Muitos anos depois da morte de Gabriel García Márquez, um ex-aluno do autor havia de se recordar da Casa Branca. Não o lar neoclássico de presidentes estadunidenses, mas a residência sazonal de um escritor latino-americano em Cuba. A casa ganhou essa alcunha porque era impossível descrevê-la melhor: as paredes eram brancas, os móveis, o sofá, as cortinas. A única coisa que destoava eram as flores amarelas, imprescindíveis para que o autor exercesse seu ofício.
Gente que é gente é cheia de mania, e o Gabo não era diferente. Se questionado porque só escrevia ao lado de flores amarelas, impacientava-se, jocoso, com a pergunta besta: “como assim não escrever com flores amarelas?”.
“Ele era muito louco, mas muito metódico”, conta o ex-aluno de García Márquez e cineasta cearense Marcus Moura. O método associado à genialidade deu frutos: foram mais de trinta obras publicadas, pelo menos 10 adaptações cinematográficas, a Fundação Gabo pelo bom jornalismo ibero-americano, além de uma escola de cinema fundada: a EICTV, em San Antonio de Los Baños, Cuba.
Abril de 2024 marca os dez anos do falecimento de Gabriel García Márquez. Em clima de aparente homenagem, novidades são anunciadas no nome do autor: a obra póstuma Em agosto nos vemos chegou nas livrarias do mundo todo no dia seis de março, aniversário do escritor; e, no mês seguinte, saiu o trailer da adaptação de Cem Anos de Solidão para Netflix.
Além da autoria, o que ambos os lançamentos têm em comum é que Gabo não os desejou em vida.
Distante da Macondo de outros livros, Em agosto nos vemos ocorre numa ilha caribenha na qual as maiores fantasias se passam na cabeça da nossa protagonista. Todo ano, Ana Magdalena Bach anseia pela caída da noite do dia de agosto em que deixa um ramo de gladíolos sob o túmulo da finada mãe.
O costume fúnebre rapidamente se torna um escape para a protagonista (mais rápido do que o leitor apaixonado gostaria: são pouco mais de cem páginas de espaçamento grande e letras ainda maiores). Em uma de suas visitas à ilha, Ana “tem uma inspiração”, como a própria personagem admite, e toma a iniciativa a uma noite de paixão apressada com outro hóspede de seu rotineiro hotel. A ode à mãe vira atividade secundária nos agostos seguintes de celebrado prazer, e toda vez Ana volta à cidade, à casa, à família, ao marido, mudada.
A sensibilidade do autor conta um conto de desejo feminino geracional, sempre saciado em recôndito segredo. O próprio nome Ana Magdalena Bach, apesar de uma homenagem à família musical Bach, também carrega o simbolismo bíblico mais óbvio possível: quem representa mais a dualidade entre o sagrado e o profano do que Maria Madalena e, principalmente, as representações midiáticas da personagem? No final, a santa é beatificada; e a outra não encontra nossos julgamentos, mas nossa simpatia.
García Márquez, que trabalhou no livro durante anos, achou que as palavras finais em relação à obra seriam as que proferiu: “Este livro não presta. Tem que ser destruído”. Os filhos do autor, responsáveis pelo exemplar que temos em mãos, definem a publicação de Em agosto nos vemos como um “ato de traição” ao pai, mas se justificam nas esperanças de que os leitores apreciem o livro e, assim, sejam perdoados.
Embora não tenhamos o Gabo lapidado que vemos nas suas obras mais primorosas, ainda temos, afinal, o Gabo. Em nota da edição original, o editor Cristóbal Pereira narra a cronologia da criação de Em agosto nos vemos, tanto antes da morte de García Márquez como após. Nesta obra, Cristóbal se diz um restaurador diante da tela de um grande mestre. Restaurações, contudo, visam preservar e recuperar obras já terminadas, mas danificadas pelo tempo ou condições adversas. O processo deste livro, por sua vez, lembra mais o trabalho do mestre escultor Rodin, que delegou, no mínimo, o refino das mãos e dos pés na obra prima Porta do Inferno à aprendiz (e igualmente genial) Camille Claudel. Ainda que Rodin o tenha feito por opção (Gabo era conhecidamente ciumento do próprio trabalho), me parece que o resultado foi semelhante. Porta do Inferno ainda é Rodin, assim como Em agosto nos vemos ainda é Gabo.
Vemos o processo de edição a partir das notas de Gabo nas quatro páginas de fac-símiles inclusas no final do livro, talvez o maior presente para os fanáticos do Nobel latino-americano.
Marcus Moura não leu Em agosto nos vemos, mas ouviu. Da boca do próprio autor, que ansiava pela aprovação de seus ouvintes como se os incontáveis prêmios e recordes de vendas não dissessem nada a respeito de seu talento. Moura fez parte da primeira geração de alunos brasileiros graduados na EICTV, em 1990. Durante o curso regular, não foi aluno do Gabo, mas quase quinze anos após a formatura, foi selecionado para participar de uma oficina especial ministrada pelo autor, famosamente chamada “Como contar um conto”. E lá ele conheceu Ana Magdalena Bach.
Todo ano, eram dez, doze premiados. “O critério era dele”, conta Moura, “eu entrei quando ele decidiu que o critério seria ‘ex-alunos do curso regular que escreveram algum livro ou roteiro de filme que foi gravado’, mas já teve turma só de mulheres com mais de 40 anos que escreviam novela… outras vezes era mais geral”. Enquanto Moura estava na oficina, foi convidado para dar aula na faculdade, e ocupou a cátedra de Direção.
Com maior proximidade do ídolo (e patrão), e munido de um aguçado senso de oportunidade, Moura foi um dos cineastas que pediram os direitos de gravação de Cem Anos de Solidão. A fila era grande e célebre: Coppola tinha interesse, além de um Kurosawa que visionava uma releitura japonesa desse romance essencialmente latino-americano. No mínimo, interessante. Mas Gabo ria e dava uma desculpa fajuta: “Imagina o que vão dizer lá em Aracataca!”, referindo-se à cidadezinha onde cresceu e fonte inspiradora para Macondo.
Essa rejeição ao cinema foi um ato de vingança. Antes de ser O Gabriel García Márquez, Gabo vivia escrevendo roteiros baratos para a indústria cinematográfica mexicana. Muito do que entrou na história dos Buendía foi o que não emplacou nos roteiros. “Quando eu vi o trailer [da adaptação pela Netflix], só me lembrei dele dizendo, em aula, que nunca iria dar os direitos de Cem Anos”.
Podemos nos apoiar na noção reducionista, ainda que não de toda errada, de que o dinheiro é a força motriz que move tudo. Capitalizar na morte alheia é um comportamento que categorizamos rapidamente como repulsivo, e ao pegar Em agosto nos vemos para ler, tive a esperança masoquista de não apreciá-lo. Essa teria sido a reação apropriada. Mas voltar para a prosa de Gabriel García Márquez, depois de tanto tempo, é um prazer maior do que qualquer dilema ético.
Já em relação à adaptação para Netflix, temos um desrespeito claro do desejo de um artista durante toda a vida dele. No caso de Em agosto nos vemos, Gabo trabalhou na obra com o objetivo de que fosse lançada, e desistiu dela posteriormente. Os filhos do autor argumentam que, por causa da velhice, ele estava senil demais para compreender a qualidade literária da obra póstuma, e por isso o lançamento seria adequado. Já para Cem Anos de Solidão, não é possível dar a mesma desculpa. A vontade do criador foi desconsiderada quando ele não tinha mais possibilidade de se defender. Para nosso bem, nos apeguemos ao otimismo: que uma nova geração visite Macondo e isso estimule a leitura deste autor tão fundamental.