Um país decide abrir as portas para os jogos online e anos mais tarde vive uma epidemia de viciados; conheça a linha de frente no tratamento desses adictos
Já eram quase sete e meia da noite quando viramos em uma rua deserta embaixo da linha do metrô. Estávamos chegando ao Santuário das Almas, depois de conseguir com os membros de uma outra unidade, na Faria Lima, o número do Coordenador de Relações Públicas da entidade. Aos fundos do templo, em meio ao ambiente industrial urbano de galpões decadentes na Luz, Leandro*, o tal RP, já estava recebendo uma equipe de TV e nos cumprimentou e convidou: “Entrem”.
Começava mais uma reunião da Jogadores Anônimos em São Paulo. Na porta, junto de Leandro*, estava Maria*. Sem cerimônia, ainda no papo de boas-vindas, ela nos confessou: “Eu já era viciada, mas foi com os jogos online que vi tudo desandar e caí no descontrole”.
Para nos receber, algumas regras já estavam acordadas: o anonimato era essencial sob quaisquer circunstâncias; a reportagem só tinha uma oportunidade para colher material da reunião, ou seja, sem novas visitas. Além disso, o encontro foi remarcado duas ou três vezes, pela disputa entre jornalistas para visitar a entidade.
A conversa começou com o próprio Leandro*, no hall dos fundos do santuário, que tinha as paredes em amarelo claro, o pé direito alto, em telhas coloniais, e um chão de granilite, como o de uma repartição pública. Era esse o cenário que levava os jogadores até um extenso corredor, que possuía uma sala à direita com uma grande lousa de giz com a data da reunião e outras instruções: “Desligar o celular ou deixar no vibra”. Ali, eles se reúnem, confraternizam e dividem seus vícios.
Sem se identificarem, sentados em carteiras escolares organizadas em um círculo, ao fundo de uma quadra de futebol society, eles discutem alguns “defeitos de caráter” a partir de tópicos listados em um livro que funciona como um guia para o grupo. Até as novas almas da casa acompanhavam o que o “Além dos 90 dias” tinha para dizer.
Um deles, mais experiente na casa, conduz os anônimos pela reunião, orientando o rumo que a conversa deveria tomar. Depois de entoarem a Oração da Serenidade juntos, eles alternam entre si para ler e dividir experiências de vida com o restante. Todos ali enfrentam o vício em jogos de apostas esportivas, alguns há mais tempo, e outros mais recentes que chegaram com o fenômeno das bets.
“Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguir umas das outras.”
O grupo de ajuda mútua começou a enfrentar um novo desafio para acolher o novo perfil de membro que passou a surgir com a ascensão dos jogos online e apostas esportivas, as famosas bets.
O mercado brasileiro de jogos online se tornou um dos 10 maiores no mundo em uma janela de quatro anos após a sua legalização, em 2018. Com a regulamentação do setor no país, a expectativa é de que, até 2029, ele alcance R$ 47,2 bilhões em tamanho, de acordo com um relatório da OpenBet.
Esse aspecto particular de crescimento acelerado no Brasil chamou a atenção de vários empresários do setor e do governo. Uma lei sobre o tema foi sancionada em 2023 e passa a valer mesmo em janeiro de 2025, após um atraso de quase seis anos.
Durante todo este período, as apostas já eram permitidas em um mercado cinzento, mas o país carecia de uma regulamentação completa. Os aspectos econômicos, porém, parecem secundários quando se focaliza uma outra dimensão talvez mais dramática: o país sofre com uma epidemia de viciados em jogo.
“Uma pessoa normal não gasta seu salário em 30 minutos. Uma pessoa normal não gasta um salário por dia. Eu falo que, na minha pior fase, eu gastava um salário por dia, dentro de 30 minutos. Uma coisa aterrorizante nesses 23 anos como jogador. Cheguei na Irmandade em 2013 só para parar de jogar. Fiquei dentro do grupo Jabaquara por quase dois anos, e aí minha vida voltou ao normal”, disse o RP.
Leandro* está sóbrio há seis anos e atualmente, além de relações públicas, é o responsável também pela organização das finanças dos Jogadores Anônimos – uma função ambígua e irônica dada a natureza do seu vício –. Esse é um dos órgãos que acolhe e auxilia indivíduos no processo de reabilitação do vício no jogo gratuitamente. Ele funciona de forma orgânica, com os anônimos mais experientes tomando lugar em cargos de administração, finanças e comunicação.
Viciados em jogo do bicho, apostas em cavalos, mercado financeiro e poker já eram comuns na irmandade. Mas foi durante a pandemia, em que 59% dos apostadores afirmam ter ingressado no universo das apostas online, de acordo com uma pesquisa da Inteligência de Mercado Globo, que a entidade precisou se reinventar para enfrentar um novo tipo de adicção que aparentava ser mais veloz, prazerosa e estimulante.
“A imagem que eu vejo do Tigrinho, da roleta, dessas coisas é sensacional. O bagulho é viciante. O que aparece no celular, tudo ali é muito bonito, a imagem, o som, o barulho,” confessa Leandro*. Bruna Lopes, pesquisadora do IPq do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, dá o nome de “viés atencional” para essa estratégia das plataformas de apostas online que fazem os indivíduos buscarem por ajuda na Jogadores Anônimos.
Vício e ajuda no celular
“Qualquer pessoa com um celular tem acesso a um cassino em seu bolso, 24 horas por dia”, define Francisco Silva, pesquisador da formação de mercado das apostas esportivas no Brasil pela PUC-MG.
Jogo da rodada. Placar final. Número de cartões amarelos, ou vermelhos. Número de faltas. Quantidade de escanteios cobrados. Quem marcou o gol. É possível apostar em tudo isso em quota fixa, ou seja, com os possíveis retornos já definidos, na velocidade de um Pix, — sistema de pagamentos instantâneos que é um agravante para os adictos no país —, e experimentar o frisson de depositar ali o seu palpite dando um tom a mais para a partida que se desenvolve na tela da TV. Ao longo dos 90 minutos é possível ver o dinheiro entrando ou saindo da conta.
Futebol não é a sua praia? Sem problemas. Também existem casas que permitem apostas no vôlei, basquete, e-sports, para não deixar a galera do PC de fora, e até reality shows. Para os que apenas querem testar a sorte, roleta, Tigrinho e “aviãozinho”.
Toda essa ofensiva sobre o mercado brasileiro teve no centro inicialmente a “publicidade que incentiva o engajamento rápido, repetitivo e prolongado” com esta prática, de acordo com Silva.

A porta de entrada para esta indústria no Brasil foi através daquilo que nos deu a fama mundial: somos o país do futebol. Hoje, na série principal do Brasileirão, 18 de 20 times, Cuiabá e Palmeiras ficam de fora, são patrocinados por casas de apostas. Se contarmos até a série C, 52 de 60 times são patrocinados por bets e 38 destes tem casas como sua patrocinadora master, ou seja, a principal fonte de aporte financeiro.
Além disso, as grandes competições, como Libertadores e o próprio Campeonato Brasileiro, venderam seus direitos de nome e estamparam em locais privilegiados as casas de apostas que puderam pagar pelo espaço.
“Diversas plataformas diferentes foram entrando e você tem ali bônus, promoções, depósitos mínimos” e, tudo isso, de acordo com Silva, para conquistar um espaço em meio a milhares de bets ativas.
Paralelo a isso, ele ainda cita a associação que esses jogos receberam como forma de renda extra.
Todo esse estímulo gera problemas para a irmandade de Leandro.
“Essas casas fazem de tudo para você ficar ali, para não te perder para a concorrente. E o problema que nasce disso são os bônus semanais para apostadores problemáticos”, diz. “O cara define na quinta-feira: não vou mais jogar! O cara entra em uma reunião na quinta-feira, tranquilo. Chega segunda-feira, ele manda no grupo da irmandade: quero jogar, tô com bônus aqui.”
Esse grupo ao qual se refere o Leandro é onde estão os irmãos participantes da entidade. Ao sinal de alguma recaída, é para lá que eles correm para pedir o primeiro socorro. Na época da visita, existiam 989 membros.
Nessa hora, o que eles fazem é “abrir a mente” do adicto.
À distância, eles dizem: leia o primeiro passo, que é “admitimos que éramos impotentes perante o jogo – que nossas vidas haviam se tornado ingovernáveis —.”
Em seguida, a instrução é ler as outras perguntas. A nona pergunta é “você geralmente jogava até que seu último centavo acabasse?”. A resposta é geralmente sim, segundo Leandro. A vigésima: “Alguma vez você já pensou em se autodestruir como resultado do seu jogo?”. Uma boa parte responde sim. Além destas, eles também são questionados sobre o impacto do vício na família, trabalho e vida pessoal.
Mesmo com esse resgate virtual, a maioria se “testa novamente”. No processo de recuperação, as pessoas abandonam o fundo do poço, começam a ver um dinheiro sobrar e não sabem o que fazer sobre ele.
O próprio RP da irmandade se viu assim ao começar a se reconstruir.
Ele tinha dois restaurantes, daqueles clássicos PF’s paulistanos, e os negócios sobreviviam para pagar a dívida. Com alguns empréstimos, ele quitou débitos com duas bancas do bicho. Tudo melhorou, mas a recaída veio depois de quase quatro anos. Leandro admitiu que só não entrou nas bets, porque saiu desse mundo antes. Mas ele conta também que já se flagrou em tentação para experimentar durante um jogo entre Flamengo e Athletico Paranaense.
No front
Entidades como a J.A. são centrais para enfrentar o que se desenha como colapso no atendimento à saúde dos apostadores.
Com grupos de apoio localizados em todas as regiões do Brasil, a J.A. teve seu início em 1993, no Rio de Janeiro, bem antes do problema ser reconhecido pela saúde pública. Os Caps (Centro de Atenção Psicossocial) de todo o país possuem um atendimento especializado em transtornos do controle dos impulsos, mas é o Programa Ambulatorial do Jogo Patológico (PRO-Amjo) do Hospital das Clínicas da USP o único da rede pública a receber pacientes em condição específica de jogo.
Chefiado pelo doutor Hermano Tavares, o programa foi fundado no HC quatro anos depois do primeiro encontro dos Jogadores Anônimos no Brasil. Lá, os jogadores diagnosticados com Transtorno de Jogo e os familiares recebem atendimentos psicoeducacionais voltados para a reabilitação do vício em bets, cassinos, cartas, apostas esportivas, e por aí vai.
Com o aumento do número de jogadores, o sistema passou a sofrer com longas listas de espera. A Babel sondou a possibilidade de se infiltrar na rotina dos profissionais de saúde do HC, para sentir na pele a pressão por atendimento no ambulatório.
“É um prazer receber qualquer pessoa que esteja interessado em conhecer nosso trabalho e ver como funciona, mas, nesse momento, eu acredito que até o final do ano, vai ser um pouquinho difícil conseguir, né?”.
A resposta veio de Tânia Corrêa, psicóloga responsável por um dos grupos terapêuticos de transtorno de jogo no Programa. É com a Terapia Cognitivo Comportamental e Psicodinâmica que ela auxilia os jogadores no processo de reabilitação, processo que pode levar de 12 a 16 sessões semanais, variando com a avaliação do paciente ou recaídas durante o tratamento.
Antes dela, Bruna Lopes, pesquisadora do IPq, recepciona os pacientes com uma série de perguntas, em um modelo bem semelhante ao da J.A., que fazem parte do processo de triagem para a admissão no ambulatório. Ao todo, 20 questões auxiliam na autoavaliação dos próprios pacientes e dos profissionais que amparam as vítimas, e indicam o nível do transtorno de cada jogador.
A linha de frente é a que observa mais de perto a urgência pelo tratamento, agravada pelo aumento da oferta das casas de apostas online. “Desde a legalização e, depois, em 2023, a gente realmente percebe um aumento. O que a gente atendia antes triplicou com a legalização de apostas esportivas”, complementa a pesquisadora.
Até o fechamento desta reportagem, o ambulatório havia suspendido a triagem de novos pacientes, que não tiveram a possibilidade nem de passar pela lista de espera pela falta de vagas.
Com os jogadores já admitidos, é realizado um exame psiquiátrico para avaliar a abordagem terapêutica e, em alguns casos, a medicação que melhor se encaixa com a necessidade do paciente. Depois da série de sessões em grupos, a condição é reavaliada nos casos em que haja risco de recaídas, momento em que podem ser destinados para sessões de apoio ou podem receber alta.
Conversando com Tânia, uma das mais experientes e voluntária desde a abertura do ambulatório, ela fez questão de destacar com carinho a alta de um paciente quase depois de 20 anos entre idas e vindas ao HC. O tempo remonta ao início dos trabalhos específicos com o transtorno de jogos, apesar do paciente seguir em tratamento no particular com a psicóloga.
O processo é facilitado quando envolve toda a rede de apoio do adicto, assim como Leandro se lembra: “Quanto mais sozinho você está, mais difícil é.”
A família, então, não escapa das terapias, que podem ser manuais, o crafting, ou mesmo sessões com o paciente. Ela é a base de apoio e a primeira a ser afetada pela vida no vício, principalmente porque o fenômeno tem sido observado mais entre jovens e adolescentes.
Silva dá um panorama desses números, retirados de uma pesquisa da revista Lancet: enquanto a incidência de viciados em cassinos online é de 16% nos adolescentes, 9% dos adultos sofrem com o problema.
Ele, que vê a situação se prolongar na história brasileira desde a instituição “jogo do bicho” até a naturalidade das propagandas de casas de apostas, entende que o SUS ainda está engatinhando no tratamento de jogadores.
“Como não existia uma demanda muito forte em relação a esses problemas com jogos no Brasil, você vê que os próprios psicólogos, os corpos psiquiátricos e o próprio Sistema Único de Saúde não estão preparados para lidar com esse contingente”, destaca.
É por isso que a sobrecarga no HC não é de se espantar. O trabalho realizado no programa não passa a ser somente muito necessário no período em que os pacientes estão vivendo o vício no jogo como é entendido como uma muleta para os anos na sobriedade.
“A doença é muito forte. Já falei com várias pessoas que têm medo de não conseguir se encontrar. Só que quando você procura por uma ajuda, você tá começando a abrir sua mente, tá conseguindo sair daquele ciclo fechadinho da doença”, complementa Leandro*.
Se aqui o tratamento tem prazo para acabar, o trabalho no Jogadores Anônimos é longevo e pode acompanhar a vida dos pacientes por bastante tempo. Como o transtorno é comparado aos vícios em drogas e álcool, a manutenção é vista como essencial.
O RP/finanças da irmandade sonha em ver o grupo cada vez maior, alcançando quem precisa, e chegar a cada vez mais e mais congressos, que reúnem anualmente várias unidades da entidade no Brasil.
A dedicação a esta missão é tão grande, que ele escuta das filhas: “Você vai de novo, papai?” Mas em casa, ele fala que vai para a igreja, — e é onde ele debilmente se encontra —. Mesmo assim, elas sabem que ele frequenta a irmandade.
E no meio de tanto trabalho, Leandro, Maria e outros comemoram cada dia na sobriedade.
“Estou sóbria há 146 dias! Estou super feliz, porque já posso começar a assumir funções dentro da irmandade”, comemora Maria*. As reuniões do J.A ocorrem protocolarmente às segundas e quintas-feiras, às 20h, em que os anônimos se reúnem, entoam a Oração da Serenidade e relembram dos 12 passos para a recuperação, que agora funcionam como lema de vida: “Só por hoje evitarei a primeira aposta”.
*Nomes fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.