Era uma vez, em um mundo fantástico…

Há muito tempo histórias que transcendem os limites da realidade têm fascinado a humanidade. Mundos mágicos como a cidade de Macondo de Gabriel García Márquez, criaturas fantásticas e eventos inexplicáveis, tal qual conversar com espíritos, são elementos comuns nesse tipo de narrativa.

Na América Latina, a literatura fantástica encontrou um solo fértil nas tradições e costumes locais, como os festejos católicos e indígenas, a culinária típica, o consumo de frutas e as diferenças entre os países do Caribe e dos Andes. Outra característica marcante desse tipo de escrita é a presença do realismo mágico.

De acordo com Rita de Cássia Miranda Diogo, pesquisadora em Estudos Decoloniais e professora aposentada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, trabalhar com elementos do fantástico e do sobrenatural, como assistir uma mulher se transformar em uma enorme árvore após falecer, é lidar com a nossa história como latino-americanos, que costuma ser “higienizada” pelo discurso histórico. 

O realismo mágico mescla elementos da realidade com elementos mágicos de forma natural dentro do contexto da história. Os personagens lidam com eventos extraordinários como se fossem parte do dia a dia. O dilúvio que acomete Macondo durante quatro anos, onze meses e dois dias ininterruptos é um exemplo disso.  

“A narrativa fantástica é um tipo de literatura que questiona os pressupostos racionais com os quais nós pensamos o mundo. A razão não pode explicar tudo”, comenta Ana Cecília Olmos, especialista em literatura e cultura hispano-americana do século XX e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. 

Entre os nomes mais conhecidos da literatura fantástica latino-americana destacam-se Alejo Carpentier, Julio Donoso, José J. Veiga e Gabriel García Márquez, laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1982 e reverenciado pela habilidade em entrelaçar o extraordinário ao cotidiano.

Anna Raíssa Guedes, revisora e apresentadora do podcast Suposta Leitura,  relembra que crescemos escutando histórias de pessoas que fazem mágica, conversam com espíritos ou que morreram de uma forma insólita. “Isso causa uma aproximação, é um mágico que não nos leva para um mundo de fantasia, a fantasia é aqui.” 

Durante o século XX, autores como Gabo, Mario Vargas Llosa, Ernesto Sabato e Isabel Allende utilizaram as ditaduras de plano de fundo em suas obras. A escrita fantástica serviu como uma forma de escapismo da repressão, além de permitir a crítica disfarçada dos eventos em curso. O realismo mágico era usado como ferramenta para transmitir críticas sociais e políticas de maneira metafórica sem que os escritores fossem censurados pelas autoridades. 

No livro A Casa dos Espíritos (1982, Bertrand Brasil), de Isabel Allende, observamos toda a preparação para o golpe que instaurou a ditadura chilena. Já em O outono do Patriarca (1976, Record), de Gabriel García Márquez, acompanhamos a história de um ditador centenário e cruel que governa um país na região do Caribe.

“Conhecer a América Latina significa conhecer melhor a nós mesmos, no Brasil; significa saber o que faz sentido, aqui; quais caminhos não serão armadilhas para nós.”

René Duarte, fundador da editora Peabiru

A literatura fantástica da América Latina se diferencia do material produzido no restante do globo por trazer uma maior conexão com as tradições orais e folclóricas e uma tendência em desenvolver temas como política, história e identidade por meio de alegorias mágicas. 

Segundo Lucas Mota, escritor e também apresentador do podcast Suposta Leitura, mesmo adorando Senhor dos Anéis (1954), de J.R.R. Tolkien, trilogia que figura entre os melhores livros de fantasia já escritos, existia uma distância cultural ali. “Quando eu peguei Cem Anos de Solidão para ler pela primeira vez, um livro com características muito próprias da Colômbia, parecia que eu era vizinho dessa galera. Macondo estava bem mais próximo de mim do que o Gandalf, o Bilbo e o Frodo.” 

Valorização 

Reconhecer a literatura fantástica da América Latina é essencial para a compreensão das questões sociais e políticas da região. Além de celebrar as diferentes tradições que compõem a identidade latino-americana e mostrá-las ao mundo. 

Para René Duarte, fundador da Editora Peabiru, especializada em escritores e obras da América Latina, publicar novos autores latino-americanos faz parte de um projeto amplo, não só editorial, mas sobretudo político. “É preciso reivindicar a identidade latino-americana como uma identidade periférica, marginalizada, mas, ao mesmo tempo, inclusiva, múltipla, potencialmente vigorosa e essencialmente revolucionária.”