Los quileros

O jornalismo tem dessas. De ler Matilde Campilho, portuguesa de Lisboa e, com sua prosa, aprender que existem certos homens uruguaios que por alguns séculos têm sido chamados de quileiros. O nome sugere: eles levam quilos de produtos mais baratos do Brasil para vender no Uruguai, seguem na Rota 8, que liga as cidades uruguaias de Melo à Aceguá, eixo norte do país no estado de Cerro Largo, num vai e vem diário entre esses dois países. Antes a cavalos, depois de bicicletas, agora em motos ou em ônibus — e continuam a história assim. Coisas de fronteira. 

O jornalismo tem dessas de responder perguntas do tipo “por que diabos esses homens atravessam essa rota e que rota é essa e que história é essa?”. 

Então descobre-se que existe uma música do Sr. Osiris Rodriguez, um uruguaio do sul já morto, que cantou sobre estes homens e o “camino de los Quileiros”. Disso, surge um outro senhor, de nome José María Techera. Desde pequeno, via seu pai comprando aguardente com os quileiros que voltavam do Brasil, fazendo pedidos como se fosse um negócio de distribuidora. “Me vê para a semana que vem 15 litros de aguardente?”, era algo assim no El Satélite, bar que ficava no bairro de Sousa da cidadezinha uruguaia de oito mil habitantes, Aceguá. Dividida por apenas uma rua de sua gêmea, homônima, e vizinha brasileira. 

Descobre-se também que são apenas as pessoas da região sul do Uruguai a chamarem os quileiros de contrabandistas. Porque, para eles, de Cerro Largo, habitantes de regiões do norte próximas à fronteira brasileira, estes são apenas homens. Homens que trabalham. O Sr. Techera diz conhecer um, dois, três, dezenas de quileiros, é vizinho de alguns. 

Como Beto, este sim. Ele representa os quileiros que tiveram sua história contada em filme sobre a visita do Papa João Paulo II em Melo. 1988. Pois Beto tinha a coragem de quem trabalha como quileiro por uma vida inteira porque precisa. Atravessando a Serra de Aceguá com pilhas, ervas, uísques, joelho machucado e ainda pedalando. Às vezes, era pego por um tal milico Alvarez que nunca tirava o dia de folga e estava sempre na fronteira. Mas continuava, porque tinha filha e esposa, e com o que fazia a cada dia garantiam ao menos 200g de mortadela, três bolachas e um litro de leite. 

A travessia foi eternizada no chamado Camino de los Quileiros, de paisagem seca e fria, montanhas tímidas, recheada de acordos tácitos com a alfândega… Muitos, com motocicletas de 40 libras calibradas a 90 para aguentar o peso, passam com os faróis apagados para não serem vistos pela polícia de fronteira.

Há os pesquisadores que borbulham de surpresa dessa história inédita. Do trabalho dos quileiros, escrevem artigos sobre como o Mercosul não funciona numa escala micro. Porque as políticas macro, com seus tantos quantos acordos de comércio que permitem a travessia da fronteira apenas com o documento de identidade, não isentam estes homens de continuarem o seu Camino. 

A demanda pelo serviço não para com o mercosul: os quase oito mil uruguaios em Melo com botijões de gás brasileiros em suas casas precisam de gás brasileiro para alimentar a estrutura. Então eles vêm em suas motos, equilibrando-se com 16 botijões de gás, ou gasolina, ou batatas, ou tudo isso junto, nos 60km que separam as cidades de Aceguá no Brasil e Melo no Uruguai. Quem passa hoje nesse caminho, no quilômetro 402 da Ruta 8 na direção de Aceguá, vê um conjunto escultural feito de sucata. Ali está um homem e sua carga, ajeitados numa moto. 

Dessa história, descobre-se muito do que Gabo e Galeano falam, das mortes infindáveis do povo latino-americano. Tem a ver com isso essa luta diária de dar antes a vida para depois ser possível a vida. De histórias assim, tão antigas quanto a criação das fronteiras elas mesmas, chegarem a certos ouvidos portugueses. Depois a certas mãos que escrevem. Tem dessas e outras o ofício do jornalista, que faz existir textos assim, em revistas assim e coisa e tal.