Bumba-Meu-Boi de Pindaré. Foto tirada durante a gravação do programa Danças Brasileiras da TV Futura – Foto: Reprodução/Maria Eugenia Tita
Em ruas de ladeira abarrotadas de gente, curiosos se movem em atropelo para chegar à rotatória que dá movimento à Vila Pirajussara, bairro de São Paulo conhecido como Morro do Querosene, em novembro. Um foco de fumaça paira entre as cabeças afoitas, mas o som ainda não começou. Ao atravessar parte da multidão, o primeiro vislumbre é do pandeirão, tambor circular revestido de couro que precisa ser aquecido na fogueira para afinar o som das batidas que virão.
Ao lado do instrumento, um cantador se prepara com o microfone. É o músico responsável pelas toadas do Bumba-meu-boi. Com o balanço de seu maracá, um pequeno chocalho de metal, ele anuncia o início da festa ao entoar o Canto da Sereia, música original de seu repertório.
Uma grande roda se forma nas proximidades da Rua Dr. Cícero de Alencar, 305, suficientemente grande para que qualquer um note o contraste entre os que observam, de roupas comuns, bebidas e celulares na mão, e a atração que vieram prestigiar: homens e mulheres com roupas bordadas com miçanga e paetê, chapéus de fita, grandes cocares e saiotes de pena e, é claro, a representação colorida de um boi que espirala entre eles, uma grande carcaça movida por alguém que quase não aparece, chamado de miolo, para dar ênfase ao protagonista da festa.
Os olhares revelam que é a primeira vez de muitos dos visitantes do Morro vendo uma manifestação cultural tradicional. É difícil encontrar algo parecido em São Paulo. A brincadeira, como esse tipo de festa é popularmente chamado, foi trazida para a capital paulistana em 1984 pelo musicista maranhense Tião Carvalho, que atua como coordenador cultural, mestre e amo-cantador do grupo. O amo é quem comanda a festa com a música, e para isso é preciso incorporar o personagem que é dono do boi dançante.
Antes da aglomeração para ver a companhia dançar, há a parafernália da brincadeira de rua, com direito a crianças arteiras correndo sem parar e viajantes chegando do Maranhão, do Pernambuco e do Ceará para comungar da festa com os moradores do bairro, muitos dos quais também vieram, há muito, de outros estados, principalmente do Nordeste.
Os vizinhos, num falatório ansioso, costumam compartilhar comida entre si, e dá para enxergar a arrumação das barracas de ambulantes que irão vender de ‘‘um tudo’’, desde que feito à mão.
A morte do boi, esta última etapa da festa que é quadrimestral e dividida em três fases, é uma cerimônia religiosa que começa de dia e continua noite adentro. O Grupo Cupuaçu – Centro de Estudos de Danças Populares Brasileiras, comandado por Tião, é quem organiza os preparativos desde 1987, quando o Bumba-meu-boi trazido do Maranhão foi autorizado pela Prefeitura de São Paulo a fazer arruaça até tarde da madrugada.
Quem vê o cenário como está posto, de uma festa alegre e descontraída, talvez não imagine que para criá-lo houve um percalço de violência vencido pela vontade de fazer cultura popular.
O boi que aprendeu a cantar
O folguedo que hoje conta com uma adesão expressiva em São Paulo tem uma longa história, que remonta às raízes negras e indígenas do Maranhão, com um quê de sincretismo com o catolicismo. Sua importância é tamanha que a festa chegou a ser reconhecida pela Unesco como patrimônio cultural imaterial da humanidade.
Há manifestações parecidas e de origem comum em todo o Brasil, mas que acabaram se modificando pelo contexto histórico-geográfico dos estados em que acontecem, como o Boi-bumbá, que compõe o Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas, o Boi Surubim, do Ceará, o Boi de Reis, do Rio Grande do Norte e outros.
Em todos os tipos, a festa gira em torno de uma encenação teatral, cantada e dançada, que narra a história de um boi especial, morto pelo empregado de uma fazenda, o Pai Francisco, para satisfazer a vontade de sua mulher grávida, Catirina. Nessa narrativa, aparecem inúmeros personagens, como o patrão, os vaqueiros do fazendeiro, os caboclos guerreiros, o doutor e o pajé. Cada lugar em que a brincadeira acontece desenvolve o seu modo de fazê-la, alterando ou adicionando personagens, modificando a história e por aí vai.
No Morro do Querosene não podia ser diferente. Tião Carvalho, quando chegou na capital paulistana para trabalhar com arte e se fixou na Vila Pirajussara, não pensava em fazer a festa do boi. Até então, era dançarino e professor de dança, mas sempre esteve envolvido em brincadeiras de Bumba-meu-boi por conta da família, que o inseriu nesse universo desde a infância.
Foram os seus alunos e amigos do bairro que o convenceram. ‘‘Na época diziam que o bairro era muito perigoso, que tinha muita violência, então eu não pensava em fazer a festa. Mas se você olhar hoje, mudou totalmente a cara da comunidade. Somos conhecidos como um polo cultural’’, lembra o musicista.
Como a brincadeira depende do lugar em que está, ele precisou pensar em alternativas para fazer com que ela funcionasse, além de inserir os primeiros participantes no universo do Bumba-meu-boi – até então, muitos dos interessados eram paulistanos com pouco ou nenhum contato com cultura tradicional maranhense.
Não foi fácil. Fazer um festejo popular como a festa do boi exige certas características. As roupas (ou indumentárias, como são chamadas) e a carcaça do boi são elementos centrais que precisam ser bordados à mão. São necessários instrumentos de percussão específicos, como o pandeirão de couro, matracas, zabumbas e outros, a depender do estilo de música utilizado.
A religiosidade é de extrema importância. É comum encontrar altares de santos juninos católicos entre a multidão durante as celebrações que antecedem as apresentações. Tudo isso precisou ser ensinado e preparado ao longo dos anos.
As articulações com os órgãos do Estado também tiveram que acontecer. Antes da regulamentação, a festa no Morro do Querosene começou tímida e clandestina, tal qual ocorreu com os primeiros grupos maranhenses, que eram tidos como arruaceiros e frequentemente acossados pela polícia.
No início, moradores do bairro descontentes com o barulho dos instrumentos chegaram a denunciar o Grupo Cupuaçu por atrapalhar a paz e o sossego. Tião diz que a preocupação deles, na verdade, era que os brincantes estivessem praticando ‘‘feitiçaria’’ ou ‘‘macumba’’. Os embates foram frequentes para que a brincadeira fosse naturalizada no bairro, a contragosto dos que não viam valor nas heranças culturais africanas e indígenas.
Com o tempo, o ofício para liberar a rua chegou às mãos da Polícia Militar e da Prefeitura de São Paulo. O grupo conseguiu banheiros químicos e a presença de bombeiros. Artesãos começaram a aparecer para vender produtos e a comunidade se interessou pelas possibilidades positivas da festa. Era esse o intuito. ‘‘A ancestralidade é a nossa moeda de troca. É a partir dela que as pessoas, com muita luta, percebem a magnitude da comunidade e do fazer popular’’, destaca Tião.
A festa enquanto ritual e o olhar do turista
Para poder participar da festa do boi no Morro do Querosene é preciso estar esperto. O Grupo Cupuaçu não a divulga em nenhum meio de comunicação, mas dá abertura para que os interessados participem de ensaios abertos e conheçam um pouco da tradição.
Essa preocupação em não criar alarde em cima da brincadeira tem uma razão: não transformá-la em um espetáculo comum, em que é possível acessar sem saber do que se trata. Tião reforça que o grupo organizador precisa ter algum tipo de controle das pessoas que participam, mesmo que mínimo.
A festa acontece quase que no boca a boca, e ainda assim consegue reunir, em média, cerca de 3 mil participantes anualmente, de acordo com o Projeto de lei nº 1038/2019, cuja ementa declara como patrimônio cultural imaterial do Estado de São Paulo a Festa do Ciclo do Bumba-Meu-Boi, em uma resolução parecida com a da Unesco.
Para justificar a proposição da qual é autora, a cantora e deputada estadual Leci Brandão (PCdoB/SP), defensora das práticas musicais tradicionais, argumenta que a brincadeira é fonte de capital turístico e atrai pessoas de todas as regiões da cidade, do interior e de outros estados para exercitar a tradição que acontece somente no bairro, além de difundir um modo de lazer sustentável.
Para além dos que somente visitam, o ciclo do boi reúne atores, arquitetos, artistas plásticos, capoeiristas, dançarinos, educadores, estudantes, músicos e outros profissionais em seu quadro de participantes.
O público é diferente do que frequenta a festa original. Jandir Gonçalves, pesquisador popular e chefe da Casa de Nhozinho, museu ludovicense de miudezas do povo comum do Maranhão, explica que há uma diferença entre ser um brincante propriamente dito e somente prestigiar a festa, muito em razão dos rituais que precisam ser feitos e cumpridos.
‘‘Para um artista, um intelectual, alguém que vem de fora, é muito fácil enjoar da festa, pedir um uber e ir embora. Você não tem esse compromisso. Agora para quem faz promessa, para quem tem um voto, não interessa se tem que acordar 4 horas da manhã e ficar até as 10 do outro dia. A pessoa vai ficar’’, complementa o pesquisador, que contribuiu como consultor do principal documento de catálogo do Bumba-meu-boi do país, o Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
O mestre e doutor em Artes pela Universidade de São Paulo, Tácito Borralho, que já participou da festa do boi na Vila Pirajussara, elabora de maneira similar: ‘‘eu fui ao Morro do Querosene e vi que as pessoas iam brincar o boi, mas como participantes que se intrometem na brincadeira. Lá, é uma curtição muito grande, porém sem o compromisso, mais como uma curiosidade frente ao que está sendo apresentado’’.
Esse olhar exótico sobre a cultura popular pode camuflar o que ela tem de mais importante, que é a sua relação sincrética com o dia a dia e a religiosidade do povo comum, a quem ela foi originalmente destinada e que vê na brincadeira a possibilidade de extravasar. O “brincar”, nesse sentido, é literal, e carregado de compromissos ritualísticos. Borralho não elimina a possibilidade de muitos brincantes no Morro do Querosene terem uma ligação com o boi que ultrapassa a curiosidade, mas elabora que boa parte dos que se envolvem “no espetáculo“ não o fazem com a sacralidade que é característica à festa, além de não entrarem no estado de suspensão que é necessário para fruir dela.
‘‘Em São Paulo é um pouco diferente. Às vezes a pessoa, mesmo o trabalhador braçal, trabalha muito, e tem que pegar ônibus e metrô. Não é tão fácil ir brincar o boi. Ele pode ir e fazer por amor também, mas não é a mesma coisa como no Maranhão, em que o brincante não vai pescar, nem fazer carvão, nem vender camarão na rua nos dias de festa. Ele se dedica à brincadeira. Em época de boi, ele só toma cachaça. Graças a Deus’’, resume, falando a sério, o professor.
Tião explica que o grupo mantém toda a tradicionalidade necessária para evocar esse estado, como o ritual da fogueira para aquecer o pandeirão; a sangria, isto é, beber o vinho que representa o sangue do boi que morre; os bordados com temática religiosa; as orações e pedidos de proteção; além de toda a cosmologia da festa que é instaurada no bairro.
‘‘É claro que o boi, por não divulgarmos, tem esse ar misterioso que pode atrair pessoas de fora. Pessoas que não estejam por dentro da cultura e turistas. Mas, como eu disse, é a nossa moeda de troca. É o que faz com que a festa continue acontecendo, além do nosso próprio desejo de continuar brincando’’, diz.
Semente anticapitalista
Nos anos 2000, um tiroteio durante a festa do boi fragilizou o Grupo Cupuaçu. Mudar o imaginário do bairro, de lugar aparentemente perigoso para um polo cultural, estava sendo um trabalho lento, e aquele obstáculo, além de afetar os processos de segurança da brincadeira, poderia fazer soar um alarde entre os brincantes.
Tião diz que apesar do acontecido, a solução foi investir em arte e tradição. ‘‘Vamos incentivar a dança. Colocar o instrumento na mão das crianças para que elas possam tocar e se divertir. Não vamos encorajar a violência, o nosso trabalho é cultivar a nossa raiz’’, lembra ele.
Esse investimento andou junto à união da comunidade, que hoje tem participantes assíduos, e ao reforço da não divulgação dos momentos de brincadeira, que acabaram sendo reservados aos mais curiosos. Eles podem ser os que vivenciam a cultura tradicional desde sempre, ou os que veem a brincadeira como uma das manifestações alternativas de São Paulo.
A ideia de Tião bebe da vontade de universalizar o ‘‘brincar’’, que foi esquecido, de acordo com ele, “nas engrenagens do capital”. Brincar por brincar, sem precisar pagar ou se sentir culpado pela falta de produtividade.
Há um certo orgulho do grupo em não procurar patrocinadores para ajudá-los. Preferem custear os gastos da tradição com métodos alternativos: apresentações em escolas, em centros culturais e organizações, como o Serviço Social do Comércio (Sesc) e projetos de expansão da cultura popular tradicional, com enfoque no Bumba-meu-boi, como a proposta de 2012 e 2013 “Dança, Morro do Querosene”, ação promovida pelo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais – VAI, da Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo.
Adeptos de uma economia circular, os integrantes do grupos incentivam e capacitam membros da comunidade a produzirem produtos artesanais e cozinharem alimentação orgânica para vender no período da festa. Todo o dinheiro arrecadado vai para o caixa do boi.
Em atividade frenética há 37 anos, é de se perguntar como uma iniciativa como essa consegue se manter de pé. Tião diz que a brincadeira é feita como um presente à comunidade, mas em especial às crianças, que irão passar adiante o que aprenderam e não vão deixá-la morrer. Isso é o que estimula o grupo a continuar brincando por todos esses anos, abraçando certas contradições características da modernidade, mas sem renegar o sagrado e a tradicionalidade.
‘‘Temos responsabilidade ao entender o presente que a gente recebeu dos nossos antepassados e temos que cuidar dele, repassando para outras pessoas. Inclusive a qualquer um que se interessar de verdade. A gente compartilha. Eu gosto de dizer que o que move o Bumba-meu-boi que a gente faz é a fé. E a fé não costuma falhar’’, finaliza.