Apesar da abundância de grandes reservatórios hídricos da América Latina, políticas públicas são necessárias para que a água chegue à boca de todos. O problema inunda todas as esferas: da luta de mulheres rurais e indígenas por sistema de abastecimento até centros com água sem tratamento.
Luz Haro Guanga, Equador
“Quando menina, parte das minhas tarefas na infância era carregar água em barris, nos braços, por quase um quilômetro em uma encosta inclinada para cima. Tinha que levá-la do rio onde descíamos para lavar roupa, tomar banho e carregá-la até a casa, para nos abastecer e alimentar”, conta Luz Haro Guanga, de 75 anos, equatoriana nascida na parroquia rural Matus, comunidade de Aulabug, na província de Chimborazo. A comunidade fica a 25 quilômetros de distância da capital da província, Riobamba. Hoje, Luz vive na zona rural de Fátima, província de Pastaza, no coração da Amazônia equatoriana.
A conversa com Luz aconteceu em um sábado e só foi agendada um dia antes. O Equador passa por uma crise de energia elétrica, que tem como princípio uma grave seca em consequência do El Niño e impacta a produção das usinas hidrelétricas do país. O país sofre racionamento e, por isso, a população descobre apenas dias antes quais serão os horários em que haverá energia.
“Na infância, nunca soube o que era uma escova de dente, um sabonete. Tomávamos banho com sementes. Quando conversei com pessoas pela América Latina, me disseram: ‘continuamos a usar isso’.”
Luz Haro Guanga
A história de Luz se assemelha com as de tantas outras que vieram antes e depois dela. Em áreas rurais da América Latina, a falta de acesso à água é uma realidade que carece de atenção. Luz é secretária executiva da Red Latinoamericana y del Caribe de Mujeres Rurales (Red LAC) e luta pelos direitos das comunidades rurais. Um deles é pela água, reconhecido em 2010 pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um direito humano, assim como o direito ao saneamento.
Para Luz e sua família, preocupar-se com a água sempre foi uma questão. Durante a infância, seus pais fizeram um buraco na terra para retirar água de uma forma mais fácil. Porém, ao chegar o calor do verão, este buraco secava e assim retornava a rotina de caminhar até um rio próximo para carregar água em barris, dessa vez com o sol escaldante no céu.
A atual secretária-executiva da Red LAC tem formação apenas nos anos iniciais da escola primária. Sua função principal ao crescer era trabalhar nas tarefas de casa, carregar lenha, barris de água morro acima e atender as necessidades de seus outros oito irmãos. A luta pela água era, portanto, feminina, por um bem que seria utilizado em atividades com fins domésticos. Elas que levavam as roupas para serem lavadas na beira do rio e carregavam os barris que abasteceriam a casa e ajudariam a preparar as refeições.
Depois de alguns anos, chega água encanada na comunidade de Aulabug, , a partir da mão de obra dos homens e seus filhos que também cresciam ali. Era, para eles, considerado um grande milagre: o acesso à água perto de suas casas.
Angelina Barrientos, Paraguai
O milagre da água é o que outros povos situados em diferentes partes da América Latina pedem para si próprios.
Comunidades buscando formas de acessar esse recurso natural inexistente ou arduamente encontrado em sua região não são situações comuns apenas no Equador. Em comunidades indígenas, o não acesso à água é recorrente.
A região conhecida como Occidental Chaco Paraguayo, no Distrito de Mariscal Estigarribia, em Boquerón, concentra a maior parte de povos indígenas do Paraguai. “Ainda existem comunidades indígenas que consomem água salinizada e não potável e sabemos que a água tem a ver com a saúde. A água potável é um direito humano e uma necessidade grande na nossa América Latina que não foi atendida até agora. É um problema que ocorre todos os anos e nunca acaba”, conta Angelina Barrientos, integrante da Organización de Mujeres Indígenas Guaraní (OMIG).
A solução é a construção de poços artesianos ou cisternas, porém esses sistemas não são tão simples de serem implementados como pode parecer. Devido às características do território, algumas regiões não são aptas para perfuração de poços, pela ausência de água fresca subterrânea. Enquanto isso, algumas regiões do país não contam com alta taxa de precipitação, o que dificulta o uso de um sistema de cisterna, ou seja, filtrar a água a partir da coleta da chuva.
Com a ajuda de instituições não-governamentais, foi possível construir alternativas para obter água em comunidades Guarani que vivem em Chaco: uma cisterna familiar na comunidade de Macharety e um poço na comunidade de Santa Teresita, onde há água fresca subterrânea. Ainda que o acesso à água potável pela captação da chuva seja mais fácil na região, ele ocorre com dificuldades visto que a chuva em Charco não ocorre com frequência.
Essas duas comunidades conseguiram formas alternativas para ter acesso à água, o que não acontece em outras partes. Em épocas de seca, moradias ficam sem água por horas prolongadas, enquanto outras casas têm água encanada, mas sem tratamento, o que provoca enfermidades diversas para a saúde de quem a utiliza.
A água pelo olhar político
Para Esteban Castro, o tema do acesso à água é uma história de múltiplos fracassos ocorridos ao longo do último século. Doutor em Ciência Política pela Universidade de Oxford com enfoque em Ecologia Política, aponta a década entre os anos 80 e 90, que ficou conhecida como a Década Internacional da Água Potável e do Saneamento. No dia 10 de novembro de 1980, a ONU instituiu esta campanha para que o abastecimento melhorasse em todo o mundo até 1990, além de defender o uso mais responsável desse recurso, sem desperdícios. “A meta era levar 40 litros de água para cada ser humano do planeta. Chegamos em 1990 e verificou-se que uma porcentagem muito elevada da população mundial não tinha água. Esse foi o primeiro fracasso.”
Segundo Castro, que também é professor de Sociologia na Newcastle University e afiliado ao Centro de Estudos da América Latina e o Caribe (CLACS), esta não é uma questão de falta de tecnologia, mas de melhores políticas públicas e da democratização do acesso às populações. “A tecnologia de água potável e de qualidade é um serviço básico que existe desde o século XIX. Não é um problema de investimento em tecnologia, mas um problema político, porque quando os investimentos são feitos, não são para ajudar as pessoas que precisam.”
Na América Latina, o problema não perpassa a falta de água doce, pelo contrário. É uma região com variedade de climas, inclusive localidades áridas e semiáridas, ainda assim, representa um dos principais reservatórios de água doce do planeta. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o Brasil ocupa o primeiro lugar de fonte renovável de água doce. O Sistema Aquífero Grande Amazônia (SAGA) é o maior do mundo, com mais de 162 mil quilômetros cúbicos de água. O Aquífero Guarani é considerado o segundo maior, com cerca de 39 mil quilômetros cúbicos. Este último é compartilhado pelo Brasil com o Paraguai, Argentina e Uruguai. E Colômbia, Peru e Venezuela também aparecem no ranking mundial dos dez países com maior reserva hídrica.
“Será que ter uma casa é ter um abrigo onde se pode descansar bem? Água é o principal, não se pode viver sem. Se não há água, não há descanso.”
Angelina Barrientos
Apesar da abundância, ainda há escassez. Buenos Aires já foi referência em cobertura de água, por volta da década de 1930. Hoje, não é mais a mesma. “Ela é uma das mais ricas cidades da América Latina, a Argentina tem o Rio da Prata, mas quem está nas favelas da cidade não tem água, é isso que estamos vendo”, comenta o professor. A situação de falta de acesso à água é comum a determinados povos e indivíduos. “O problema está aí e, obviamente, o problema mais sério geralmente está nas comunidades afro-americanas, indígenas ou muito pobres. Esse é um padrão geral em toda a nossa esfera, seja ela urbana ou não.”
O termo racismo ambiental é empregado, nesta situação, para desigualdades sociais e ambientais que povos minorizados e vulneráveis sofrem diariamente. O não acesso à água é um problema ambiental, e na América Latina é possível ver essa realidade. O emprego do termo deve ser cauteloso, entretanto. “É utilizado amplamente, mas não é sempre que reflete com precisão o problema”, diz o doutor em sociologia. Por isso, Castro fala de desigualdades e injustiças interseccionais, de raça, etnia, gênero e classe. A faixa etária da população também pode ser um agravante, com crianças e idosos sendo as parcelas de indivíduos mais expostos aos impactos.
Segundo o professor, o Haiti e a República Dominicana estão entre os países com as piores realidades, tratando-se de água, na América Latina. A maioria das pessoas que vivem nesses lugares dependem de água engarrafada: “Não são os que mais consomem, como o Brasil ou México, mas é onde a população mais depende de água engarrafada. Você tem dois casos bem diferentes, um é muito pobre, o outro é mais rico e ainda assim o problema é muito grave nos dois.”, analisa o professor.
Ao tratar da luta ambiental pelo acesso, uma necessidade é evidente: atenção e cuidado para as realidades vivenciadas pelos povos latino-americanos. Como menciona Castro, o apoio deve ser político, uma vez que é dever dos Estados levar água à sua população e mudar histórias como a de Luz, no Equador, e a trajetória de lutas indígenas, como acontece com Angelina, no Paraguai.