Entre a porteira da fazenda e a sua mesa de jantar, há um longo caminho. Frutas, verduras, legumes e outros alimentos costumam atravessar diversos estados até alcançar as feiras, mercados e vendinhas. Não raramente, ao chegarem em seus destinos finais, já não se sabem informações básicas sobre a remessa. Quem produziu? De que lugar do Brasil veio aquela comida? A natureza complexa da cadeia produtiva agroindustrial faz com que o alimento não tenha um itinerário padrão, uma cartilha a ser seguida por todos os produtores. Tomates vão por ali, batatas vêm por aqui, feijão e arroz por lá. Pelo contrário, as múltiplas combinações de processos capilarizados pelo país adentro imperam, tornando a tarefa de rastrear os alimentos uma das maiores dificuldades para o agronegócio brasileiro.
Com a digitalização e os avanços tecnológicos integrados à produção agrícola, novas soluções começam a surgir, consolidando o conceito de Agro 4.0. Para lidar com problemas como a escassez de dados e a dificuldade de rastreabilidade, a agricultura digital propõe a utilização de métodos como a computação em nuvem, conectividade entre dispositivos móveis, soluções analíticas para processar grandes volumes de dados e a construção de sistemas de suporte à tomada de decisões de manejo. Nessa linha, a utilização de tecnologias baseadas em blockchain concentra todas essas ferramentas no mesmo pacote, e já se apresenta projetos sólidos no Brasil.
Tecnologia a Serviço do agro: O que é Blockchain?
Blockchain em tradução livre significa corrente de blocos. Trata-se de um mecanismo de banco de dados que permite o compartilhamento transparente de informações na rede, que são inseridos em um bloco de dados. Em cada um deles, podem ser registradas as informações de sua escolha: quem, o quê, quando, onde, quanto e etc. Ao final, cada um deles recebe uma identificação em forma de código. Essa identificação do primeiro bloco fará parte do código da próxima, e assim por diante. Dessa maneira, cria-se uma cadeia de informações transparente e interligada cronologicamente. Isso reduz o risco de manipulação e fraude, pois qualquer tentativa de alteração em um bloco exige a modificação de todos os blocos subsequentes em todos os dispositivos da rede, algo extremamente difícil de realizar, tornando a rede segura e confiável.
Bruno Albertini, professor de engenharia da Computação e Sistemas Digitais da Escola Politécnica da USP, explica de forma ilustrativa como a tecnologia colaboraria para a rastreabilidade e serviria para o consumidor final. “Imagine você chegar no mercado, pegar seu celular e escanear um simples QR Code na embalagem do seu hambúrguer ou outro produto do seu desejo, e ter acesso a toda a cadeia produtiva de forma detalhada ali mesmo na tela do seu celular. É isso que a blockchain visa possibilitar.”
O docente afirma que a aplicação dessa tecnologia traria ao consumidor o acesso a informações como a fazenda onde foi criado o gado que deu origem a carne, as práticas adotadas pela fazenda, a alimentação que foi dada ao boi, o tipo de pasto, a soja ou outro alimento que foi dado ao animal, a vacinação que ele fez ou deixou de fazer e outros detalhes. “Essa conexão e acesso permite uma rastreabilidade sem precedentes na história da indústria”, aponta.
Uma lacuna de informações
Atualmente, no entanto, a realidade ainda é bem diferente. Ao longo da cadeia produtiva, diversos gargalos vão drenando a produção. Essas dificuldades geram desperdícios de alimentos e prejuízos financeiros sobre os quais as autoridades competentes carecem de informações mais detalhadas. Onde estão essas dificuldades? Quais etapas geram mais perdas? Por quê? Quais medidas devem ser tomadas para tornar a cadeia produtiva mais eficaz? Essas são indagações sem veredictos.
As próprias estimativas acerca da problemática revelam o grau de incerteza das instituições sobre a situação. O relatório “Diagnóstico sobre a Fome e o Desperdício de Alimentos no Brasil (2022)”, estima que, das 161,3 milhões de toneladas de alimentos que o Brasil produz anualmente, 55,4 milhões são desperdiçadas todos os anos. Ainda segundo o relatório, 84% desse desperdício aconteceria antes do alimento chegar na casa do consumidor.
Outras estimativas apontam números distintos. Segundo um levantamento da ONU, o Brasil desperdiçaria ao total cerca de 27 milhões de toneladas de alimentos, dos quais 60% seriam desperdiçados na verdade já sob a posse das famílias. Já a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos, a ABIA, indica que mais de 90% do desperdício alimentar ocorreria durante a cadeia produtiva, usando como base um estudo realizado pela MindMiners em parceria com a Nestlé.
Essa salada de números diferentes é sintoma de uma lacuna diretamente relacionada ao problema da rastreabilidade dos alimentos: a escassez de dados oficiais sobre as perdas alimentares. É o que aponta Gustavo Porpino, analista no setor de alimentos e territórios da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa. “Essa questão dos dados é muito importante, porque nós não temos um retrato fiel da situação. Se você fizer uma pesquisa na internet, vai achar algumas fontes que são pouco confiáveis, por vezes até citam a Embrapa ou o IBGE, mas não existe esse dado. Por quê? Porque de dentro da porteira até antes do varejo, o Brasil nunca quantificou bem nas cadeias produtivas mais expressivas o quanto se perde nessas etapas. Não existe nenhum dado oficial do Brasil”.
A questão também está refletida nos esforços internacionais referentes ao assunto. O último relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) com enfoque em perdas foi publicado em 2019. O documento apresenta uma lista de países que reportaram oficialmente à FAO dados sobre perdas entre os anos de 1990 e 2019. Não há nenhum dado reportado pelo Brasil para nenhuma cadeia produtiva.
“É a FAO quem faz a coleta e o reporte desses dados sobre perdas, quer dizer, os alimentos estragados do campo até antes do varejo. Esses dados servem ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 12, o ODS 12, que trata da mudança nos padrões de consumo e produção para o desenvolvimento econômico e social sustentável. Na plataforma da FAO para esse fim, o Índice Global das Perdas, não existem dados oficiais reportados pelo Brasil. Na América Latina, a Argentina contribuiu com dados referentes à cadeia produtiva da carne. A maior parte dos dados para o continente vem do Peru. Assim, não faz sentido estimar as perdas alimentares no nosso país com base nos dados da FAO”, reforça o analista.
Sibraar: uma Blockchain à brasileira
Gestões eficientes e disponibilidade de dados andam lado a lado. Ter um panorama geral do cenário é imprescindível para o desenvolvimento de uma cadeia produtiva mais eficaz e que, consequentemente, gera menos desperdício. Como uma resposta ao cenário brasileiro, a Embrapa Informática Agropecuária desenvolveu o Sistema Brasileiro de Agrorastreabilidade, o Sibraar.
O software é o pioneiro no mercado de tecnologia nacional para rastreabilidade de produtos agroindustriais. Utilizando a tecnologia digital blockchain, a iniciativa visa produzir e oferecer informações sobre a qualidade, procedência e tratamento dos produtos.
Alexandre de Castro, coordenador do projeto, comenta que o sistema está sendo utilizado em alguns setores da indústria e já apresenta bons resultados. “Iniciamos pela cadeia produtiva da cana-de-açúcar de São Paulo com uma aplicação bem-sucedida. Depois, expandimos a operação para hortifrúti com produtores menores. Recentemente, alcançamos a Associação Brasileira da Indústria do Arroz e agora estamos fechando parcerias com o setor de proteína animal”.
O sistema Sibraar opera como um grande livro registrador em formato digital. Com a integração de todos os elos da produção, é possível mapear a cadeia e todo o trajeto que os alimentos fizeram até chegar ao consumidor.
“Esses processos, de conhecimento do modelo de custódia e das cadeias de suprimento, por meio de tecnologias para registro de informações, vão auxiliar no conhecimento e em uma abordagem mais assertiva dentro do tema de desperdício de alimentos. Através disso, nós vamos conhecer o quanto está sendo produzido em cada elo da cadeia, saber o que está acontecendo e aonde. Tudo de forma detalhada e quantificada. Isso torna possível a tarefa de fazer um balanço geral da produção. Calcular o que está se perdendo de um elo para o outro. Serve como um sistema de auditoria para que se tenha conhecimento um amplo e específico dos setores”, explica o desenvolvedor.
Para Bruno Albertini, sistemas de rastreabilidade tendem a privilegiar práticas ambientalmente sustentáveis. “Os consumidores estão cada vez mais atentos a questões como a sustentabilidade das fazendas, a ausência de trabalho escravo e o bem-estar animal. Muitos topam pagar mais caro por produtos que adotam boas práticas de manejo em sua produção”, afirma. De fato, segundo um levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), 74% dos brasileiros se dizem consumidores ambientalmente conscientes. Além disso, cerca de 50% afirma verificar se o produto foi produzido de forma sustentável.
Com essa tendência crescendo, empresas que já adotam os moldes sustentáveis de produção se beneficiam por garantir mais credibilidade ao seu produto. Alexandre de Carvalho considera que a junção dessa demanda com o Sibraar é um casamento perfeito. “O sistema auxilia esses processos de registro, de histórico e auditabilidade. Através dele, o consumidor acessa um QR Code, onde tem acesso a uma página de rastro que contém informações do processo produtivo, da lavoura até a água utilizada na indústria, também questões de distribuição e varejo. Isso leva uma informação mais segura ao consumidor e garante uma credibilidade muito maior para a empresa”, finaliza Alexandre.