Onde você irá morar quando envelhecer?

Talvez uma das preocupações mais negligenciadas durante a vida é onde se vai morar quando se envelhece. A maioria das pessoas prefere não pensar nisso. Ou, se pensa, terceiriza a solução para um outro; como um filho, um neto que ainda não existe, ou um sobrinho.

Se nenhuma dessas pessoas ajudar, resta crer que o que está sendo construído ao longo dos anos será suficiente para proteger de um possível desamparo na velhice — afinal, como pensar no futuro quando a vida de hoje não está resolvida?

Na cidade de São Paulo, onde a população de idosos ultrapassa 2 milhões de pessoas, a questão da moradia ganha camadas de complexidade.

Nesse contexto, como explica o professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), Rodrigo Bonicenha,  se somam aspectos como o custo de vida elevado, as longas distâncias, e o estilo de vida extremamente individualizado. 

“A sociedade envelhecendo já é um processo complexo. Mas quando a gente pensa nas milhões de pessoas idosas que moram em São Paulo, a gente tem que pensar nas mais de 20 mil pessoas com mais de 90 anos moram sozinhas. Isso é um um pouco alarmante, porque é diferente de quando a gente está olhando a cidade do interior, que tem 20 mil habitantes, onde o idoso está inscrito em um território restrito, que facilita o acesso do poder público a essa pessoa”, explica o Bonicenha.

Para lidar com essa questão, no final da década de 90, um grupo de 15 pessoas começou a se organizar para criar um movimento de moradias para idosos na capital, o Grupo de Articulação de Idosos por luta de moradia na cidade de São Paulo, também conhecido como Garmic. A ideia era lutar por políticas de habitação permanente – a chamada Casa Lar –, em oposição às vilas de moradia temporária que já existiam para a terceira idade. 

Vila dos idosos 

Vila dos Idoso, na zona sul de São Paulo

A principal conquista da história do Garmic foi um conjunto habitacional de 145 apartamentos populares localizado no bairro do Pari,  zona sul de São Paulo.

Originalmente, o conjunto apelidado de Vila dos Idosos é destinado exclusivamente para a moradia de pessoas acima de 60 anos em situação de vulnerabilidade social que pagam um aluguel compatível à sua renda para viver em apartamentos de 33 ou 43 metros quadrados.

A vila é gerida pela Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), órgão da Prefeitura de São Paulo que também determina quem poderá morar no local quando há a liberação de vagas. A gestão do dia a dia do condomínio fica sob responsabilidade de uma terceirizada, a Diagonal, que faz serviços como a organização do lixo e controle da segurança do local. 

Apesar de estarem em sua maioria sozinhos, os idosos não têm o hábito de se reunir, e não existe uma associação de moradores. Essa questão, todavia, é motivo de disputa entre o Garmic e a Prefeitura de São Paulo. 

Hoje, o ingresso de novos moradores depende da inscrição do idoso na Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB), que faz a gestão da lista de espera. Para isso,  é necessário a apresentação de comprovantes de renda de até três salários mínimos e ter autonomia para viver sozinho, ou na presença máxima de um acompanhante. 

O Garmic, contudo, questiona a seleção, e acusa a administração de deixar uma vacância de vagas, além de escolher moradores fora do público alvo original.

Segundo informado em nota pela Prefeitura,  39 apartamentos do projeto estão vagos no momento. Eles deverão ser preenchidos após a publicação de uma portaria pela SEHAB, elaborada com o apoio da Secretaria de Direitos Humanos e da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) para a indicação da demanda – o que ainda não aconteceu. 

Lista de seleção

Na manhã do dia 2 de outubro deste ano, representantes do Garmic se reuniram com o Secretário municipal de Habitação, Milton Vieira, reivindicar o poder de ficar com a seleção de parte das vagas da Vila dos Idosos.

O pedido é uma antiga demanda do grupo, que defende que essas vagas sejam ocupadas seguindo sua própria lista de prioridades, que incluí, por exemplo o critério de participação e contribuição com o movimento de luta por moradia. “Nós conhecemos os idosos, nós sabemos quem precisa, por isso eles precisam entender que a gente tem voz nisso”, diz Maria Lúcia Marcondes, uma das organizadoras do Garmic. 

Reunião do Garmic na sede da organização no centro de São Paulo

O embate pelas vagas com a Prefeitura lembra uma lenda que data da época da inauguração da Vila, em 2007. Segundo conta Dona Olga, que fundou o grupo, o evento aconteceu no dia 12 de agosto, dia aniversário do então prefeito Gilberto Kassab.

“O Kassab chegou dizendo que era o aniversário dele, mas o que ele não sabia era que aquele era o dia do meu aniversário também. Ele ficou assistindo todo mundo me cumprimentando. Ninguém falava com ele. E a gente ainda fez uma faixa que dizia que a vila que era do Garmic, com apoio da gestão da Marta”. 

Dona Olga

Dona Olga Quiroga, uma das fundadoras do Garmic

A chilena de menos de 1,40 metro de altura dificilmente fica parada sem se movimentar na cadeira. Ela conta que se envolveu na luta por melhores condições de vida para os idosos na década de 1980, quando acompanhava as internações de sua filha. Como na época os hospitais públicos não davam o direito ao pernoite de acompanhantes, Olga se habituou a procurar cantos escondidos para dormir, onde encontrava, com frequência, idosos abandonados – e sintetiza a lembrança: “Era muito ruim”. 

Ela já havia passado pelo Conselho Tutelar e tinha histórico em movimentos sociais. Assim, passou a participar das discussões da causa até cair na gestão do Garmic. “Fui chamada para ajudar e ajudei. Eles precisavam de ajuda, mas eu não era só eu”. Em 2018, recebeu o título de Cidadã Paulistana da Câmara Municipal por seu trabalho na defesa dos direitos das crianças e adolescentes e dos idosos de São Paulo. 

A cessão do terreno onde fica a Vila dos Idosos e a construção dos prédios atravessaram as gestões Pitta, Suplicy e Kassab. Segundo Dona Olga, o projeto deu certo porque o Garmic fez um planejamento elaborado e se manteve sempre presente para cobrar as secretarias municipais. 

A vila integra o Programa de Habitação Social para Idosos da Sehab. Em 2017, ela foi premiada pela Caixa Econômica Federal como uma das Melhores Práticas em Gestão Pública no Brasil. 

Os prêmios, contudo, não garantem o sucesso da iniciativa entre seus moradores. Durante uma reunião do Garmic, uma das moradoras da Vila – uma mulher de de 72 anos que preferiu ter seu nome ocultado – relatou problemas na convivência com os outros idosos. 

Críticas ao modelo 

“É horrível morar lá. Outro dia morreu um senhor e ficou dias sem ninguém saber, eu que fui lá ver. Se eu não falo, ninguém faz nada e quem denuncia, sofre perseguição”. O sistema individual do conjunto parece incomodá-la, e ela repete histórias de idosos prejudicados pelo isolamento. 

“Tem idoso que mora na Vila e não precisa. Eu falo e ninguém faz nada, ninguém escuta”. Maria Lúcia, que coordena o Garmic, exerce a função de mediar a situação concordando que, de fato, seria melhor se os moradores fossem mais integrados, ou se o sistema de saúde mantivesse uma relação mais próxima com a Vila. 

Para o professor Rodrigo Bonicenha, essa crítica expõe uma demanda específica das políticas públicas para o público idoso, que demanda uma relação diferente com os serviços de saúde. “A lógica que vigora para a maioria das pessoas é que o indivíduo procure o serviço mais do que o serviço procure indivíduo. Mas na velhice, essa ordem pode mudar e o serviço passa a ter a demanda de correr atrás do paciente”. 

Outra questão que gera discussão em relação à Vila é se o modelo de aluguel social é o melhor, já que, no fim do dia, o valor pago não garante a propriedade no futuro. Pra Bonicenha, isso pode ser contra argumentado pela vantagem financeira que o modelo oferece ao idoso. 

“A Prefeitura é a proprietária daquele imóvel e a pessoa faz um contrato de usufruto da propriedade que precisa ser renovado de quatro em quatro anos. A partir desse contrato, a pessoa paga um valor de aluguel que é proporcional ao salário dela. Se você tem uma renda mensal de um a dois salários mínimos, por exemplo, você paga 10% desse salário, ou seja, um aluguel que fica em torno de R$ 150 e R$ 300 de aluguel para um apartamento é basicamente não existe isso em uma cidade como São Paulo”, diz Bonicenha.