Meu querido ‘amigo’, Booktok

Meu querido ‘amigo’, Booktok

“Ele facilita muito o processo de conhecer novos livros e autores, indica coisas diferentes e me possibilita ler mais livros. Então diria que confio bastante nas sugestões dele, é até engraçado essa relação, porque entro em contato com ele todos os dias”. Felipe Abreu, de 17 anos, estudante técnico de enfermagem, não é o único que dedica tempo e atenção no Booktok, uma comunidade dentro do TikTok que conquista um espaço íntimo na vida de leitores e indica, comenta e avalia livros. 

Dentro do pavilhão movimentado e barulhento da 27ª edição da Bienal Internacional do Livro de São Paulo, o jovem, com os braços cheios de sacola de livros, ri enquanto comenta o impacto da comunidade na sua leitura, já que “maioria dos livros que comprei hoje foram indicações dele”.

Minha relação com o Booktok se estabeleceu como a de outros adolescentes e jovens adultos, ainda na pandemia. A possibilidade de pertencer a uma comunidade que não só incentiva mais minha leitura, mas também te convida a interagir sobre os livros, me pareceu muito tentador para, no mínimo, dar uma chance e acompanhar os vídeos publicados na plataforma. 

Mesmo entre quem não possuía o nome no vocabulário pessoal, os mais de 2,5 milhões de vídeos compartilhados com a hashtag #BookTokBrasil são um parâmetro para entender em que terreno a leitura entre jovens adultos – e futuros leitores – está se assentando.

Ainda no início da feira, próxima à bancada tímida com panfletos e mapas do local escassos, abro o aplicativo do TikTok para procurar o título de um livro que havia gostado. A comunidade continua presente na página inicial, mesmo sem procurar por ela. É por meio da hashtag que os vídeos são agrupados e, como influenciadores literários já são conhecidos, é fácil encontrar os conteúdos. 

Com esses passos, consigo explicar como funciona o TikTok para quem nunca ouviu sobre o assunto. Mas Gabriele Matos, o nome da jovem estudante de letras de 20 anos que escuto chegar com a irmã mais nova próxima a mim, é mais assertiva. 

“O Booktok é um espaço para entender melhor quais livros estão em destaque no momento, quais estão com notas baixas, quais os melhores, quais os preços, o que estão falando deles”.

A relação estabelecida entre Gabriele e o booktok se assemelha muito à de uma pessoa que procura na internet sobre um assunto específico, ou corre até um amigo para pedir um conselho. 

Nível Booktok de qualidade?

A premissa básica da plataforma, a de divulgar a leitura, é o que une as experiências de dois amigos que encontro dentro da Arena Cultural, no extremo direito do pavilhão, esperando pela próxima palestra. 

Enquanto Walter Carvalho, de 20 anos, estudante de biologia, usa o booktok todos os dias e tem quase todas as leituras indicadas pela plataforma, o amigo Lucas Ricardo, analista de sistemas, de 24 anos, não conhecia a comunidade e declara preferir mangás. 

Mesmo sem o conselho da rede, ele comenta já ter confiado em grupos do Facebook, uma recomendação em formato de texto mas muito similar a do Booktok. Foram nestes grupos que Lucas conheceu o mangá e, mesmo afastado dos livros “recomendados pelo TikTok”, ele assume ter ficado intrigado para entender “qual livro as pessoas estão comentando por lá e o que estão achando”.

A perspectiva da indicação não é a única que move estes e outros jovens a interagir diariamente com o Booktok e, para Aline Frederico, pesquisadora em literatura infanto-juvenil e professora do curso de Editoração na USP, a força da rede surge do senso de pertencimento. 

“Apesar da gente ter esse imaginário de que a leitura é uma coisa solitária, ela é na verdade uma prática social, a gente gosta de trocar o que a gente lê com outras pessoas que são leitoras”, aludindo ao mecanismo que possibilita a ampliação de conhecimento sobre os livros. 

Letícia Pinheiro, estudante de Editoração na USP, acredita que livros julgados como “bobinhos” e muito famosos entre o público juvenil e adulto podem ser a porta de entrada para o mundo dos livros, como aconteceu com ela mesma, experiência que Frederico também acredita que aconteça com frequência e ainda pontua como o Booktok pode ser um “espaço para saber dos livros que estão sendo publicados”.

Em um período onde o TikTok não era uma palavra com significado, Letícia leu Crepúsculo e conheceu, a partir das leituras da protagonista Bella, autoras como Charlotte Brontë e Jane Austen, literaturas das quais, hoje, ela é fã.

De volta ao presente, sentada no chão vermelho da praça de alimentação, outra Letícia, a Floriani, de 22 anos, estudante de comunicação organizacional, me conta experiência similar. Foi no TikTok que ela conheceu alguns autores pelos quais viajou de Curitiba, no Paraná, até São Paulo, para ter o autógrafo, como Carla Madeira. 

O contato dela com a plataforma é diário, e me explica que o usa para “me inspirar a ler, pra pegar novos livros, novos autores, me incentiva muito a ler, dá um gostinho de comunidade, de dar vontade de participar. Conheci alguns que tão aqui pelo Booktok, inclusive”.

Fenômeno antigo, aplicativo novo

“A academia vai me crucificar”, Frederico comenta rindo ao  ir além e relacionar o Booktok a um crítico literário. A especialista lembra que existem segmentos de crítica – acadêmica, especializada e social – e que a resenha de um leitor nada mais é que compartilhar seus sentimentos, opiniões e ressalvas sobre a obra, “como um crítico faz”. 

Mesmo assim, livros com selo de “aprovado pelo TikTok”, ou localizados na seção “TikTok” nas livrarias ainda fazem uma parte das pessoas torcer o nariz e sentenciar o livro como “ruim”. Aqui na Bienal, não. 

Os “famosos no Booktok” ocupam paredes inteiras nas estantes de editoras, um dos motivos pelos quais o coordenador de marketing do Grupo Editorial Record, Lucas dos Reis, confirma que “alguns dos livros que aumentaram as vendas vieram dos chamados ‘hits do TikTok’”. 

Embora ele não compartilhe ou afirme existir um dado quantitativo do quanto unicamente a comunidade devolveu em lucro para a Editora, assume que “parte dos livros em listas de mais vendidos são os que fazem mais sucesso na rede social”.

Dentro do guarda-chuva “do Booktok”, os gêneros ainda se dividem em comunidades mais precisas, o que pode justificar o fato de todos os jovens dos 17 aos 24 que conversei entre idas e vindas das ruas A a Z da exposição, que já conheciam o Booktok terem citado ao menos um livro famoso na plataforma, de gêneros diferentes, que gostem. 

A diversidade de gêneros dentro da comunidade pode ser mais um fator para a aparente aprovação dos jovens. Ao menos de todos os 15 que conversei ao longo do dia, nenhum deles apresentou receio com o Booktok, mesmo entre os que não usavam ou conheciam a rede.

O que permitiu ao TikTok cravar sua presença no cotidiano dos jovens, para Frederico, é o momento e o desenvolvimento das redes em que isso aconteceu. Ela recorda como o próprio YouTube teve sua febre dos booktubers, e o Facebook teve os grupos sobre livros, espaços que propunham e disponibilizavam a mesma coisa que o TikTok faz agora. 

“O formato do TikTok é mais lúdico, brincalhão, com vídeos mais curtos e que podem ser agrupados e encontrados por uma hashtag. Ele também foi influenciado pela pandemia, um período que teve crescimento da leitura do jovem. Enquanto tudo isso, no YouTube você encontra aulas de uma hora sobre um livro e você precisa seguir os canais para receber os conteúdos”, explica.

“Espaço para o jovem conhecer a literatura”

Apesar de minha reclamação insistente quanto à quantidade de visitantes, o que se agrava quando passo mais de uma hora para entrar no estande de uma editora, não consigo ter noção de que, em toda a feira, irão passar 722 mil pessoas, mais de 9% a mais do que na última edição, em 2022 segundo análise da Câmara Brasileira de Livro. 

O número impressiona e a experiência dos adolescentes e jovens adultos que converso são quase suficientes para cristalizar uma imagem esperançosa da leitura no Brasil, o que cai por terra assim que leio os índices pouco amigáveis da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, produzida pelo Instituto Pró-Livro, pelo Ipec e pelo Itaú Cultural.

Segundo levantamento feito na sexta edição da pesquisa, a média de livros lidos por ano pelo brasileiro caiu de 4,95 para 3,96 livros de 2019 a 2024, e a quantidade de pessoas não leitoras passou, pela primeira vez, a de leitores. 

A pesquisa ainda apontou que o índice de pessoas que leem por gosto no lazer caiu 4%, enquanto usar a internet, no geral, aumentou 12% e, especificamente no uso de redes sociais, 5%. Esses dados dialogam com o embate entre livros versus aparelhos eletrônicos, mas em um recorte específico o embate se torna um escape para o futuro. Ou uma bolha.

Aline Frederico, por exemplo, não exclui o malefício das redes sociais para a saúde mental, mas também não deixa de ressaltar como, por meio de comunidades do Booktok, um jovem leitor esteja se formando. 

“A literatura tem um papel muito importante nessa jornada individual de autoconhecimento e acho muito importante esse espaço para o jovem conhecer a literatura, e nesse sentido eu acho bem positivo”, explica.

Na esperança de conseguir atrair o jovem a ler e a sedimentar uma relação com ele, a construção de uma confiança entre o usuário e o Booktok parece um dos pontos que mais define a influência que a plataforma vai causar na decisão de leitura dele. 

A indicação de um amigo, de professores e o gosto pessoal ainda são, segundo a mesma pesquisa sobre a leitura no Brasil, os principais fatores que motivam a leitura e são também os pontuados pelos jovens aqui na Bienal do porquê e como usam a plataforma.

A estudante técnica em design, Isabel Alves Dias, de 19 anos, por exemplo, me explica que usa a plataforma como um “medidor de opinião” sobre um livro, o que costuma instigar sua curiosidade sobre ele. 

Mesmo assim, ela afirma que o gosto pessoal “sempre prevalece para iniciar uma leitura”. Enquanto a publicitária Ângela Souza Nascimento, de 24 anos, procura “com frequência recomendação de livros”, e equipara a opinião do BookTok com a de amigos pessoais. Se a gente pensar bem, podem ser amigos mesmo.