Sons de um futuro em ruínas

Hinos de indignação acompanhados de instrumentos pesados denunciavam uma sociedade em decadência. Assim foi consumida a atmosfera do Sesc Pompeia, na capital paulista, durante os dias 27 e 28 de novembro de 1982, quando aconteceu o festival O Começo do Fim do Mundo, hoje considerado o apogeu do movimento punk no Brasil, ainda em meio à Ditadura Militar.

O festival contou com performances de vinte bandas, incluindo algumas que até hoje estão ativas na cena musical brasileira — como Cólera, Inocentes, Ratos de Porão e Olho Seco. Uma legião de fãs do punk foi atraída pelo evento, que reuniu cerca de 3 mil pessoas e possibilitou a participação concomitante de bandas punk do ABC paulista e da capital, ainda que entre elas houvesse uma rivalidade notória.

Quaisquer fossem as rixas, sabe-se que não foram suficientes para inibir o espírito compartilhado por quem esteve presente naquele final de semana ao som de versos como os de C.D.M.P (Cidade dos Meus Pesadelos) (1985), da banda Cólera, canção lançada oficialmente depois do festival: “Dia e noite pode escutar/ Tiros e gritos, tiros e gritos/ E no asfalto você vai olhar/ Sangue cuspido, sangue cuspido/ Ah! Sem futuro, sem futuro!”.

Ou os de Miséria e Fome, dos Inocentes, lançada oficialmente em 1983: “Não estou culpando ninguém/ Não estou acusando ninguém/ Apenas conto o que eu vi/ Apenas conto o que eu senti/ Miséria e fome”.

Apoiado na fúria e desdém característicos da música punk, o festival O Começo do Fim do Mundo dispôs de uma magnitude memorável. Parte dela decorre do fato que o punk rock já ecoava entre a juventude brasileira desde o final da década de 1970.

A chegada do punk ao Brasil

O punk surgiu em países centrais do sistema capitalista — em um primeiro momento nos Estados Unidos, depois se fortaleceu na Inglaterra — e sempre esteve inerentemente ligado à imagem do jovem contestador e rebelde. Esse movimento se alastrou pelo mundo de formas diversas. Tiago de Jesus Vieira, pesquisador na área de identidade punk e docente de história na Universidade Estadual de Goiás, explica que, embora o punk tenha passado por múltiplas metamorfoses, sua característica norteadora segue sendo o “protagonista juvenil, com capacidade de reinterpretar a ordem estabelecida”.

Se parte da essência do punk é a colisão entre as normas impostas e o impulso pela liberdade, a sociedade brasileira durante a Ditadura Militar — época em que a opressão e a violência roíam a juventude — formava um cenário extremamente compatível com os ideais dessa manifestação cultural.

De acordo com Vieira, o punk chegou ao Brasil pouco após seu surgimento, mas as informações importadas para este lado do Atlântico eram escassas. Dessa forma, apenas uma ideia vaga do que era o punk pairava pelo país. Essas cisões no próprio entendimento do fenômeno fizeram com que ele desenvolvesse características autênticas, que foram moldadas pela realidade social brasileira da época.

Após desembarcar no Brasil, o movimento adquiriu um caráter de insubordinação dos jovens pobres, se pautando nos dilemas específicos dessa demografia. Nas cidades do ABC paulista e na capital, mais precisamente, o punk incorporou valores da classe popular. “Num contexto de repressão, no qual existiam poucos espaços para jovens periféricos, o punk rock proporcionou a eles inserção social, cultural e política”, o historiador esclarece.

José Rodrigues Mao Júnior, ou apenas Mao, é fundador e vocalista da banda Garotos Podres, criada no fim de 1982 e até hoje em atividade. De São Bernardo dos Campos, no ABC paulista, ele relembra o primeiro contato que teve com o movimento punk em 1977, quando era ainda estudante de um curso técnico. “A postura contestadora do punk rock caiu como uma luva perante uma juventude inconformada com a situação política e social que vivíamos no Brasil do período”, conta.

Não era fácil obter acesso à mensagem do punk durante a repressão da Ditadura Militar. No entanto, essa foi uma das barreiras ultrapassadas para que a palavra do movimento fosse divulgada. “Não existia internet. O que nós tínhamos era uma imprensa alternativa produzida pelo próprio movimento”, diz Mao. A palavra do punk se alastrou, em grande parte, por meio das fanzines, um tipo de veículo informal utilizado por fãs que buscam compartilhar informações sobre determinada cultura. “O pessoal datilografava o texto e depois fazia o xerox, então o acesso era muito precário”, relata o músico.

“A postura contestadora do punk rock caiu como uma luva perante uma juventude inconformada com a situação política e social que vivíamos no Brasil”

José Rodrigues Mao Júnior, vocalista da banda Garotos Podres

Mao também cita a loja Punk Rock Discos, fundada por Fábio Sampaio, vocalista da banda Olho Seco, em 1979, na Galeria do Rock. O local foi um dos pontos de encontro entre os punks na época, e também responsável pela circulação da música e cultura do movimento no exterior para a juventude brasileira.

Ele se refere ao ABC paulista como o “olho do furacão”, em alusão ao movimento sindicalista, especialmente ativo na região. Mao conta que matou aula para assistir a assembleias e greves, e relembra a indignação deixada pela violência do aparato policial contra os trabalhadores. “O sentimento de opressão perpassava o cotidiano, e a violência da ditadura era difusa em toda a sociedade”, ressalta.

A experiência de Mao foi similar à de milhares de jovens que, assim como ele, encontraram no movimento punk uma forma de canalizar a revolta pela opressão que permeava a realidade brasileira. “O punk foi, naquele momento, a principal ferramenta para externalizar a inquietação dos jovens contra um mundo no qual eles não se sentiam representados”, explica o historiador Vieira.

À medida que o tempo passava, o movimento se amplificou. Clemente Tadeu Nascimento, hoje vocalista e guitarrista dos Inocentes e da Plebe Rude, diz que “[as autoridades] só foram perceber que a gente existia quando a cena já estava muito grande”.

O ápice

Os sentimentos compartilhados pelos punks também apareciam na estética do movimento – seja ela representada na música, ou na forma como se vestiam. A estética do punk era agressiva, de forma a denunciar a revolta interna à opressão — a postura contestatória e um visual pesado, com jaquetas de couro, correntes, moicanos e coturnos compuseram a imagem disruptiva do punk. “Era uma novidade marcante, porque identificava quem tinha uma postura crítica à sociedade e ao regime. A música seguia o mesmo contexto. Era um tipo de rock novo, e toda aquela cultura jovem assustava e gerava as mais diversas reações”, conta Clemente.

Sobre a indignação do punk contra a ditadura, Clemente diz que o movimento lutava pelo fim do regime e pelo retorno das liberdades democráticas, mas que esse posicionamento trouxe consequências. “A polícia passou a nos perseguir sistematicamente, mas fazia parte do contexto de quem se posicionava contra a Ditadura Militar”, lembrou.

No festival O Começo do Fim do Mundo, um dos maiores momentos do punk brasileiro, Clemente tocou como baixista dos Inocentes e recorda como o festival foi organizado. Ele pontua como o escritor, jornalista e dramaturgo Antônio Bivar, que faleceu em 2020, foi essencial para que o festival se tornasse realidade. “Só aconteceu por causa dele, que fez as primeiras matérias para a grande imprensa e escreveu o livro O Que é Punk?, publicado pela editora Brasiliense em 1982. O festival aconteceu junto com o evento de lançamento do livro e foi a primeira vez em que os punks tocaram no circuito oficial da cidade.”

A estética do punk era agressiva, de forma a denunciar a revolta interna à opressão.

No sábado de 27 de novembro de 1982, a força da revolta punk tomou forma bem definida no Sesc Pompeia. Milhares de pessoas — tanto adeptos ao movimento, quanto as que ainda não eram familiares com o punk — se reuniram para assistir aos shows. Entre as principais bandas do dia estavam Cólera, Inocentes, Ulster e Dose Brutal.

Alguma espécie de confusão já era esperada num evento que borbulhava no caos elemental do punk, ainda mais se combinado com as brigas e rixas entre os envolvidos. Apesar da expectativa, Clemente conta que o primeiro dia correu bem, mesmo com a atmosfera naturalmente volátil.

O dia seguinte também teve um início promissor. À medida que o ambiente foi preenchido pelo som de afronta vindo de grupos como Olho Seco, Ratos de Porão e Lixomania, o festival seguiu sem conflitos. Os últimos momentos de O Começo do Fim do Mundo, no entanto, foram marcados pela repressão autoritária característica do período. No fim do segundo dia, a polícia invadiu o Sesc Pompeia e tropas de choque puseram um fim ao festival e ainda prenderam alguns dos punks que estavam presentes.

A inserção do punk na cena cultural de São Paulo foi excepcional na mesma intensidade com que foi momentânea. Após o ápice, representado pelo O Começo do Fim do Mundo, a perseguição e a censura já enfrentadas pelo movimento foram exacerbadas, e quaisquer manifestações punks na mídia adquiriram uma conotação negativa. A partir daí, a força do movimento se dissipou.

Olhando para trás, Clemente vê essa época como um momento que formou a maneira com que ele vê o mundo. “Moldou minhas convicções, meu jeito de pensar e de compor. Tirando aquele comportamento, típico de adolescente, sou o que sou hoje por causa dessa época”, diz.

Mao também fez parte do evento, mas como público – O Começo do Fim do Mundo antecedeu a fundação da sua banda, os Garotos Podres. Para ele, que tinha 19 anos quando o festival aconteceu, o punk proporcionava a sensação de fazer parte de algo grande, que questionava uma sociedade autoritária sufocante. Ele diz que a opressão incessante alimentava o sentimento – se fosse revistado por um policial, pensava: “olha como eu tô incomodando!”. Hoje, mais de 40 anos depois, reflete: “era uma coisa um pouco pueril, mas foi importante para a minha formação. Uma espécie de escola de rebeldia”.

Ao fim, além da marca na memória dos que estiveram presentes, O Começo do Fim do Mundo foi gravado e lançado como LP e, mais tarde, relançado em formato de CD. Em comemoração aos 30 anos do festival, em 2012, o Sesc Pompeia realizou um documentário intitulado O Fim do Mundo, Enfim, dirigido por Camila Miranda, que contém depoimentos dos artistas e mostra os bastidores da produção do evento.

Muito mais que uma simples importação, o punk no Brasil adquiriu perspectiva própria e atuou como uma manifestação contra os dilemas vividos pelos brasileiros na época. A dura testemunha de desintegração econômica, política e social do cotidiano brasileiro permitiu que os jovens encontrassem na radicalidade do punk uma catarse compreensível, e o resultado foi uma manifestação cultural única.