Maracanã. Palco de duas finais de Copas do Mundo e de centenas de jogos históricos. Na noite de 10 de abril de 2024, o templo do futebol recebeu o maior público de sua história: mais de 5 milhões de palestinos e palestinas estavam presentes nas arquibancadas do setor visitante do estádio, representados por algumas poucas centenas de torcedores do Club Deportivo Palestino, do Chile.
Fundado em 1920, o Club Deportivo Palestino está disputando, pela sétima vez, a principal competição do continente sul-americano. Mas, para além do mérito esportivo de alcançar o torneio pela quarta vez nos últimos dez anos, o mais importante para os envolvidos com o time é ter a oportunidade de levar a bandeira da Palestina continente afora.
“Ver a bandeira palestina tremular no Maracanã, em Buenos Aires, em La Paz, na Bolívia, em Bogotá, na Colômbia é uma demonstração que o povo palestino existe”, comentou Vicente Misle, torcedor e presidente do diretório juvenil do Palestino.
Vicente tem 27 anos e é torcedor do clube desde que nasceu. Sua família é de origem palestina e seu pai é torcedor fanático e ex-dirigente do Palestino. Sua história se assemelha a muitas outras ouvidas pela reportagem da Babel nas arquibancadas do Maracanã. Cada uma possui sua particularidade, mas a grande maioria da torcida é formada por chilenos descendentes de palestinos.
Origem
Essa torcida só existe hoje porque, há mais de 100 anos, um grupo de imigrantes palestinos decidiu fundar um clube que mantivesse viva, do outro lado do mundo, sua cultura e tradições.
“A primeira imigração foi no final do século XIX, começo do XX, escapando dos Otomanos. Eles chegavam de barco, saindo principalmente dos portos de Nápoles ou Marselha. Desembarcavam em Buenos Aires e vinham de mula até o Chile”, contou Gazan Qahhat Khamis, diretor da Comunidade Palestina do Chile, entidade que reúne 24 instituições palestinas ao redor do país.
O clima parecido com o do país árabe também foi um fator que fez com que muitos escolhessem o país sul-americano como nova casa. Foram esses migrantes que criaram, em 1920, o Palestino, que funcionava muito mais como um clube social à época. Com uma comunidade de imigrantes estabelecida, o fluxo migratório se consolidou e o país recebia, cada vez mais, palestinos que buscavam um lugar onde poderiam manter os mesmos costumes.
Hoje, o Chile possui a maior comunidade palestina do planeta fora do mundo árabe, com cerca de 500 mil pessoas. Segundo Gazan, o país alcançou esse número expressivo porque virou refúgio para os que foram expulsos de suas terras na Nakba Palestina (Desastre, em árabe). Esse é o nome dado à destruição de cerca de 400 vilas e ao êxodo de aproximadamente 800 mil palestinos em 1948 durante a Primeira Guerra árabe-israelense, que eclodiu logo após o surgimento do Estado de Israel.
O triste capítulo, no entanto, virou incentivo para que o Palestino deixasse de ser um clube social e se profissionalizasse no futebol. “Como resultado da Nakba, os palestinos no Chile, em uma situação muito melhor, resolveram virar profissionais para que pudessem falar da Palestina por todo o país”, explicou José Nabzo, chefe de imprensa do clube.
Raízes
Você já pode ter ouvido antes a história de clubes formados por comunidades de estrangeiros. No Brasil, temos exemplos como o Palmeiras e o Cruzeiro, fundados por imigrantes italianos, e a Portuguesa e o Vasco da Gama, formados por portugueses. Mas o Palestino viria a construir algo único: uma relação tão forte com seu país de origem que deixa indissociável o que é futebol e o que é identificação com suas próprias origens.
“A relação entre Palestino e Palestina é muito estreita, porque acontece algo muito pesado com os palestinos que estão do outro lado do mundo. Aqui, no Chile, nós não esquecemos: muitos de nós já estiveram nos lugares onde hoje estão matando pessoas. Existe uma grande diferença com o Unión Espanhola e o Audax Italiano, por exemplo”, argumentou Nabzo, citando dois times chilenos fundados por colônias de imigrantes.
Hoje, o Chile possui a maior comunidade palestina do planeta fora do mundo árabe, com cerca de 500 mil pessoas.
Essa ligação pode ser facilmente vista no campo ou nas arquibancadas . O uniforme, além das tradicionais quatro cores da bandeira da Palestina – branco, verde, vermelho e preto – traz frequentemente o desenho encontrado no Keffiyeh, uma espécie de lenço axadrezado que virou símbolo da luta palestina. Além disso, a camisa carrega na manga o mapa da Palestina antes da criação de Israel e na barriga o patrocínio do Bank of Palestine, principal banco do país.
A maior parte dos funcionários, assim como José Nabzo, são descendentes e “sentem muito o clube”. “Alguns obviamente mais do que outros, mas todos os atletas e funcionários entendem o que significa e representa o clube, e são defensores da luta palestina”, afirmou o assessor.
Além do Maracanã, a reportagem da Babel esteve presente no estádio do Palestino, no bairro de La Cisterna, em Santiago, e lá foi presenteada com uma pequena bandeira do país para torcer para o time.
“É nossa identidade, os elementos que você vê em nossa camisa, são a nossa cultura, nossas raízes e a forma que o mundo nos conhece”, disse Patrício Majluf, descendente de palestinos e torcedor do clube.
“Palestino é como uma segunda seleção nacional e por isso a bandeira da Palestina é um símbolo para nós. É uma forma de apoiar e demonstrar que pensamos sempre em nossos irmãos”, opinou Andres Manzur, outro torcedor que encontramos no Maracanã.
Apesar de ter apenas 19 anos, o jovem sente que ser fanático pelo Palestino é uma forma de estar em constante conexão com suas raízes, trazidas ao Chile por seus bisavós, que fugiram dos primeiros conflitos com Israel.
Já na família de Tarek Dababneh, ex-assessor do Palestino, foram seus avós os primeiros a migrar para a América do Sul, em 1939, escapando da Segunda Guerra Mundial. Seu pai foi fisiologista do time e um dos tios, jogador e dirigente. “Sou feliz de ser chileno e ter as raízes árabes à flor da pele”, celebrou.
“Quando as partidas acontecem, são 3h ou 4h da manhã na Palestina e as pessoas acordam para assisti-las, porque sentem que é um time que os representa, que não se cala por eles e que, de alguma forma, será um jogo da Palestina”, contou Tarek.
No Maracanã, ao lado de Patricio Majluf, a Babel conversou com dois amigos do torcedor que vieram do Chile apenas para acompanhar o jogo: Fuad Chahín Valenzuela, advogado e deputado federal chileno entre 2010 e 2018, e Issa Ghawali, palestino que chegou ao país na década de 1990.
Ghawali veio para a América do Sul depois de ser preso quatro vezes durante a Primeira Intifada, levante popular de palestinos contra a ocupação israelense que aconteceu entre 1987 e 93. Aborrecido com os conflitos, decidiu tentar uma vida melhor fora de sua terra.
No caso de Fuad, seus avós chegaram no ano de 1920 ao Chile, o mesmo da fundação do clube. “Palestino é um embaixador da Palestina na América do Sul”, defendeu. “Há um compromisso político incontornável. O povo palestino está sofrendo uma tentativa de limpeza étnica em Gaza e os triunfos do Palestino dão ao nosso povo um pouco de alegria, especialmente, em um momento de tanta tristeza e escuridão”, afirmou, ao falar sobre os jogos que são transmitidos no país árabe.
Vicente Misle, o presidente do diretório juvenil, citou o lema da equipe – Mais que um time, todo um povo – para defender essa ligação entre clube e a nação que luta para existir. “O sionismo tenta incutir a ideia de que o povo palestino e palestinidade não existem, não são uma identidade. Mas, o melhor exemplo de que isso é mentira é que o Palestino foi criado 28 anos antes do Estado de Israel”, argumentou. “Para nós palestinos, existir é resistir e o Palestino é uma demonstração de que existimos”, concluiu.
“São 76 anos de ocupação e nós nos sentimos profundamente palestinos, palestinos exilados, na diáspora, assim como nos sentimos extremamente chilenos e gratos ao Chile”, exclamou Fuad.
Emocionado, Fuad rebateu uma frase supostamente dita pela ex-primeira-ministra de Israel Golda Meir: “Os velhos morrerão e os jovens esquecerão”. Algumas fontes, como o jornal The Guardian, atribuem a aspa a David Ben-Gurion, outro ex-primeiro-ministro. De toda forma, a frase ficou conhecida entre os palestinos e, hoje, serve como um mote (às avessas) de sua luta.
“É nossa identidade, os elementos que você vê em nossa camisa, são a nossa cultura, nossas raízes e a forma que o mundo nos conhece.”
Patrício Majluf, torcedor do clube
“Eu acho que esse é o grande fracasso do projeto sionista, porque efetivamente os velhos morreram, mas os jovens não esqueceram. Não esquecemos nossa terra, não esquecemos nossa identidade e vamos seguir lutando de distintas maneiras”, declarou o advogado.
Para explicar os conflitos entre Israel e Palestina, é necessário entender o contexto antes mesmo da criação do Estado de Israel. Após a 1ª Guerra Mundial, com a dissolução do Império Turco Otomano, diversos territórios árabes que pertenciam a ele foram ocupados por França e Inglaterra. A Palestina ficou sob domínio inglês.
Anos depois, com o fim da 2ª Guerra Mundial, a recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu fundar um Estado judeu na região da Palestina, pensando inclusive no que havia sofrido a comunidade judaica com o Nazifascismo na Europa. Essa ideia, no entanto, já existia há algumas décadas, com uma corrente política denominada Sionismo, que ganhou força entre os judeus no início do séc XX.
Apesar de a ONU ter feito esforços para partilhar o território palestino em dois – uma parte para Israel e a outra para a Palestina – a ideia não foi bem aceita pelos palestinos, nem pelo mundo árabe no geral. No dia seguinte à criação de Israel, uma guerra eclodiu entre os dois povos, o primeiro de vários conflitos ao longo dos 76 anos de existência de Israel.
Apesar de ter partilhado o território palestino, a ONU ainda não aceitou o Estado da Palestina como um país membro da entidade. Países com influência na Organização, como os Estados Unidos e a maior parte da União Europeia, não reconhecem a existência de um Estado Palestino.
Já Israel se tornou Estado-membro da ONU em 1949, um ano depois de sua fundação, e é reconhecido como país por mais de 160 países, apesar de ainda sofrer resistência das nações árabes.
Simpatia
Além dessa variedade de histórias e relatos de descendentes de palestinos, a Babel encontrou também torcedores que não tinham relação direta com o povo. Entre eles, estavam brasileiros “secando” o rival Flamengo e outros que destacaram sua identificação com a causa do clube chileno.
Fabrizio Termini, torcedor do Colo-Colo, morava em La Cisterna, nos arredores do estádio do Palestino, e ia aos jogos quando estava entediado. Entretanto, ele “adotou” o clube como segundo time porque queria ter mais uma forma de apoiar a luta dos palestinos.
“Eu compartilho das ideias de um estado da Palestina livre e é um clube muito comprometido com a causa”, explicou Termini, que vestia um Keffiyeh em volta do pescoço. “Eu acredito que agora a visão das pessoas, de outros clubes inclusive, é de ter mais simpatia pelo Palestino, não só no Chile, mas em todo o mundo, porque eles estão apoiando a causa”, acrescentou.
Para Fuad Chahín, o clube é um orgulho para todo o Chile e por isso ganhou a simpatia de muitos. “É um clube muito querido, muitas pessoas não são torcedoras, mas têm um carinho especial pelo time e pelo que ele representa. A comunidade palestina também ganhou o respeito, apreço e carinho da terra que nos acolheu, que hoje apoia nossa causa, que é uma causa sobre a liberdade, sobre a dignidade, os direitos humanos”, relatou Chahín.
Posição
Com a escalada dos conflitos entre Israel e Palestina desde outubro de 2023, o clube intensificou seu posicionamento em defesa do povo palestino. “O clube está comovido pelo atual cenário de genocidio que se passa hoje na Palestina. Nós fazemos doações econômicas a instituições que ajudam concretamente, mas toda ajuda que podemos dar daqui do Chile, ainda é pouca e não vai consolar a dor do que se está vivendo em Gaza”, afirmou José Nabzo, chefe de imprensa do time.
Segundo o jornalista, o Palestino, ao longo desse período, tenta, dentro das limitações que tem por ser uma entidade esportiva, dar visibilidade à luta compartilhando marchas em apoio a Palestina e realizando protestos dentro de campo, como no dia 21 de abril, quando entrou com uma faixa pedindo o fim do genocídio em Gaza para a partida contra o Club Universidad de Chile.
Todos os torcedores ouvidos pela reportagem lamentaram e demonstraram muita mágoa ao falarem sobre o que acontece hoje na Palestina. “Como todos sabem, Israel tem muito poder e influência no mundo e é muito difícil pará-los. Como bons palestinos, sempre nadamos contra a corrente, é algo que nos caracteriza, nossa essência lutadora a frente da adversidade”, disse Andres Manzur.
“A matança e o genocídio que Israel está fazendo com a Palestina é uma intolerância e ninguém está fazendo nada. É muito complicado porque as pessoas estão morrendo, pessoas inocentes, civis, estão morrendo por causa de um genocídio de um país que hoje acha que é o dono do mundo”, opinou Tarek Dababneh.
Tarek conta que a comunidade chilena, especialmente os torcedores, organizam rifas e bingos para arrecadar fundos para a Palestina e cantam frequentemente nos estádios em apoio ao país.
Os conflitos em Gaza escalaram a partir do dia 7 de outubro de 2023, quando o Hamas fez um ataque em território israelense que deixou mais de 1,4 mil mortos. Desde então, as estimativas são de que mais 35 mil palestinos tenham sido mortos na região, sendo 9 mil mulheres e mais de 13 mil crianças, e mais 77 mil foram deixados feridos. A população convive com escassez de água e comida, principalmente no norte do enclave, onde 70% da população enfrenta condições de fome.
Os dados foram retirados da agência de notícias da Organização das Nações Unidas. A entidade ainda aponta que ⅔ dos hospitais de Gaza não estão mais funcionando, que ajudas humanitárias para o norte tem sido barradas por Israel, cerca de 75% da população, 1,4 milhão de pessoas, foi forçada a se deslocar para fugir do conflito e mais de 1 milhão de pessoas não possuem casa. Para reconstruir a Faixa de Gaza, a ONU estima que pode ser necessário até 80 anos e R$ 200 bilhões.
Fuad Chahín e Patricio ressaltaram que os problemas do povo palestino não começaram no último mês de outubro. Ambos já visitaram a Palestina e relataram como era a vida ali.
“Na Cisjordânia, para ir de uma cidade a outra, precisa passar por um checkpoint controlado por Israel. Eles controlam a água e os recursos naturais. Existem estradas para carros palestinos e estradas para israelenses. Então, não existe Cisjordânia, é uma zona ocupada, um apartheid”, contou Fabricio. “Familiares foram separados por um muro de concreto de oito metros”, completou Fuad.
“Muitas pessoas não são torcedoras, mas têm um carinho especial pelo time e pelo que ele representa.”
Fuad Chahín Valenzuela, advogado e deputado federal chileno entre 2010 e 2018
A Cisjordânia abriga três milhões de pessoas, sendo 450 mil israelenses que vivem em assentamentos considerados ilegais pela comunidade internacional. O território, que foi destinado à Palestina na partilha de 1948, vive sob constante ocupação militar israelense, já que não possui Estado oficialmente constituído.
Fuad Chahín destacou que, apesar desse cenário, sentiu, em suas várias visitas à Palestina, que o espírito daquele povo jamais desaparecerá. “Muitas vezes as cidades e os vilarejos foram apagados, as pessoas foram levadas embora, mas ainda assim alguma semente permaneceu e deu frutos e não pode ser apagada. E acho que isso prova que esse projeto de colonização, de limpeza étnica, não terá sucesso, porque a capacidade de resistência, de resiliência e de recuperação do povo palestino é inigualável”, comentou.
Para Gazan Qahhat, da Comunidade Palestina do Chile, é essencial que os outros países latino-americanos se unam, assim como faz a torcida do Palestino, e denunciem o que acontece na Palestina, usando o direito internacional e a imposição de sanções a Israel.
“Espero que depois dessa tragédia, se forme um ponto de inflexão e que definitivamente possamos ter uma Palestina que viva em paz e livre”, confia Fuad.