No estado de São Paulo, um vigia de shopping chegava ao seu posto para trabalhar vestindo camisetas que ilustravam sua crença: uma religião de matriz africana. Antes de iniciar seu trabalho, ele trocava sua roupa pelo uniforme e realizava o serviço normalmente. Ao fim do turno, colocava a mesma camiseta com a qual chegou e partia para casa. “Seus santos não vão te ajudar, vou fazer de tudo para recolher você de posto”, foi uma das tantas ofensas e ameaças que ele ouviu de seu coordenador.
No ano passado, a empresa em que o vigia trabalhava foi condenada a pagar 10 mil reais de indenização à vítima por violações de assédio moral em virtude de racismo religioso. Esse é apenas um dos casos que Paola Mineiro, advogada especializada em direitos trabalhistas e em direito antidiscriminatório, conta para a Babel.
Os casos de intolerância contra religiões afro-brasileiras cresce no Brasil, com um aumento de 45% nesse tipo de violação comparando o primeiro trimestre de 2023 ao mesmo período de 2024, segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.
Em contrapartida a esse fato, as leis referentes a esse crime estão se atualizando. As alterações mais recentes na Lei do Racismo de 1989 são as de janeiro de 2023, aumentando a pena para pessoas que cometerem tais crimes tanto em redes online como em qualquer página da internet, por exemplo.
Além disso, o parágrafo 2º-B da nova lei faz uma ressalva estritamente ligada às práticas religiosas, relacionando-as com o crime de racismo. O parágrafo explicita que “incorre nas mesmas penas quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas.”
O termo racismo religioso ainda é recente e está pouco a pouco sendo construído. Com a mudança na Lei do Racismo, o assunto tomou mais força no país. Paola Mineiro explica que o termo se refere à história brasileira de perseguição e opressão à cultura e aos direitos da população negra desde a formação do país.
O termo só é aplicável quando nos referimos ao preconceito direcionado a religiões afro-brasileiras e não se estende ao cristianismo, islamismo, judaísmo, ou qualquer outra crença. “Racismo religioso é baseado na intolerância religiosa voltada para religiões de matriz africana. Então Candomblé, Umbanda, Jurema, e mais uma série de denominações que a gente entende que está dentro desse guarda-chuva.”, explica a advogada.
Mas como o racismo religioso se manifesta? Recusa ou mal atendimento por conta da religião do indivíduo, ou assédio moral em ambientes de trabalho que impeçam, por exemplo, o trabalhador de usar suas guias, também estão incluídos na noção de racismo religioso.
Mais que isso, essa violência é persistente na vida de milhares de praticantes de religiões afro-brasileiras. Desde olhares tortos a exclusão, essa população, principalmente a população preta, sofre constantemente com ofensas, que tornam atividades banais do dia a dia muito mais penosas e com marcas que podem perdurar por uma vida.
A Babel conversou com três mulheres pretas do candomblé e da umbanda para contar suas vivências e lutas no enfrentamento do racismo religioso.
“É como se eu estivesse suja”
É sexta-feira de manhã. Dia de preceito. Vanilde, ou Val, como também gosta de ser chamada, cumpre esse rito sem falhas. Os preceitos, na religião, são um momento de resguardo e reequilíbrio. Ela, então, veste-se toda de branco, com seus fios e seu pano de cabeça, nada de se alimentar de carne, pimenta, ou o cafézinho que tanto gosta.
Naquela manhã de sexta, Val consegue um assento no ônibus e ainda mantém um espaço vazio ao seu lado. Durante o caminho, o veículo começa a encher e se apinhar de gente. Aos poucos, os bancos começaram a ser ocupados pelos passageiros, assim como todo espaço nos corredores, exceto o lugar livre ao lado de Val. Até o terminal de ônibus, ninguém ousou sentar ao seu lado, ela foi o trajeto todo sozinha. Preferiam seguir seu caminho em pé em um ônibus lotado numa manhã de sexta em São Paulo.
“Eu senti como se estivesse suja.”, ela confessa.

Vanilde é uma mulher preta, 47 anos, baiana e que atualmente mora em São Paulo. Sua aproximação com a religião aconteceu quase que espiritualmente. Ela sempre passava em frente a uma casa de candomblé e sentia como se algo chamasse por ela. Decidiu marcar, então, um jogo de búzios para entender qual o sentido de tamanha atração. O jogo abriu as portas de Val. “Deu certinho que eu pertencia àquela casa e àquela religião”, ela conta.
Porém, desde criança, antes mesmo de entrar para a casa, já notava que aquela crença não era bem vista. Na Bahia, Val se lembra de ouvir vizinhos comentando num tom preconceituoso sobre pessoas que praticavam o candomblé. Ela não se metia, ficava calada e, como ela mesmo diz, seguia sua vida normalmente, afinal, as ofensas não eram direcionadas para ela. Ainda não.
Anos mais tarde, após se iniciar no candomblé, Val nunca escondeu seu amor pela crença e nunca deixou de seguir os dogmas por conta de julgamentos alheios. Val é empregada doméstica e quando tem serviço às sextas, não abre mão do seu preceito para se encaixar. E por mais que não tenha sofrido nenhuma ofensa dos seus empregadores que se lembre, o episódio no ônibus a caminho do trabalho mudou a percepção de Val de como o preconceito está enraizado nas pessoas.
Durante nossa conversa, enquanto relatava o acontecido, Val não deixou de mostrar sua frustração. Era apenas mais uma viagem de ônibus para o trabalho. Um dia como qualquer outro para qualquer outra pessoa. Ainda assim, é um dia que Vanilde não vai se esquecer.
“Desinformação vira munição”
Aos 6 anos de idade, Bruna foi questionada por uma amiga que morava na região se era o avô dela que tinha “a casa do diabo”. Seli não entendeu o motivo do comentário. “Não, meu avô tem um centro”. A amiguinha, buscando confirmação, perguntou então para o pai, que assistia à cena: “Esse negócio de incorporar entidade não é coisa do diabo?”. O homem confirmou.
A caridade e a fé sempre fizeram parte da infância de Bruna Seli. Moradora de uma região humilde próxima a Salvador e neta do homem que conduzia um centro universalista que “era mais umbanda que qualquer outra coisa”, nas palavras dela, Bruna se via envolvida nas atividades da fé do avô. A incorporação, o passe e as entidades falangeiras eram parte do dia a dia da menina e de sua família.
Além dos ritos rotineiros do centro, o local era bastante conhecido nos arredores por conta das ações solidárias que promovia à população carente local. Ainda assim, isso não era o suficiente para que as pessoas respeitassem quem frequentasse a casa.
E foi aos seis anos de idade, em uma conversa com uma amiga, que Bruna notou que algo que lhe era tão natural desde pequena, era visto com um olhar totalmente distorcido por muitos. Mais que isso, essa visão, que era completamente oposta à sua, era ensinada e encorajada.
Com a morte da avó, sua família se viu numa situação difícil. Abandonaram a religião e viveram um tempo sem professar nenhuma fé. Por volta de 2017, sua mãe passou a frequentar novamente um centro de umbanda. Num primeiro momento, Bruna não sentiu nenhuma vontade de participar. “Um dia eu fui só tomar um passe e acabei ficando”, ela conta rindo.

Mas o início na religião não foi fácil. Por saber das ideias das outras pessoas a respeito da umbanda, Bruna se sentia insegura e, algumas vezes, com vergonha. “A gente acaba nem tendo convicção daquilo que a gente acredita por uma massa querer impor o que é errado e o que é certo”.
Durante uma visita à casa de uma amiga, Bruna viu sua conversa sobre religião sendo interrompida pela mãe da garota. A mulher dizia que aquilo tudo era errado e que já havia visto pessoas se arrependendo no leito de morte por escolher seguir esses credos.
Bruna ficou sem reação, até por ser iniciante na umbanda. Hoje, ela pensa que teria uma atitude diferente, que não deixaria de se defender. Ela conclui o relato com um fato curioso: “Uns meses depois a mãe dessa minha amiga veio me procurar porque queria fazer um trabalho com meu pai de santo”.
Durante nossa conversa, Bruna contou diversos casos que sofreu no trabalho, no transporte e na presença de amigos da religião. Ela ainda disse que pessoas brancas praticantes vivem um contexto diferente do dela. “Eu sei que pessoas pretas retintas, que não é o meu caso, passam bem pior. E pessoas brancas não passam o que eu passo.”
Hoje, com 25 anos, Seli é atriz e produz conteúdos bem-humorados sobre a religião nas redes sociais. Além de contar relatos sobre suas experiências na umbanda, ela ainda tece críticas a informações e comentários desrespeitosos e distorcidos referentes a religiões afro-brasileiras. Para ela, falar sobre essas questões é mais do que um trabalho, é uma ferramenta poderosa: “desinformação vira munição”.
“Sou um ser humano e mereço respeito”
Era uma sexta-feira, dia 24 de maio de 2024, por volta das 10h30 da manhã. Iaraci foi ao salão de beleza do Shopping Norte em Salvador para fazer as unhas e cortar o cabelo. Ela se direciona à recepcionista e diz que gostaria de fazer pé e mão. Nesse momento, uma senhora também negra passa por Iaraci e diz: “eu é que não vou atender este povo”, a encara dos pés à cabeça e escolhe uma senhora branca para atender.
No dia 26 de novembro de 1966, Iaraci Santos Brito nascia pelas mãos de uma parteira Iyalorixá na ilha Salinas da Margarida, em Salvador. A avó de Iaraci também possuía o cargo sagrado. Sua mãe era rezadeira. Seu destino para com o Candomblé parecia selado desde o nascimento.
Ela é hoje Mãe Iara D’Oxum. “Eu não sou Iyalorixá, eu estou Iyalorixá”, ela faz questão de dizer. Iyalorixá é uma outra denominação para o termo mãe de santo, a sacerdotisa de um terreiro. Aos 23 anos anos, ela abriu sua casa Ilê Tomím Kiosise Ayo na periferia de Salvador e desde então vem prestando serviços à comunidade, à sua ancestralidade e espiritualidade.
Além disso, Mãe Iara é uma figura conhecida, somando mais de 500 mil seguidores em suas redes sociais com seu conteúdo a respeito da religião. O caso que Iaraci nos conta agora foi exposto por ela em suas redes. Mais do que um desabafo, seus conteúdos sobre o ocorrido viraram denúncia e luta.
Mãe Iara não sabe dizer o que sentiu no momento em que sofreu racismo religioso no salão, lhe faltaram palavras naquele instante. Porém, meses depois, enquanto nos conta seu relato, ela chora intensamente. A dor que a situação lhe causou é visível. “Eu me senti tão pequena”.
Logo após o comentário ofensivo da funcionária do salão, ela liga para a filha Carol e conta o que aconteceu. Pouco tempo depois, Carol surge com um advogado, que chama a polícia militar. Afinal, o que havia ocorrido era crime.
Com a presença dos policiais, do advogado de Iaraci e do advogado da dona do salão, a situação acabou sem resolução. Não havia nenhum mandado de prisão. Tudo o que restou foram as ameaças do advogado da dona do salão de processar Mãe Iara por difamação.
“Era como se eu tivesse voltado para a senzala, para os meus antepassados, e aquilo gritava dentro do meu peito”.
No dia seguinte, como protesto, Iaraci voltou ao shopping com atabaques e com os frequentadores de sua casa, cantaram e professaram sua fé no local onde ela não foi bem-vinda.

Hoje, contar sobre a situação do dia 24 de maio não é fácil, mas ajuda a aliviar a dor. Para Mãe Iara, falar sobre isso é um ato de resistência. E ela encoraja que qualquer um que sofra com o preconceito, com o racismo e com a intolerância façam o mesmo: gritem para o mudo, reajam e jamais se calem.
“Independente da minha ancestralidade, da minha cor e da minha religião, eu sou um ser humano e mereço respeito”.