As panelas estão vazias. Há roupas espalhadas pelo chão, bebês desamparados e crianças vagando sozinhas, mas não só: ninguém cuida dos doentes, nem dos idosos. Se tudo isso parece um pouco surreal, o cenário fica ainda pior ‒ basta as mulheres deixarem de fazer o que lhes é imposto todos os dias para o desastre acontecer.
Segundo relatório do Comitê de Oxford para o Alívio da Fome (Oxfam), 90% do trabalho de cuidado no Brasil é feito informalmente por famílias e, desses, quase 85% é responsabilidade de mulheres. Essa realidade é compartilhada, com mais ou menos desafios, por outros tantos países e caracteriza a atual situação da economia do cuidado ‒ o conjunto de atividades e serviços que visem o bem-estar físico, psicológico e educacional de terceiros.
De fato, a Organização Internacional do Trabalho descobriu que as mulheres realizam 76% do cuidado não remunerado no mundo, dedicando 3,2 vezes mais tempo a essas tarefas do que os homens. Na América Latina, não é diferente. Elas trabalham até 29,5 horas a mais que os homens por semana.
A velha história lavar-passar-cozinhar ser responsabilidade feminina ainda prevalece. E, enquanto o trabalho do cuidado promove uma sociedade produtiva, essas mulheres não recebem nenhuma compensação financeira por esses afazeres. “O sistema capitalista é sustentado pelo tempo das mulheres como um recurso implícito para a reprodução da força de trabalho, do capital e da sociedade”, não deixa negar a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).
“O sistema capitalista é sustentado pelo tempo das mulheres.”
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL)
Essa remuneração, caso existisse, corresponderia entre 10% a 39% do PIB de qualquer país ‒ é o que aponta a ONU Mulheres. O problema é que, na falta da remuneração, as mulheres perdem a independência para os seus pares, ou, caso ocupem mais de uma função, tornam-se mais vulneráveis a doenças físicas e psicológicas.
Nada disso é por acaso. As mentes masculinas mais “brilhantes” desenvolveram teorias para explicar a inferioridade das mulheres e, assim, justificar sua submissão e falta de oportunidades. Entram na conta a colonização e o cristianismo, fundamentais para o fortalecimento desse imaginário, a partir de figuras como a “mulher guerreira”, sempre explorada, ou a faz-tudo pela manutenção de seu casamento. Não suficiente, os problemas causados pela própria dinâmica perpetuam essa lógica. Caso da diferença salarial entre os gêneros, que acaba por sustentar o argumento de que se eles recebem mais, é justo que façam menos dentro de casa.
É nesse ponto que olhar para os países que avançam na pauta é importante. Entre eles, o maior destaque da América Latina é o Uruguai. Ainda em 2015, o país adotou o Sistema Nacional Integrado de Cuidados (SNIC) para gerar uma nova matriz da proteção social uruguaia. O resultado é um programa com serviços de cuidados a crianças, idosos e doentes, além de direitos trabalhistas aos cuidadores.
“O Estado de bem-estar social é formado por três eixos fundamentais: saúde, educação e previdência. Para o SNIC, as políticas do cuidado são o quarto pilar”, resume Delia Dutra, doutora em Ciências Sociais pela UdelaR. Esse olhar prioritário garantiu maior qualidade de vida, geração de emprego e participação feminina no mercado.
No entanto, o SNIC não considerou o envelhecimento populacional, resolveu a economia do cuidado por completo ou divulgou dados para comprovar seus resultados. Atualmente, enfrenta seu maior desafio: a diminuição do investimento em cuidado, depois da chegada ao poder do conservador Luis Lacalle Pou. “Existe uma visão individualista e o não reconhecimento do cuidado como direito”, explica Pedro Russi, doutor em ciências sociais na UdelaR.
Os problemas são muitos, especialmente com o desmonte do SNIC, mas o olhar atento ao que foi feito por lá ensina a lição de encarar o cuidado como parte fundamental da sociedade. Isso também quer dizer debater equidade de gênero, oferecer todos os direitos aos trabalhadores, criar escolas e centros de idosos e expandir o sistema de saúde, com atenção para não repetir erros. Como diz a especialista: “É preciso reconhecer o cuidado como um trabalho. O sistema de políticas que o contemple deveria ser inevitável, não uma possibilidade”.