Sioduhi Lima para além da estética

por Amanda Marangoni e José Vieira

Sioduhi Lima se inspirou nas Amõ Numiãs, as primeiras mulheres do Alto do Rio Negro, no Amazonas, para o lançamento de sua última coleção, em 2023. O projeto, intitulado Amõ Numiã: Ontem, Hoje e Amanhã, permitiu que o estilista de 28 anos mantivesse sua ancestralidade viva a partir da reverência às habilidades criativas e às tecnologias em cada uma das peças, seja o tucum, a trama ou a pigmentação natural.

Foi a primeira vez que Sioduhi, indígena do povo Piratapuya, lançou uma coleção protagonizada pela modelagem feminina. Para o projeto, ele precisou adotar uma postura crítica em relação ao próprio histórico de lançamentos. O estilista conta à Revista Babel que, em trabalhos passados, se inspirava em um aspecto agênero. Hoje, por outro lado, percebe que a modelagem masculina sempre se sobrepôs.

“É moda agênero, mas a pessoa tem que fazer uma camisa e uma calça. É moda agênero, mas a pessoa tem que fazer uma regata. Parece que o feminino é visto sempre como algo ameaçador do gênero”, reflete Sioduhi. “A coleção Amõ Numiã vem no sentido de celebrar todos os tipos de mulheres, independentemente se são cis ou trans. A mulheridade plena.”

Sioduhi nasceu na comunidade Mariuá, no médio rio Uaupés, também no Alto do Rio Negro. Os primeiros contatos do estilista com a arte remontam à infância. Seu pai, João Bosco, trabalhava com a produção de artefatos de uso cotidiano — cestas, tipiti, peneiras, remos e as próprias canoas. 

Porém, foi por meio de sua tia, Regina Soares, que o jovem passou a se aproximar da moda. Ao observá-la trabalhar com costura, o interesse pelo ramo cresceu e logo notou que a profissão estaria em seu futuro, mesmo que não soubesse como entraria para a indústria.

Antes de estrear no circuito da moda, Sioduhi se graduou em Administração, em Manaus. Para iniciar os estudos, o estilista aprendeu a falar português com fluência aos 17 anos. Até então, sua língua de uso era apenas o tukano, predominante entre os povos indígenas do Alto Rio Negro. Quando se mudou para São Paulo, em 2019, o estilista passou por sessões com uma fonoaudióloga para desenvolver melhor a comunicação na Língua Portuguesa.

“Tecnicamente falando, minha língua é mais anasalada e horizontal, já o português é muito mais pra frente, então é algo muito mais diferente. Fora que há outras formas de ver o mundo por meio da língua, assim como a forma de vivenciar a vida por meio da minha língua. O humor é diferente, a comunicação corporal é diferente”, explica. 

No mesmo ano, o jovem se matriculou no curso Modelagem do Vestuário na Etec Tiquatira, Escola Técnica Estadual localizada na zona leste de São Paulo. Após dois semestres, porém, o curso foi interrompido pela Covid-19. O isolamento social gerou a necessidade de se tornar polivalente, a partir de um aprendizado autodidata. Na mesma época, surgiu a coragem de se tornar um empreendedor: em 2020, a marca Sioduhi Studios deu seus primeiros passos.

Inicialmente, o estilista desenvolvia em pequena escala. As confecções não aceitavam fabricar suas peças, devido à preferência por grandes pedidos. Assim, Sioduhi comprou uma máquina de costura e, com a ajuda de vídeos na internet, aprendeu a manuseá-la. Além da produção, o artista imergiu na gestão das redes sociais, fotografia e design gráfico da marca.

“Parece que o feminino é visto sempre como algo ameaçador do gênero.”

Sioduhi Lima

“Eu sou uma pessoa muito curiosa, naturalmente. Isso acabou me ajudando muito na minha vontade de querer trabalhar com moda, na minha vontade de querer empreender e criar algo como o que eu acabei criando”, declara.

O jovem enfrentou alguns obstáculos no caminho para alcançar um ponto de visibilidade para seu ateliê. A princípio, o estilista pediu demissão e utilizou R$ 3 mil — provenientes de sua rescisão — para fundar a marca. Contudo, ao estabelecer contato com um fabricante preocupado com a rápida produção e o baixo custo de venda, todo o valor investido na primeira fase foi praticamente jogado fora. A pressa e a ausência de preocupação com detalhes e acabamentos não concordavam com o propósito de Sioduhi na moda autoral.

Longe de casa, diante de longos trajetos em um transporte público quase sempre lotado, Sioduhi se alinhou com a correria típica da capital paulista e lutou para sobreviver. Em uma cidade que pode soar fria àqueles que a visitam, o jovem se reencontrou e construiu uma importante rede de apoio. 

Inspirada em uma cerimônia milenar que ocorre no Alto Rio Negro, na qual acontecem trocas de saberes e conhecimentos, a primeira coleção do estúdio foi nomeada Dabucurí. Lançada em novembro de 2020, as peças apresentavam cores que remetiam à peixes, frutos, alimentos e fibras do rio Negro.

“Tive que usar as ferramentas que eu tinha nas minhas mãos, como as fichas técnicas, de costura, de corte. Os pais do meu amigo tinham uma confecção e me ajudaram a entender um pouco nesse sentido”, relata. “Fui buscando ajuda para que eu pudesse entender melhor como funciona esse mundo da confecção. A partir disso comecei a melhorar.”

Sioduhi acredita que, cada vez mais, suas raízes indígenas se aproximam de sua criação. Com a fundação de sua marca em São Paulo, o estilista partia de uma retórica um pouco distante. Então, em 2022, volta para o Amazonas e se estabelece em Altamira — o que descreve como uma missão interna.

No mesmo ano, o estilista pôde aprimorar o projeto Maniocolor, um corante têxtil à base de casca de mandioca da Amazônia. O estudo do tingimento natural nasceu em 2021, com a coleção Pamɨri 23. À época, Sioduhi utilizou aroeira para a pigmentação de uma jaqueta. Porém, descobriu que a planta estava em processo de extinção como consequência de sua exploração para uso em chás e tinturas.

Posteriormente, em uma viagem para Cusco, no Peru, o jovem notou a possibilidade de utilizar a mandioca como matéria prima. De volta ao Brasil, o projeto passou no edital do programa Inova Amazônia, do SEBRAE Nacional, e ganhou novos investimentos para sua ampliação. A técnica permitiu que Sioduhi ganhasse o prêmio ECOAR e fosse reconhecido como personalidade Fashion Future, pelo Instituto C&A.

O retorno para o Norte em 2022 também conversa com a tentativa de exponenciar nomes da região. Suas vivências se entrelaçam com seu processo criativo e, a cada coleção, ele traz o artesanato como um fator mais refinado à passarela, sem perder a linguagem minimalista. 

Mais do que a cultura indígena, é tempo de descentralizar a produção Rio-São Paulo e abraçar os talentos amazônidas, que envolvem pessoas ribeirinhas, extrativistas e quilombolas. O estilista aproveita para trazer denúncias sobre a emergência climática e social que a região enfrenta.

“Sou uma pessoa muito curiosa, naturalmente. Isso acabou me ajudando muito na minha vontade de querer trabalhar com moda, na minha vontade de querer empreender e criar algo como o que eu acabei criando.”

Sioduhi Lima

Em fotos para a coleção Amõ Numiã, por exemplo, a modelo usa um capacete que simboliza a sabedoria, junto a um cropped em forma de pulmão; outra modelo usa uma máscara de oxigênio. Numa espécie de ilustração do absurdo, a sobreposição das fotos se equilibra entre o esmero e a destruição. De um lado, um tributo aos conhecimentos ancestrais que contribuem para a sobrevivência da Amazônia. Do outro, uma referência aos dias que Manaus passou sem oxigênio durante a pandemia. 

“A cidade inteira ficou cheia de fumaça, fuligem, e todos os rios secaram praticamente”, relembra. “A Amazônia é muito assediada. As pessoas que vivem aqui e mantêm a floresta de pé estão passando por dificuldades diariamente. E ninguém se responsabiliza por essas coisas. As instituições precisam se atentar para que esse descaso não avance, em um momento em que estamos falando tanto de emergências climáticas.”

Atualmente, o estilista reside em Manaus, depois de um período em Rio Branco, no Acre. Ele também é um dos alunos do curso de MBA em Negócios e Estética da Moda da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). 

Apesar de não ter uma coleção prevista para 2024, Sioduhi tem ganhado espaço no circuito internacional. Em abril, ele participou e desfilou no evento Sentir a Amazônia, em Lisboa — caracterizado como um dos momentos mais marcantes de sua carreira. 

Se, em 2018, “orava” para se tornar trainee da Renner, agora, Sioduhi carrega a missão de não apenas trazer visibilidade para os povos amazônidas, mas criar caminhos sustentáveis para que a vida de seus colaboradores possa ser impactada positivamente. 

“Hoje em dia eu vejo, com a minha marca, pessoas que trabalham comigo em uma equipe, como isso acaba impactando a vida dos parentes indígenas. Me faz pensar que eu estou numa missão muito maior do que apenas trabalhar por trabalhar”, conta.

Assim como sua homenagem às Amõ Numiãs e a sabedoria que deixaram para a descendência, Sioduhi reflete sobre suas conquistas no mundo da moda e os impactos em sua comunidade: “sinto e digo para mim que estou criando algo imaterial, que eu posso partir e que outras pessoas venham e continuem esse trabalho que a gente está fazendo hoje.”