Aumento de temperatura afeta agricultura urbana na cidade de São Paulo, relatam produtoras

Na ex-terra da garoa, condições climáticas têm mudado ciclo de colheita das plantas e castigado espécies mais vulneráveis às mudanças bruscas de tempo

Por Letícia Naome

Bem no início da primavera, em um dia quente, já às 9 horas da manhã, onde a conurbação confundia a fronteira de duas cidades, uma horta urbana tinha plantas murchas e mortas – com folhas amareladas. Um solo seco demonstrava o que poderia ser até semanas de falta de chuva. Dois dias depois, no extremo oposto do município, o tempo ficou nublado, com ventos frios, mas, quando o sol fugia das nuvens, esquentava bem quem o sentia. Algumas das plantas locais também estavam sem vida. Falta de cuidado? Aparentemente não: no mesmo dia, a cena se repetiria no extremo norte da cidade. Em um lugar que não parecia mais urbano, pés de alface se encontravam queimados.

O clima da cidade de São Paulo tem dificultado agricultoras em suas plantações na região do Alto do Tietê – conhecida pela relevância do cultivo de hortaliças, aponta o estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Adaptação às mudanças climáticas pela agricultura familiar no Cinturão Verde de São Paulo. Antigamente, terra da garoa, a temperatura média local era menor, afirma o professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP) com quem conversei, Fabio Luiz Teixeira Goncalves. 

Hoje, as viradas bruscas de temperatura, tempo seco e um calor mais intenso, inclusive fora de época – por exemplo, dados da Estação Meteorológica do IAG mostram que, durante o inverno deste ano, entre a segunda metade de agosto e o fim da estação, foram registrados 17 dias com temperatura máxima acima de 30 °C –, têm prejudicado o tempo de colheita das plantas e sua qualidade. O impacto de tais mudanças pode ser sentido tanto em áreas mais urbanas quanto em regiões mais verdes.

Próxima à estação de trem Presidente Altino e ao Shopping Continental, quase em Osasco, está a Nossa Horta, uma agricultura com cultura de cenoura, beterraba, alface, alface roxa, rúcula, coentro, salsa, cebolinha, manjericão e algumas frutas como mamão e banana. 

O local é um terreno grande, que toma os dois lados da rua. Metade do espaço é concedido pela concessionária de energia elétrica Enel e a outra, pela estatal petrolífera Petrobras. Do lado direito, tanto na primeira metade da plantação, quanto na segunda, da concessionária, as plantas dividem espaço com as torres de energia elétrica. Do lado esquerdo, uma placa em cada entrada que descreve: PERIGO – Dutos enterrados de alta pressão.

A baiana Maria Dilva, 64, que está na região há 40 anos, explicou que os dutos estão a uma grande profundidade e não há perigo iminente. Somente em uma parte da plantação, segundo ela, alguns tipos de plantas que não tenham raízes muito profundas podem ser cultivadas, por conta desses dutos. 

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Chegando ao local, mais ou menos meia hora antes do combinado, eu encontrei a Nossa Horta, mas não sabia ao certo onde era a casa de Maria Dilva. Perguntei a um moço que saia de uma viela, onde o GPS apontava ser o endereço. Ele se apresentou como filho dela e me levou para a casa de Maria. Mas ela não estava por lá. Alguns minutos depois, eu liguei para ela e a vi trazendo umas despesas. A esperei e fomos conhecer a horta. Em todo momento, ela pareceu ser uma mulher simpática e sociável. Senti muito amor da parte dela com as plantas. Ao final da entrevista, ela me perguntou: “Quer algumas verduras?”. Eu aceitei, achando que receberia um pé de alface ou outra coisinha. Saí de lá com muitas hortaliças graças à bondade de Maria Dilva. Sem mentira nenhuma, a salada que fiz no almoço com as verduras foi umas das mais gostosas que já comi na vida.

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A agricultora conta que a iniciativa do terreno partiu dela. Em 2020, com a perda de sua mãe, ela encontrou no cultivo uma saída para se recuperar do momento triste.

— Isso aqui foi como se fosse uma terapia. Aí eu comecei a fazer a horta – eu com ajuda do meu irmão – e aí foi sobrando terreno e foi as pessoas foram chegando. Fui chamando as vizinhas, aí fizemos canteiro. Agora eu tô com 46 famílias no local. Cada um desses canteiros aqui é de uma família.

Maria explica que a produção pode ser destinada de três formas: venda, consumo próprio ou doação. A irrigação da plantação é por meio da água da chuva, quando o tempo favorece. E não era o caso dos últimos dias lá. 

O calor intenso já às 9 horas da manhã no local, o chão seco em alguns canteiros e plantas murchas ou mortas ao longo da propriedade reflete a falta de precipitação. A baiana, que de tanto tempo na cidade já adquiriu naturalidade paulistana, relata como o clima mudou ao longo dos anos que esteve por aqui. 

— O clima antes, quando eu cheguei aqui, era muito frio. A gente ficava 15 dias sem ver o sol, só aquela garoa e vento gelado. Hoje em dia não tem mais isso: é calor; quando faz frio, é muito pouco tempo, não fica uma semana de frio – é muito raro ficar – e o calor também aumentou.

As atuais condições climáticas, diz a agricultora, afetam muito as plantações. Havia dias que não chovia na plantação. Lá há um tanque de 5 mil litros de água, porém, é utilizado mais para a primeira parte da propriedade e, mesmo assim, não há como suprir por longos períodos se não cair chuva. Nesse caso, segundo Maria, a irrigação é feita com água da Sabesp – ou seja, as famílias acabam custeando. O problema aumenta à medida que têm indivíduos necessitados que dependem da plantação, fora a própria agricultora, que tem boa parte da alimentação composta pelas hortaliças e legumes que cultiva. 

— Por falta da chuva e o calor a gente perde aí mais ou menos uns 40% da produção. Quando chove é muita coisa. A gente não dá conta.

Produzida pela Embrapa Hortaliças, a publicação número 3 da Hortaliças em revista, Tempo – Influência das mudanças climáticas na produção de hortaliças, explica que esses tipos de plantas podem ter suas condições de plantio prejudicadas no futuro com o aumento da temperatura, caso não sejam desenvolvidos meios para cultivá-las nessas condições. Porém, mesmo com novas adaptações, outros fatores podem prejudicar a plantação, como alterações no regime hídrico local – chuvas mais ou menos intensas – ou eventos climáticos extremos, indica a revista.

— Quando chove muito estraga, quando não chove estraga também, lembra Maria Dilva.

Dois dias após a visita ao Parque Continental, o tempo da cidade de São Paulo “virou”, como dizem os paulistanos em referência às mudanças bruscas de temperatura. No extremo leste, São Mateus, em uma travessa da Avenida Mateo Bei – a principal da região, onde se concentram muitos comércios – um portão se encontrava aberto. Era a entrada da horta da Dona Sebastiana. 

Ao entrar no lugar, era possível observar algumas plantas também com aspecto de murchas e com as folhas amareladas, mas em menos intensidade do que na Nossa Horta. Apesar do vento frio, quanto o sol aparecia entre as nuvens, vinha com a potência de um dia calorento. Era como se dois tempos – frio e quente – estivessem acontecendo simultaneamente.

Vinda de Pernambuco há 50 anos para a capital paulista, Sebastiana Helena, 73, planta no local há 15 anos. 

Ela chegou para cultivar no terreno, que era um lixão até então, sem conhecimento em plantação de hortaliças – mas com experiência em semear feijão e milho. 

A propriedade era da Eletropaulo – mais para frente ficaria com a Enel – e foi cedida aos agricultores. O espaço das plantas também é dividido com as torres da distribuidora italiana.

Junto dela, outras famílias fazem o mesmo, em esquema semelhante ao de Maria Dilva. A produção local é toda voltada para a venda. 

Segundo Sebastiana, ao longo do tempo, a comunidade local foi conhecendo os produtos, gostando e passando de boca a boca. Agora, muitas pessoas das proximidades acabam comprando suas hortaliças ali.

— A coisa foi progredindo e a gente foi aumentando a venda e o pessoal foi gostando. O povo mesmo, sabe? O povo mesmo que foi gostando. Levava uma verdura. Com mais cinco anos que a gente tava no lugar, aí começou o pessoal colocando na internet. Aí as coisas já começaram a crescer mais.

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Quando adentrei à horta de Dona Sebastiana, lá estava ela a postos em sua vendinha, esperando o próximo cliente. Me apresentei, expliquei sobre a pauta, e ela já foi me perguntando: “Você precisa que eu assine algum direito de imagem?”. Sebastiana Helena era muito esperta em suas respostas. A linguagem simples trouxe detalhes ricos e importantíssimos sobre a horta e as mudanças climáticas. Ao longo de sua história, ela sempre esteve engajada, ao participar de reuniões na subprefeitura de São Mateus e se interessar por fazer agricultura no terreno. Além disso, já participou de um documentário e recebeu pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade de São Paulo em sua horta. Quando finalizamos a entrevista, ela me ofereceu amoras – lá tinha bem 5 pés ou mais. A fruta estava extremamente doce e saborosa. Acabei ficando com as minhas mãos manchadas de rosa.

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As chuvas irregulares também afetam a horta de Sebastiana, pois, mesmo com dois reservatórios, são “duas horas de água” para regar o local completamente, diz. Quando não dá para contar com São Pedro, é preciso recorrer à água da Sabesp.

A pernambucana contou que as modificações climáticas levaram verduras e hortaliças a chegarem em tempo de colheita antes da época, além de não estarem na “forma bonita” que se colhia antes.

— Tudo tá florindo antes do tempo. A rúcula tá desse tamanho, ela já vem com pendão – aí ela fica desconforme para vender. Chuchu desapareceu. Esse ano não saiu um chuchu aqui. Nunca faltou chuchu. Era de baciada. Era chuchu que não dava conta vender, de tanto que tinha, porque eram quatro hortas, cada um tinha um cesto grande para vender todo dia. Era uma fartura de chuchu. A banana regrediu também. Ela demora a chegar no tempo do corte para amadurecer porque aqui a gente não amadurece ela com um produto não, amadurece ela normal. 

No entanto, Sebastiana diz que não foi “pega de surpresa” e já estava preparada para essas mudanças. Ela contou que, alguns anos atrás, recebeu pesquisadores da Fundação Getulio Vargas, os quais fizeram uma palestra alertando que os agricultores locais “iriam passam por um momento difícil”. Os palestrantes começaram a fazer, nas palavras da agricultora, uma “percussão sobre o futuro”.

— Ele, palestrante, pegou uma lista do branco até o vermelho, dos graus que ia aumentar.  Eles fizeram uma pesquisa em Mogi das Cruzes, Suzano, via leste, via norte e via sul, aqui no centro da cidade, nas hortas. Tinha gente que falou que já tava sentindo a diferença. Até nós aqui também. Ficamos nessa expectativa. A gente está vivendo essa expectativa a cada dia. 

Apurei que a “palestra” se trata de três oficinas realizadas pela FGV na horta de Sebastiana para a construção de planos de ação para adaptação às mudanças climáticas no âmbito do projeto Cinturão+Verde, que citei no início desta reportagem. Os pesquisadores instruíram agricultores da Associação dos Agricultores da Zona Leste (AAZL) – da qual Sebastiana faz parte – em 2022.

Ao longo de décadas, de fato, a temperatura média na cidade de São Paulo tem aumentado. Dados coletados no Instituto de Astronomia e Geofísica da Universidade de São Paulo (IAG-USP) mostram um aumento de 1,87 °C na temperatura média entre 1933 e 2024. Goncalves, do mesmo instituto, explica que até os anos 2000 tal o acréscimo foi motivado principalmente pela expansão urbana. Após isso, as causas para o aumento da temperatura se devem às mudanças climáticas e ao aquecimento global, completa o especialista. 

Na terra do calor no frio – o que poderia ser um novo apelido para a capital paulista –, ainda há áreas verdes intactas. Esse é o caso de onde está a horta da Dita, atrás do pico do Jaraguá, zona norte. A região nem de longe lembra a selva de pedra São Paulo. 

No dia da visita ao local, o mesmo do relato de Sebastiana, mas na parte da tarde, ainda estava frio e nublado, mas o sol desistiu de dar as caras.

Nascida aqui mesmo no município, Benedita Gomes – cujo apelido é Dita –, 55, planta desde criança. A herança agrícola veio de seus pais, que também cultivavam. Para chegar à propriedade, é preciso seguir uma estrada de terra, onde há vários caminhões da empresa de serviços de encomendas Sedex, subir, descer, virar à direita e ir até um portãozinho de madeira. Parecia a entrada de um sítio no interior do estado. Tal ideia é ainda mais reforçada pela estrutura da casa de Benedita – que lembrava as de roça. Olhando em volta, só da para ver serras cobertas e vegetação. Dali, é possível avistar à frente as duas torres de energia que marcam o pico.

Segundo Benedita, a propriedade é arrendada e o fornecimento de água ocorre por meio de um poço – situação bem diferente das hortas de Maria e Sebastiana. Ao entrar no local, era possível ver alguns pés de alface com as folhas amareladas e caídas no chão. A plantação parecia menor em relação às duas primeiras hortas. Além da hortaliça, também são cultivados coentro e banana no local. O tempo seco havia levado à perda de produtividade, relatou Benedita.

— Estragou muito. Tanto é que eu comprei as mudas e queimou muito. Tem umas bandejas lá que eu nem plantei, porque ia queimar muito, diz. — Antes tinha o que, mais de 2 mil pés de alface. Estragou tudo, sabia? – acrescenta ela.

A situação, afirma a agricultora, não acontecia antes. É um cenário que reflete o momento presente, avalia Benedita. Ela precisou plantar tudo outra vez, o que prejudicou sua renda, que depende completamente do cultivo. Os produtos são totalmente vendidos por ela.

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Assim como as outras entrevistadas, eu localizei o contato de Benedita Gomes pela plataforma Sampa+Rural da Prefeitura de SP. Lá, constava que a Horta da Dita ficava localizada na praça da Sé, região central. Porém, ao entrar em contato, ela me passou outro endereço, bem longe dali. Procurei fotos da entrada do local na internet, e não encontrei – as outras duas hortas que visitei era possível verificar. Fui de carro até o local e, por sorte, encontrei Benedita na avenida, carregando em um carrinho de mão o alimento que daria aos porcos que cria. A seguimos. Quando chegamos lá, fomos recepcionados por vários cachorros. O irmão dela também estava por lá. Benedita foi mais “objetiva” em suas respostas – talvez pela timidez ou por estar desconfiada da situação, já que o nosso encontro era algo que possivelmente fugia de sua rotina. Nesse meio tempo, rolou uma foto com os cachorros. A conversa sobre os animais, ao final, quando já havia desligado a gravação, fez Benedita falar mais um pouco sobre a plantação. Parecia que aquela timidez – ou desconfiança – tinha sido superada. Agradeci e nos despedimos.

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Mudanças climáticas

Da esquerda para direita, Benedita Gomes, Maria Dilva e Sebastiana Helena

Na visão de Benedita, as mudanças climáticas têm levado à redução das chuvas. 

— Não é normal, diz ela.

Maria Dilva, acha “um absurdo” o cenário. — Além de estar afetando São Paulo essas queimadas, já estava quente, já estava com muita pouca chuva, e agora com esse tempo louco que não chove. A poluição, as queimadas, tudo afeta nós, o calor. Além de afetar a nossa saúde, afeta as plantas. 

— O aquecimento global e as mudanças climáticas, é do ser humano, vem do ser humano mesmo, porque tudo é prejudicado pela mão humana. Porque se as pessoas tivessem cuidado com o planeta Terra, com sua ‘Casa Maior’ que é a Terra, que é o planeta, não tava do jeito que tava, finaliza Sebastiana.