O “fenômeno” Nayib Bukele

Por Isabella Oliveira e João Pedro Barreto

No dia 5 de fevereiro de 2024, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, proclamou, antes dos resultados oficiais, a própria vitória na disputa pela reeleição à cadeira presidencial salvadorenha, algo inédito desde o fim da guerra civil no país, em 1992. O resultado oficial: 84,6% da população votou para que Bukele continuasse com seu plano para a segurança do país.

Mas, antes de driblar a Constituição de El Salvador para se manter no poder, Bukele já acumulava uma considerável trajetória política. O presidente é filho de Armando Bukele, empresário salvadorenho bem sucedido e influente no meio político. 

Com esse histórico familiar, Nayib Bukele começou a trajetória como prefeito de Nuevo Cuscatlán, cidadezinha na região metropolitana da capital San Salvador. “É importante não esquecer que Bukele não vem da extrema-direita, como outros novos autoritários do continente. Ele surge como alguém diferente, um jovem dirigente de centro-esquerda com sentido de eficiência ‘empresarial’”, explica o professor de Filosofia da Universidade Centroamericana José Simeón Cañas, Ricardo Roque.

Naquele momento, Bukele era do principal partido de esquerda de El Salvador, a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), que dividia com o Arena, de direita, o cenário político do país marcado pelo bipartidarismo. A fama de “empresário eficiente” não era à toa: além do pai, Bukele já tinha negócios no setor publicitário, ramo de sua formação.

De Nuevo Cuscatlán, Bukele alçou voos mais altos e venceu a disputa para a prefeitura de San Salvador. Até então, apesar da rápida ascensão e do ganho de popularidade, o político era um prefeito de um partido tradicional que focava em investimentos sociais e na infraestrutura de suas cidades. Mas, assim como fez quando saiu de Nuevo Cuscatlán para San Salvador, Bukele iria usar sua gestão como propaganda para um objetivo maior, a presidência do país.

“Bukele se apresenta sob a estratégia populista de defensor do cidadão contra a classe política corrupta e ineficaz, além de ser o líder sincero que fala ‘sem meias palavras’ e enfrenta quem quer que seja que tenha de enfrentar”

Ricardo Roque

Com pouco espaço no FMLN, Bukele usou uma série de desentendimentos dentro do partido para endossar sua posição de suposto “outsider”. Foi expulso da legenda, lançou sua candidatura e um novo partido, o Novas Ideias. O nome dá a entender a estratégia de apresentar aos salvadorenhos uma terceira via, liderada por ele e que mudaria a política do país.

E assim, foi vitorioso. Aos 37 anos, Bukele se tornou presidente de El Salvador, concorrendo pelo partido Grande Aliança pela Unidade Nacional (Gana). Seu novo partido não foi instalado a tempo de concorrer às eleições, mas, mesmo assim, Bukele levou ao poder uma legenda recém-criada e quebrou o bipartidarismo que reinava no país desde 1992.

“O boicote dos meios de comunicação tradicionais a Bukele deu a oportunidade de gerir sua comunicação e campanha à margem desses veículos, recorrendo às redes sociais”, comentou Roque sobre a vitória de Bukele em fevereiro de 2019 quando não participou de nenhum debate, nem deu entrevistas a meios de comunicação independentes e tinha o exército de trolls divulgando seu nome por meio das redes sociais e de ‘fake news’.

Escalada autoritária 

No dia 9 de fevereiro de 2020, pouco mais de 8 meses depois de assumir, Bukele invadiu a Assembleia Nacional ao lado de militares e apoiadores. Na ocasião, os deputados do país haviam recusado um pedido de empréstimo de mais de 100 milhões de dólares feito por Bukele para financiar a política de segurança.

Segundo  Roque, esse foi o primeiro momento em que foi notável a veia autoritária de Bukele. Apesar da ofensiva contra a Assembleia, ainda dominada pelos dois partidos tradicionais, Bukele deu um passo atrás após pressão internacional. “Se eu fosse um ditador ou alguém que não respeitasse a democracia, agora teria assumido o controle de tudo. Segundo as pesquisas, 90% das pessoas nos apoiam”, disse, na época, o presidente ao jornal espanhol El País.

O que deu as armas necessárias para que Bukele se transformasse de vez em um líder autoritário foram as eleições legislativas de 2021. Após uma rigorosa atuação frente à Covid-19, uma leve redução nos índices de criminalidade e uma estratégia de comunicação agressiva, o partido Novas Ideias, em sua primeira eleição, já conseguiu a maioria do Congresso: 56 das 84 cadeiras, 66% dos votos. O Arena foi o segundo mais votado, com apenas 12% e 14 cadeiras.

Com a maioria na Assembleia, Bukele rapidamente enviou um projeto que destituía o Procurador-Geral da República e os cinco ministros da Suprema Corte. “O primeiro passo é controlar o judiciário e isso é feito ou aposentando os juízes que mantêm sua autonomia, como foi o caso de El Salvador, ou aumentar o número de magistrados para nomear juízes simpáticos ao regime”, explica o consultor da Secretaria de Administração Penitenciária do Pará, André Silva de Oliveira, sobre a decisão tomada pelos deputados em maio de 2021.

Após a mudança na Suprema Corte, Bukele deu outro passo essencial para líderes autoritários: a manutenção do poder. Em setembro, os novos ministros, alinhados ao presidente, aprovaram a possibilidade de uma reeleição, algo proibido pela constituição do país. Em tom de deboche, Bukele mudou sua biografia do Twitter para “O ditador mais cool do mundo”, após ser criticado por suas ações.

“Bukele e os governantes autoritários de outros países detestam a lei porque sabem da sua importância, porque sabem que é a única coisa que os detém.”

Carlos Cruz-Coke Carvallo, advogado e pesquisador em Direito Político e Constitucional

Além de tudo isso, Bukele sofre denúncias a todo momento de perseguir adversários políticos e jornalistas. O maior portal jornalístico do país, El Faro, teve que mudar sua sede administrativa para a Costa Rica. 

Em um comunicado oficial, o veículo afirma ter sido submetido, durante a gestão Bukele, a campanhas de deslegitimação e difamação produzidas por funcionários e deputados governistas; a vigilância e ameaças; a assédio de anunciantes; e a auditorias do Ministério da Fazenda com “acusações fabricadas”, replicadas até mesmo pelo presidente que os acusou de lavagem de dinheiro.

A escalada autoritária no país não parou por aí. Os deputados salvadorenhos aprovaram, no dia 29 de abril, uma mudança na Constituição que deixa muito mais fácil para que os parlamentares alterem a Carta Magna do país. 

Antes, para mexer na Constituição, os deputados de uma legislatura precisavam dar um aval a uma mudança aprovada na legislatura anterior. Agora, eles podem fazer isso sempre que obtiverem o número de votos necessários para isso – 45 de 60.

A legislatura que assumiu no dia 1° de maio, no entanto, é formada por 54 deputados do partido de Bukele. Essa alteração abrirá margem para novas arbitrariedades do Governo, incluindo o número de reeleições possíveis no país.

Política de segurança

Desde que assumiu a presidência em 2019, Nayib Bukele adotou medidas controversas para combater a criminalidade e a violência no país. Estas políticas incluem o uso das forças armadas para lidar com questões de segurança interna, bem como a detenção em massa e o desrespeito aos direitos humanos. 

De acordo com dados do governo salvadorenho, em 2015 a taxa de assassinatos era de 107 homicídios para cada 100 mil habitantes. Essa situação colocava El Salvador entre os países com uma das taxas de violência mais elevadas da América Latina. A escalada era impulsionada especialmente pela atividade das gangues e pelo tráfico de drogas. 

Em 2021, o jornal salvadorenho El Faro apurou que Bukele negociava com as três principais gangues do país: a Mara Salvatrucha (MS-13), Barrio 18 Sureños (B18-S) e Barrio 18 Revolucionarios (B18-R). Isso explicaria a drástica redução na taxa de assassinatos, em 2023, para 2,3 homicídios por 100 mil habitantes. O periódico ainda documentou que algumas gangues deixaram de matar após diálogos com o governo. 

Para  Roque, a política de segurança de Bukele foi eficaz no desmantelamento das pandillas (gangues). Embora elas não tenham sido extintas completamente, a sua capacidade de controle territorial desapareceu e teve como efeito a quase destruição do Estado de direito e do processo legal. 

As detenções em massa em El Salvador envolvem denúncias de abuso, prisões arbitrárias e falta de evidências para justificar o encarceramento. De acordo com a ONG Socorro Jurídico Humanitário, de março de 2022 a março de 2024, 241 pessoas morreram nos presídios salvadorenhos e aproximadamente 26 mil foram presas injustamente. O governo alega que os alvos são membros das gangues, porém pessoas que de alguma forma se opuseram a gestão Bukele também já foram presas.

“Estima-se que cerca de 70 mil pessoas foram presas (mais de 1% da população do país), na sua maioria homens jovens e de baixa renda, em condições desumanas que desrespeitam os seus direitos básicos”, comenta Roque. 

Em março de 2022, a Assembleia Legislativa de El Salvador aprovou, a pedido de Bukele, a instauração de um regime de emergência para controlar as ações da  Mara Salvatrucha, após o registro de mais de 70 homicídios em um único final de semana. O regime de exceção restringiu a liberdade de reunião, estendeu os poderes da polícia e autorizou prisões sem ordem judicial. 

Ainda assim, parte da população aceita o método e afirma que é uma maneira de lidar com a violência provocada pelas organizações criminosas. “Um número considerável de cidadãos discorda do regime de exceção, mas está disposto a aceitá-lo por recear o regresso da violência das gangues”, explica Ricardo. 

Em janeiro de 2023, o governo Bukele inaugurou uma mega-prisão com capacidade para 40 mil presos. O Centro de Confinamento Contra o Terrorismo (Cecot) é o maior presídio das Américas, ocupa uma área total de 166 hectares e já possui 23 hectares construídos na zona rural de Tecoluca. Segundo o governo salvadorenho a prisão é reservada para pessoas que ocupam altas posições nas gangues MS-13, B18-S e B18-R. 

Em abril de 2024, Gustavo Villatoro, ministro da Justiça e Segurança de El Salvador, declarou em entrevista à Agence France-Presse (AFP) que desde o começo da “guerra às gangues”, em março de 2022, as autoridades prenderam 79.800 membros de organizações criminosas, dos quais 7.600 foram libertados. 

A política de segurança implementada por Nayib Bukele em El Salvador reduziu a criminalidade a índices nunca vistos no país, o que fez a popularidade do presidente crescer entre a população. Contudo, as denúncias de violação a direitos básicos no ato da prisão, durante o encarceramento e no decorrer dos processos legais causam preocupação e colocam em xeque a real efetividade das medidas. 

“Hoje em dia, após se reeleger apesar de a Constituição não permitir, Bukele muda a Câmara Constitucional à vontade e também o procurador, não respeita os princípios da separação de poderes, do Estado de direito, da independência judicial, da liberdade de imprensa. A longo prazo, sem o apoio do povo, que sabemos ser volátil, irá se tornar um ditador sem limites.”

Carlos Cruz-Coke Carvallo

O “efeito Bukele”

O “sucesso” de Nayib Bukele ao reduzir a violência em El Salvador se espalha pela América Latina. Em 2023, Honduras anunciou o projeto de construção de uma prisão offshore a 200 quilômetros do continente, na Ilha Cisne, exclusiva para membros de organizações criminosas. A declaração aconteceu pouco tempo depois do assassinato de 46 detentas dentro de um presídio, com a ação sendo atribuída às gangues. 

Em janeiro de 2024, o governo Daniel Noboa, no Equador, também compartilhou planos para a construção de duas prisões de segurança máxima e supermáxima

De acordo com Roque, é muito difícil reproduzir em outros lugares o que Bukele fez, porque o presidente se valeu da implosão de um sistema político e do fato de o país não ter uma localização estratégica na geopolítica das grandes potências, nem ser um local importante nas rotas do crime organizado. Mas, ele  acrescenta: “Bukele é um exemplo particularmente sinistro para o futuro das democracias latino-americanas.”

Na Argentina, a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, afirmou que a onda de violência na cidade de Rosário é uma reação das organizações criminosas às novas medidas aplicadas pelo governo argentino dentro das prisões desde o final de 2023.

Em dezembro, Bullrich anunciou o chamado Plano Bandeira, que alocou forças de segurança federal em Rosário, localizada na província de Santa Fé e governada por Maximiliano Pullaro. Ela disse ter interesse em adaptar o modelo salvadorenho e em conhecer Bukele pessoalmente.

O governador Pullaro também informou que mais de mil presos haviam sido realocados de delegacias para penitenciárias e que detentos de maior periculosidade foram transferidos para pavilhões mais seguros.  Em maio de 2023, a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados do Brasil assistiu à apresentação do ministro da Justiça e Segurança Pública salvadorenho, Gustavo Villatoro, sobre a política de segurança de El Salvador. 

No Peru, o governo de Dina Boluarte vem sendo cobrado por parte da população, prefeitos, líderes do legislativo e do judiciário para implementar medidas semelhantes às de Bukele para controlar a criminalidade no país.