SP e RJ com mais de 54%, Norte com menos de 2% : a desigualdade das medalhas olímpicas do Brasil

Quinto em extensão territorial e sexto em população, o Brasil reflete sua grandeza em muitas áreas, mas a desigualdade no esporte brasileiro destaca profundas disparidades nas conquistas olímpicas. Um levantamento exclusivo que analisou as origens das conquistas nacionais da história dos Jogos Olímpicos de Verão revela um desequilíbrio na distribuição das medalhas entre as regiões do Brasil.

A região Sudeste concentra 387 medalhas, liderando disparadamente. Em seguida vêm as regiões Sul (100), Nordeste (73) e Centro-Oeste (27). Brasileiros nascidos no exterior acumulam 15 medalhas, e estão à frente da região Norte, que com 8,  ocupa a última posição. Segundo o Censo de 2022, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro têm respectivamente, 23,0%  e 8,6%, da população total do país. Ambos são super-representados no levantamento, no qual, paulistas contam com 37,87% e fluminenses com 16,23% das conquistas olímpicas. A região Norte na mesma pesquisa soma cerca de 8% da população brasileira, dado que indica sub-representação (1,31%) nas conquistas olímpicas.

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Esta reportagem a Revista Babel faz um diálogo entre os números dessa apuração, relatos de atletas e temas de pesquisadores, para compreender como se dá a dinâmica da desigualdade do esporte de alto rendimento no Brasil.

Segundo Quéfren Nogueira, pesquisador de Educação Física na Universidade Federal de Sergipe (UFS), as políticas esportivas da história foram excludentes e agravaram as desigualdades. O pesquisador argumenta que o atual cenário de jovialização da desigualdade  impacta na formação, fazendo com que jovens não tenham participação no esporte.

“É crucial que o esporte seja concebido como uma política de Estado, com práticas inclusivas que valorizem as potencialidades individuais e regionais. A população deve ter o acesso e o incentivo à prática esportiva como um bem cultural e educativo”, sugere ele.

Um direito social, o esporte é uma ferramenta  para promover saúde, bem-estar e interação. A prática esportiva fortalece comunidades, amplia oportunidades e estimula hábitos saudáveis desde a infância. No alto rendimento, o esporte inspira a sociedade, projeta o país no cenário global e movimenta a economia. 

 

Base

Casualidades, iniciativas individuais e ações pontuais são comuns em casos de destaque da base. Cida Lisboa, ex-jogadora de vôlei, compartilha início no esporte. “Comecei porque morava na academia perto de casa, tinha muito interesse no que rolava lá, praticava de tudo, mas me apaixonei pelo vôlei”. Por conta da sua altura e de convites para competir em alto nível, Cida se distanciou da quadra e foi para a areia, o que depois inspirou sua filha Duda.

Duda Lisboa, atleta de duas olimpíadas do vôlei de praia, faz questão de enaltecer o papel fundamental de sua mãe na sua formação: “Ela me ensinou tudo, saí do CT do vôlei dela, acompanhava desde criancinha, já estava nos torneios que disputo hoje .” Ao lado de Ana Patrícia, com idas e vindas, a dupla atua desde a base. Foram campeãs nos jogos da juventude em 2014 e, em 10 anos, tornaram-se campeãs olímpicas.

Nos Jogos de Paris 2024, os medalhistas Caio Bonfim (marcha atlética) e Bia Souza (judô), também iniciaram no esporte por influência de pais, ex-atletas. Hoje, Duda é uma das duas únicas medalhistas do Sergipe e o centro de treinamento Cida Lisboa, no município de São Cristóvão, tornou-se um polo do vôlei de praia, revelando talentos de escala nacional e internacional para o esporte.

A goleira da seleção brasileira de handebol, Gabi Moreschi, é nascida em Maringá, cidade paranaense com um dos 50 maiores IDHs do Brasil. Ela conta o caminho até se consolidar como uma das melhores do mundo na posição: “Tínhamos esportes variados na escola. O basquete despertou algum interesse, mas foi no handebol que me encontrei. Havia uma cultura forte desse esporte na minha escola.” diz ela.

Mesmo com algum nível de infraestrutura na sua cidade e na seleção, que frequenta há 14 anos. Moreschi relata: “Na Europa, crianças de 5-6 anos já têm acesso a treinamentos de alto nível, quadras apropriadas e uniformes adequados. Isso melhora muito a formação esportiva. No Brasil, estamos alguns passos atrás.”

A canoísta Valdenice Conceição é natural de Itacaré, na Bahia, cidade com cerca de 30 mil habitantes. Valdenice relembra que, antes de ser uma atleta, o esporte estava enraizado em sua comunidade natal: “Meu irmão me incentivou no esporte. A gente já remava em canoas nativas porque meus pais eram pescadores, era nosso meio de transporte, isso me deu facilidade.”

Para disputar sua primeira olimpíada em 2024, Conceição precisou se mudar para o Rio de Janeiro e treinar no Flamengo, um clube que isoladamente, em Paris, teria superado países como Argentina e Portugal no quadro de medalhas. Vale destacar que 10 clubes brasileiros com mais atletas classificados para Paris estavam todos concentrados no eixo sul-sudeste.

À esquerda, Gabi Moreschi; ao meio, Duda Lisboa; e à direita, Valdenice Conceição.

 

Raízes do desempenho esportivo

“A região do baixo sul da Bahia, onde cresci, tem potência na canoagem, porque a maioria dos atletas vem de comunidades ribeirinhas, com um amor profundo pelo que fazem.”

“Para nós, é uma verdadeira oportunidade de vida, e é algo que abraçamos com unhas e dentes.” Descreve Conceição. Esses talentos, a que ela se refere, vinculados ao estado e à cultura ribeirinha, conquistaram todas as 7 medalhas da história da canoagem brasileira, sendo 6 delas de Isaquias Queiroz.

O jornalista que cobre modalidades olímpicas, Guilherme Costa considera que as cidades e regiões com características naturais ou culturais favoráveis ao esporte precisam ser identificadas e apoiadas como polos estratégicos de desenvolvimento.

Tabela apresentando o pódio dos esportes individuais mais premiados em cada região do Brasil, excluindo as modalidades coletivas.

Outro exemplo baiano é o boxe, o estado é responsável por 5 das 9 medalhas olímpicas do Brasil. Muitos acreditam que esses resultados refletem a cultura local, os investimentos em infraestrutura, políticas públicas inclusivas e o trabalho das federações no desenvolvimento de novos talentos.

A apuração destaca que a vela e o hipismo apresentam disparidades ampliadas, isso em partes devido aos custos elevados de manutenção, gastos com equipamentos e infraestrutura limitada. Na vela, há uma forte concentração no Sudeste, responsável por 33 das 36 medalhas. No hipismo, as medalhas estão majoritariamente associadas às regiões mais ricas: quatro medalhas no Sudeste, duas no Sul e três conquistadas por atletas nascidos fora do Brasil.

“Não se pode limitar o desenvolvimento esportivo às regiões que já possuem tradição e infraestrutura consolidada. Democratizar o acesso ao esporte é crucial para ampliar a inclusão e diversificar a base de talentos, alerta Costa sobre a desigualdade no esporte brasileiro.

 

Esperança e realidade desigual

 

A ilustração da esquerda mostra a relação entre o número de habitantes por medalhista em cada região do Brasil, com base de dados populacionais do IBGE 2022.  Já a da direita apresenta a porcentagem de medalhistas homens em cada região.

No Sul, a região de Gabi, há mais oportunidades para o acesso ao esporte, mas com uma ampla predominância de medalhistas homens. No Nordeste, de Duda e Valdenice, apesar de exigir mais habitantes por medalhista em comparação a outras regiões, observa-se um percentual mais equilibrado de medalhistas mulheres.

Em comum, as trajetórias das atletas destacam a falta de estrutura e apoio financeiro de maneiras diferentes. “Não era algo super equipado, mas havia quadras e pessoas dispostas a incentivar as crianças.” Diz Duda. “Meu maior desafio foi o patrocínio. No início, dependíamos de vaquinhas e doações pela rua. Até hoje, mesmo no alto rendimento, não é fácil encontrar apoio.” Lembra Conceição.

A falta de incentivo afeta na formação de novos talentos e na manutenção dos já existentes. Cida Lisboa observa: “Vi muitos talentos se perderem por falta de estrutura, apoio e oportunidades. Muitos poderiam ter sido grandes atletas, mas não havia quem os guiasse.”

Embora enfrentam desafios estruturais, elas concordam que as Olimpíadas representam uma oportunidade única para aumentar a visibilidade de suas modalidades e atrair novos praticantes e patrocinadores.

No caso do vôlei de praia, Duda resume o impacto de sua participação olímpica com otimismo: “Depois das Olimpíadas, o esporte ganha força. Isso ajuda não apenas os atletas, mas também inspira as pessoas a praticarem e apoiarem o vôlei de praia.” , prossegue, “O vôlei de praia ainda não tem tanta visibilidade, mas a Olimpíada ajuda as pessoas a olharem para o esporte de forma diferente. Eu vi as escolinhas de vôlei crescerem, com mais crianças se interessando.”

“ A canoagem feminina ainda não tem muita visibilidade, mas nos últimos anos houve avanços. Os feitos de Isaquias e as redes sociais têm ajudado muito, e é gratificante ver essa evolução.”, analisa a canoísta.

No handebol, Gabi destaca que, mesmo com a maior atenção gerada por grandes campeonatos, a modalidade enfrenta obstáculos econômicas para se consolidar como profissão viável no país: “Meu sonho é ver o Brasil com uma liga super desenvolvida, com estádios lotados, como vemos na Europa. A visibilidade trazida pelos Jogos é importante, mas ainda temos um longo caminho.”

 

Identidade do esporte brasileiro

O Brasil tem dois esportes, o futebol e o outro que tá ganhando!

A frase, em tom de desabafo, do marchador brasiliense Caio Bonfim durante Paris 2024, viralizou e revisitou uma discussão relevante: até que ponto a valorização excessiva de poucas modalidades contribui para a falta de reconhecimento de muitas outras?

Este levantamento confirma a difusão do futebol e do vôlei, sendo os únicos, ao lado do atletismo, que superam os dados alarmantes de desigualdade no esporte brasileiro,  são os que apresentam medalhistas em todas as regiões, incluindo nascidos fora.

O futebol ocupa uma posição central na cultura e identidade brasileira, há uma acessibilidade, simplicidade e conexão emocional com o povo, o país tem uma história vencedora de memórias, com conquistas e com ídolos que transcendem gerações.

Nessa vertente, o  vôlei seguiu um movimento cultural semelhante. A primeira medalha de ouro em esportes coletivos, conquistada em 1984, e o título mundial de 1982 impulsionaram a prática, a visibilidade e os investimentos, como a criação da Superliga e o fortalecimento das categorias de base.

Guilherme Costa considera ser essencial que o sucesso do alto rendimento seja acompanhado por investimentos na base e na democratização do esporte: “(Quando se ganha), a roda do esporte gira de maneira positiva, há maior interesse da população pela prática esportiva, aumentando as chances de descobrir novos talentos.” Diz ele.

Quanto a desigualdade do esporte brasileiro, as fontes desta reportagem concordam que o foco deve ser a ampliação de oportunidades para a prática esportiva, independentemente da formação de atletas de elite. Espaços como quadras, parques e áreas verdes devem ser mantidos e ampliados, reforçando o esporte como um direito básico e instrumento de inclusão social.

Quéfren Nogueira e Guilherme Costa destacam que a falta de uma estratégia clara impede o Brasil de se destacar em modalidades específicas. “O Brasil é competitivo em esportes coletivos, lutas e esportes radicais, mas falta foco estratégico”, afirma Costa. “A diversidade cultural é um ativo valioso, mas ainda não se traduz em uma abordagem própria e inclusiva” complementa o pesquisador.

No livro Além das Próprias Forças, Nogueira aponta fatores socioculturais e históricos como barreiras à formação de uma elite atlética no Brasil. Ele defende uma transformação nos hábitos cotidianos e na relação entre elite e povo, para extinção da desigualdade no esporte brasileiro: “O Brasil precisa transformar o destemido jagunço, o tabaréu ingênuo, o caipira simplório e o malandro preguiçoso em atletas olímpicos, criando um novo modo de vida para formar competidores.”