Globalmente, a participação de pesquisadoras, de 31,5%, praticamente não mudou desde 2011. As disparidades são mais visíveis nas exatas: quase todos os países apresentam desigualdades de gênero em Stem (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática). É o que aponta o relatório “Progresso nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: O Panorama de Gênero 2024”, da ONU (Organização das Nações Unidas).

No Brasil, embora 60,3% dos estudantes concluintes de graduações em geral sejam do sexo feminino, essa porcentagem cai para 22% nos custos de Stem, como demonstrou o Censo da Educação Superior 2022.

“Ser a única mulher na sala não é exceção, é a regra. Isso me motivou a me envolver na militância por mais mulheres na ciência”, conta a física e reitora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Márcia Barbosa.

Com esse propósito, a pesquisadora ingressou em 1999 em um grupo de trabalho da União Internacional de Física Pura e Aplicada que analisava a participação feminina na área, lutando pela licença-maternidade vinculada a bolsas de mestrado, doutorado e de produtividade de pesquisa. Ela ainda propôs mudanças como a exigência de palestrantes mulheres em eventos da organização.

Assim como ocorre na física, a matemática é marcada pela desigualdade de gênero. “A área é historicamente masculina”, diz Jaqueline Mesquita, professora da UnB (Universidade de Brasília). “Sou a terceira mulher a ocupar a presidência da Sociedade Brasileira de Matemática. Foram 18 anos sem ter nenhuma mulher presidente.”

Além da situação descrita no começo da reportagem, quando colegas a ignoraram em um evento, Jaqueline conta ouvir rotineiramente questionamentos sobre sua vida familiar —por exemplo, se o marido não se importa que ela viaje para congressos.

Perspectivas para a igualdade de gênero na ciência não são de todo negativas: a medicina, por exemplo, tem mostrado avanços significativos no Brasil. Desde 2011, o número de mulheres médicas quase dobrou, chegando a 260 mil em 2022. Contudo, elas ainda recebem, em média, 36% menos que os homens, segundo o levantamento Demografia Médica no Brasil 2023.

Maternidade e sobrecarga

Um estudo americano de 2019, publicado no “Proceedings of the National Academy of Sciences”, que usou dados da National Science Foundation sobre profissionais de Stem, indicou que mulheres são mais propensas do que homens a abandonar carreiras em tempo integral após terem filhos: 43% delas o fizeram dentro de um período de sete anos após se tornarem mães, em comparação com 23% deles.

A pressão por produtividade, refletida na expectativa de que pesquisadoras sigam publicando artigos na mesma intensidade de antes da maternidade, muitas vezes as expulsa da ciência.

“Você se sente inútil, parece que não está fazendo nada direito. Vão se acumulando os serviços de casa, os cuidados com a criança, a tese de doutorado para corrigir”, relata a bióloga Camila Ribeiro.

Com o objetivo de apoiar mães e pais na ciência, foi criado, em 2016, o movimento Parent in Science. Entre as vitórias do grupo, estão editais de financiamento que passaram a considerar períodos de licença-maternidade na análise de currículos.

“Métricas de avaliação têm que levar em conta que mulheres têm filhos e, por isso, deve haver algum tipo de compensação. Vários programas de pós-graduação já estendem o período de avaliação. Então, em vez de ser avaliada por quatro anos, você é avaliada por seis. É incoerente exigir produtividade elevada de uma docente com um bebê”, diz Moema Guedes.

Em julho deste ano, foi sancionada lei que prorroga os prazos de conclusão de cursos e programas para estudantes e pesquisadores do ensino superior, além da vigência das bolsas de estudo, em virtude de maternidade, paternidade e guarda de menores, por um período mínimo de 180 dias.

A falta de estrutura nas universidades para acolher mães é outra dificuldade. Com frequência, não há trocadores nos banheiros, creches ou espaços para amamentação.

Além disso, papéis de gênero fazem com que as responsabilidades de cuidado com familiares recaiam sobre pesquisadoras que não são mães. “Estamos inseridos em um sistema de gênero em que mulheres são pensadas como cuidadoras. Elas podem não ter filhos, mas vão cuidar de pais idosos, por exemplo”, acrescenta a professora da UFRRJ.

Assédio

De acordo com relatório da ABC (Academia Brasileira de Ciências), 47% das cientistas já sofreram assédio sexual.

“Ainda temos poucas ações efetivas para coibir o assédio. Não existe um acolhimento adequado para as vítimas, e muitas delas não têm coragem de denunciar justamente por isso. Também faltam punições”, diz Jaqueline Mesquita.

Embora a ABC tenha um código de ética que condena “todas as formas de discriminação e assédio”, cabe às universidades adotar iniciativas de monitoramento, investigação, punição aos assediadores e acolhimento a quem os denuncia.

A depender da área de atuação, pesquisadoras enfrentam situações que as deixam especialmente vulneráveis. É o que observa Luisa Diele-Viegas:

“Na zoologia e na biologia, que envolvem trabalho de campo, enfrentamos vários problemas relacionados à falta de segurança. Não raro, somos vítimas de assédio ou agressão, porque esse tipo de ambiente é isolado, longe dos centros urbanos, e você fica em uma posição de vulnerabilidade. Isso acaba sendo um fator limitante na carreira de muitas biólogas.”

Educação que não encoraja meninas

Um desafio para a ampliação da participação feminina na ciência é a falta de incentivos ainda na escola para que meninas escolham carreiras na área.

O estereótipo de que meninos são melhores em disciplinas como computação e engenharia começa a ser introjetado pelas crianças no começo do ensino fundamental. A revelação é de um estudo das universidades de Houston e Washington, nos Estados Unidos, em que pesquisadores aplicaram questionários a cerca de 2.300 crianças nos Estados Unidos, dos seis anos de idade até a adolescência.

Descobriu-se que 51% das crianças acreditavam que meninas têm menos interesse do que meninos em ciências da computação, número que aumentou para 63% quando o assunto era engenharia.

“A escola é uma instituição central na reprodução de estereótipos de gênero e acaba encorajando meninos a serem pesquisadores de ponta e a irem para as áreas de ‘ciências duras’, que são mais valorizadas, e meninas a seguirem em carreiras ligadas ao cuidado. Quando elas se interessam por ciência, são consideradas ‘esforçadas’, mas nunca talentosas, como se física, matemática e química não fossem aptidões natas das mulheres”, explica Moema Guedes.

É mais comum que estudantes do sexo feminino tenham dificuldades em matemática, fato constatado na prática por Jaquelina Mesquita ao dar palestras em escolas. “Vejo que a insegurança das meninas é maior, já na base, porque elas não são encorajadas.”

Medidas como o Torneio Medidas da Matemática, competição dirigida a alunas do ensino fundamental até o último ano do médio, podem ajudar a reverter esse cenário, avalia ela.

“Precisamos de mais mulheres na matemática, na computação, na física, para que meninas pensem em seguir nessas áreas. Elas podem, sim, ser o que quiserem e sonharem”, sem o receio de silenciamentos, agressões, penalizações por se tornarem mães e falta de incentivo.