Identidade em diferentes ritmos

Em 2014, em meio a um processo de reintegração de posse da aldeia de Jaraguá, menor terra indígena do Brasil, o rap emergiu para a comunidade como uma maneira de denunciar e chamar atenção para os riscos do fim do aldeamento localizado na zona norte de São Paulo.

A iniciativa de fundar o grupo Oz Guarani foi de Jefersom, 24 anos, de nome indígena Xondaro. “Por ser conhecida como a menor aldeia, as lideranças não tinham espaço para falar sobre a luta dos povos originários. Então, percebemos que por meio da música e da arte, poderíamos mostrar a nossa realidade e cultura”, conta Jefersom. 

Com a ajuda da Comissão Guarani Yrupa, o grupo conseguiu gravar um videoclipe da música Contra a PEC 215, canção em português com trechos em guarani, que denuncia a questão do território e que tem estrofes que conversam diretamente com o povo indígena sobre rezas e fortalecimento espiritual. Com o produto audiovisual, a letra chegou à mídia e a órgãos públicos.  

“O rap para a gente é a revolução através das palavras. Então, a nossa música vai falar sobre a demarcação de terra, as dificuldades, a falta de saneamento básico, a falta de atendimento de saúde e a fome”, aponta Jefersom. “Ao mesmo tempo, trazemos a força e a resistência ao cantar em guarani com o nosso povo”, complementa.

Com a divulgação na mídia do primeiro videoclipe do grupo, o Oz Guarani foi ganhando fama. As músicas já são ouvidas em outros países, como Paraguai, Chile e Bolívia. Mais importante que isso, para Jefersom, são os parceiros que a aldeia ganhou. Ao lado da luta indígena, eles apoiam a demarcação de terras no Jaraguá e oferecem oficinas para crianças e jovens da região.

Jefersom conta que o grupo chegou a atrair, inclusive, produtores. Porém, as propostas não condizem com os objetivos do grupo. “Não aceitamos porque se cantarmos alguma realidade muito forte sobre o nosso povo, eles pediriam para mudar a letra. Os problemas, a mídia não quer mostrar”.

Para além de impactar a própria terra indígena, Oz Guarani teve a oportunidade de cantar para mais de 20 mil pessoas de diferentes povos durante um evento do Congresso Nacional, em Brasília. Para o cantor, esse foi o momento mais marcante do grupo. 

Fusão de culturas

Já para o DJ e músico Nelson D., 38 anos, cantar em frente a lideranças indígenas em um evento que ocorreu no nordeste, em São Luís (MA), foi o momento mais marcante da carreira. “Quando os pajés foram até mim e falaram que se sentiram representados, foi muito forte”, lembra. 

Nelson nasceu em Manaus, mas foi adotado por pais italianos, por isso passou boa parte da vida na Europa, sabendo que era indígena. Lá fora, se apaixonou pela música eletrônica e começou a fazer batidas autorais. 

De volta ao Brasil, já adulto, ele focou no processo de retomada e reconexão com a cultura indígena e continuou desenvolvendo a carreira musical. Nelson chegou a fazer mixagens e composições que remetiam à cultura dos povos originários, mas entendeu que era uma arte vulnerável e que deveria ser produzida e reproduzida com cuidado. Foi aqui que ele teve certeza que o estilo de música que mais curtia produzir era a eletrônica. 

“É só o indígena sair da aldeia, que isso já se torna motivo para a sociedade tirar a sua identidade.”

Nelson D, cantor

“Do ponto de vista comunicativo é mais eficiente misturar gêneros que já estão funcionando. Não porque a gente quer fazer dinheiro, mas para nós, indígenas, termos uma relevância na música brasileira. Porque nós estamos fazendo história, mas ninguém escreve sobre isso”, pontua. 

Apesar de isso contribuir com o crescimento desses artistas, há muitos preconceitos quando indígenas se apropriam de ritmos que não são tradicionais dos povos originários. “É só o indígena sair da aldeia, que isso já se torna motivo para a sociedade tirar a sua identidade”. 

Hoje, Nelson traz a cultura dos povos em seus trabalhos por meio de parcerias com músicos indígenas que viveram na aldeia e conhecem de perto a cultura. Os beats eletrônicos feitos para o primeiro álbum solo de Juão Nyn, 34 anos, gravado em tupi, são um desses exemplos.  

Juão é um artista do grupo indígena potiguara, nascido no Rio Grande do Norte, que começou a se conectar com a música por meio de canções infantis. Ele já participou de duas bandas, que se inspiraram em ritmos como rock, blues e pop.

Nos grupos, mesmo sendo o único indígena, trouxe trechos em tupi e temáticas relacionadas aos povos originários, como a preocupação ambiental. Neste ano, ele inicia a carreira solo e, com isso, pretende fazer o “mundo não indígena entender o que é uma pessoa indígena”. 

Além de cantar, Juão já trabalhou com outros tipos de arte e com educação. Hoje, ele trabalha também como curador do Coletivo Estopô Balaio, em São Paulo, no qual ajuda a promover apresentações culturais. “Eu produzo um show de artista indígena por mês na casa Balaio. Se no brasil tem 300 etnias, imagine a variedade cultural e musical na América do Sul”, provoca.

Saindo de terras brasileiras, subindo pelo Amazonas e Acre, temos um exemplo dessa variedade. Lenin Tamayo, 24, ainda criança, ajudava a compor canções, gravar videoclipes e pensar no figurino de apresentações da mãe Yolanda Pinares, cantora de música popular andina, nascida em Cusco, no Peru. 

“Viajando pelo país nas turnês de minha mãe, conheci muito de nossa diversidade cultural e aprendi o que significa ser quéchua. O ser quéchua não é só falar em quéchua, não é só pensar, é ser”, conta Lenin que faz parte dos povos indígenas quéchuas, que se distribuem pela região da Cordilheira dos Andes.

Com a música presente em sua vida desde quando estava no ventre da mãe, Lenin não poderia seguir outra carreira, a não ser a musical. Mas apostou em um ritmo um tanto quanto diferente do de Yolanda — o K-pop, ou melhor, Q’pop.  

“Talvez nem ela nem eu tenhamos percebido, mas o que eu buscava era fortalecer a música andina e torná-la muito mais poderosa.”

Lenin Tamayo, cantor

“O K-pop significou uma tábua de salvação, que esteve presente nos momentos mais complicados para mim”, lembra. Quando estudou em um colégio da capital, ele sofreu bullying devido aos seus costumes tradicionais e a um sotaque no espanhol que não era considerado adequado na cidade. 

No fundo da sala, com o grupo de garotas, Lenin conheceu o estilo musical. Logo ficou fascinado com o fato de que pessoas do outro lado do mundo cantassem o seu próprio idioma, o coreano, e fossem escutadas internacionalmente. “Comecei a envolver o trabalho da minha mãe com um pouco de influência do K-pop. Talvez nem ela nem eu tenhamos percebido, mas o que eu buscava era fortalecer a música andina e torná-la muito mais poderosa”. 

Em 2020, ele lançou o primeiro single. Com música inspirada no gênero coreano e letra que mesclava espanhol e quéchua. Na parte cantada em sua língua, Lenin ainda se inspira em cantos típicos de festividades incas. 

Em outubro de 2024, Lenin vai se apresentar na Coreia do Sul. Para ele, é como se um ciclo estivesse se fechando. Mas não foi tão simples chegar ao outro lado do mundo. Quando fez a fusão das culturas se deparou com muitas portas fechadas e preconceitos fora e dentro do seu próprio povo. “Mas também encontrei um valioso grupo de pessoas que ao ouvir a minha história e o que quero passar como mensagem, tornaram-se seguidores fiéis, o que para mim representa a minha família, a família que sempre quis ter”.