O novo Cristianismo no Chile, um país cuja identidade é marcada pela religião

A religião é um aspecto marcante no Chile que foi instituído um órgão governamental cujos objetivos são a promoção efetiva da igualdade e liberdade religiosa  no país, além de propiciar diálogos inter-religiosos. A Oficina Nacional de Assuntos Religiosos (ONAR), criada em 2007, propõe, de uma perspectiva de Estado, que o povo possa ter a liberdade religiosa garantida pela Constituição.

As singularidades dos chilenos fazem com que seu mapa religioso, historicamente composto por mesclas, seja vasto até hoje. No entanto, em séculos anteriores, esse esforço para instituir a liberdade religiosa quase não existia. A fé cristã, por exemplo, é introduzida de uma forma impositiva pela Igreja Católica no Chile com doutrinações, campanhas violentas e a instauração de igrejas e conventos. 

É nesse contexto que o sincretismo do país surge, a partir da inventividade cultural dos originários para não perderem sua cultura. As mudanças seguem com o protestantismo, que inicialmente também não era aprovado pela Igreja e que, por sua vez, gera a fé evangélica, que engloba aspectos populares na religião. 

ONAR  

Em 1980, quando a nova constituição chilena foi promulgada, houve a separação entre Igreja e Estado, tornando viável a existência jurídica de outras crenças.  Antes, não havia uma instância de interlocução entre governo e os distintos credos e igrejas.

O pastor evangélico e funcionário da ONAR, Gustavo Torres, afirma que a instituição é “um escritório que pertence ao Governo, nascido para cuidar da liberdade religiosa no Chile. A Igreja Católica tem uma forte influência aqui, mas a Igreja evangélica [ e outras crenças] tem pouca”, aponta. Eles  também analisam questões legislativas para que não afetem a liberdade religiosa. Torres conta que “o Escritório tem, por exemplo, diálogos permanentes com a igreja evangélica para garantir os direitos quando, por exemplo, um pastor não pode fazer uma oração em um hospital ou quando não o deixam pregar.”

“No começo do século 19, quando aparecem grupos protestantes da Europa [eles] não eram permitidos e foram perseguidos pela Igreja Católica.”

Bernardo Guerrero, sociólogo e historiador

Mesclas religiosas

O sociólogo e historiador Bernardo Guerrero conta que os colonizadores, quando chegaram ao Chile e tiveram seus primeiros contatos com os povos originários, tinham dúvidas sobre os indígenas terem ou não alma. Sanada as questões, os europeus concluíram que deveriam evangelizá-los, pois havia a possibilidade dos nativos serem salvos. 

Os indígenas, por sua vez, questionaram se os colonizadores teriam um corpo (devido às  vestimentas e às montarias) e se eram mortais. Eles entenderam que sim e depararam-se com a imposição de um novo conjunto de crenças em seus territórios.  

“Há uma grande disputa em torno do sagrado, para o mundo autóctone da América Latina. O sagrado é diferente de Jesus, que é um símbolo, talvez, dos conquistadores”, explica Bernardo. “Mas, aqui [o sagrado] se mistura com o culto à fertilidade, à mãe terra, à água e aí é onde se começa a produzir uma fusão ou uma ruptura, pois existia a extirpação da idolatria, uma campanha muito violenta que destruía todos os símbolos sagrados da cultura.”

Assim, a paisagem religiosa chilena muda. “Quando chega a Conquista ocorre um processo mútuo de adaptação cultural, ou seja, os grupos não hispanos pegam o que veem com o conquistador, mas o vão adaptando, camuflando a seus antigos deuses com essa roupagem cristã”. A criatividade sociocultural faz com que esses povos mantenham sua ancestralidade e convivam com o catolicismo, que não era visto nem praticado da mesma forma que era na Europa.

Essas mesclas de costumes religiosos continuam presentes na sociedade chilena. Com exemplo temos La Fiesta de la Tirana, uma grande festa que acontece anualmente, por vários dias em meados de julho, no norte do Chile. Bernardo conta que nela se misturam os cultos nativos com o catolicismo e cria-se um fenômeno muito característico da América Latina: o Marianismo, que é o culto à Virgem Maria. Para os que seguem essa devoção à Virgem, a inclusão de danças e cantos populares nas festas religiosas e dentro das celebrações nos templos, torna-se uma tradição, o que não costuma acontecer em outros ritos da Igreja Católica. 

O protestantismo e sua nova versão 

A Reforma Protestante, que se opunha a algumas práticas da Igreja Católica, também chegou ao Chile. “No começo do século 19, quando aparecem grupos protestantes da Europa, [eles] não eram permitidos e foram perseguidos pela Igreja Católica. A perseguição chegou a tal ponto que os protestantes criaram os  próprios cemitérios e carregar uma Bíblia era visto como contrabando”, explica Bernardo. 

Anos depois, um movimento popular, uma nova versão do protestantismo, começou a incomodar os grupos vindos da Europa, que sentiram que deveriam domesticá-los, pois não seguiam a tradição européia. Bernardo conta que “em 1910, aproximadamente, surge o protestantismo popular evangélico pentencostal, uma nova versão no protestantismo. Eles são bibliocêntricos, são protestantes, mas dançam dentro do templo em um estado de êxtase, pois é a cultura popular.”

Em momentos da “alabanza” (adoração), em igrejas ou em retiros, é comum que canções animadas sejam tocadas, muitas pessoas cantam, as palmas seguem no ritmo, alguns começam a saltar e há um sentimento que começa a ser extravasado por meio de danças. Saltos, giros, risadas são comuns na composição do momento, muitos se levantam e simplesmente dançam juntos, caminham dançando no recinto, como se compartilhassem uma mesma fonte de alegria. 

“A fé se mescla com a identidade da pessoa pois, é preciso ser mais do que seguidor de Cristo, mas um imitador Dele.”

Darling Henriquez, estudante

Evangélicos e música na atualidade

O cristianismo no Chile têm um início marcado por imposições, mas também rebeldias, como a criatividade sociocultural, pois o povo não ficou inerte nesse cenário. Assim, os cristãos evangélicos no Chile tem traços em suas tradições que foram heranças de mesclas entre a religião e a cultura popular. 

Javiera Burgos, estudante de tradução e interpretação na Universidade de Concepción, toca violão no Ministério Evangelístico Águias de Jesus, e vê na música uma forma de elevação ao divino, de adoração. A estudante conta que o ato de tocar uma canção tem um profundo significado. “Quando não toco me sinto vazia, seca, como se me faltasse algo e é porque cantar a Deus, não é somente dar-lhe glória e honra, pois me encho de sua presença, sua paz, seu amor”, relata Javiera.

 Camila Catalán, enfermeira e evangélica, conta que “o cristianismo é conhecer e seguir a Cristo como nosso Salvador e Senhor”, sendo esse um dos princípios da fé. A maioria das músicas ou louvores, cantados nas igrejas evangélicas do Chile, baseiam-se em trechos da bíblia protestante, haja vista que a parte musical tem grande peso em momentos de adoração. 

 Armando Sanchez, estudante na Universidade San Tomás conta que vivia uma descrença em relação à existência de Deus, mas sua percepção muda em um momento de adoração em uma igreja. “Minha oração era que eu queria sentir Deus em meu coração, um dia fui a um culto e estavam cantando um hino. Cantavam ‘Cristo, Cristo nome sem igual’ e nesse momento senti como se  alguém batesse à porta do meu coração e me chamasse”. E não é nesse ponto que a história se resume, Sanchez relatava que “ter respostas de orações, esclarecimentos de valores bíblicos, ouvir a voz do Espírito Santo são exemplos de experiências vividas constantemente e que caracterizam minha fé.”

Darling Henriquez, também estudante na Universidade San Tomás, diz que  a fé se mescla com a identidade da pessoa pois, “é preciso ser mais do que seguidor de Cristo, mas um imitador Dele”.  Para os seguidores da Igreja Evangélica,  decisões de vida, definições de condutas morais e até traços do comportamento surgem a partir dessa identidade com o sagrado, que é muito forte no Chile, tanto para os cristãos, como para outras denominações religiosas. 

Com a existência de um órgão de estado dedicado a promover a liberdade religiosa, o Chile mostra maturidade quando o assunto é reconhecer a relevância da religião, para além do Catolicismo. Os significados das tradições mudam com a sociedade, projeta-se uma visão de mundo sob tudo que é feito e, quando se trata da fé, há uma complexidade que guia a conceituação da relação entre passado e presente.