Foto de capa: Cortesia/Flávia Dalmaso
O vodou esteve presente durante toda a trajetória do Haiti, desde o período colonial. A religião foi uma das responsáveis por unir a população escravizada e manter vivas sua cultura e formas de pensar.
“Não dá para contar a história do Haiti sem falar do vodou”, afirma Armstrong Santos, doutorando em Letras e professor de História na Universidade Federal do Acre.
No contexto colonial, a metrópole tomou medidas para dificultar qualquer forma de articulação da população escravizada e acabar com qualquer perspectiva de um futuro livre. Isso incluiu a proibição de suas línguas nativas e da manutenção de laços com seus locais de origem, ancestrais e famílias.
Ainda assim, esses diversos povos resistiram ao sistema de opressão em que viviam, criando formas de se comunicar e se articular. Entre elas estava o vodou e o créole, uma língua incompreensível para os colonizadores.
Disfarçados e aproveitando brechas no sistema colonial, eles exerceram suas crenças e se reuniram, com danças, cantos, celebrações e até na incorporação e ressignificação de elementos católicos.
E quando os questionamentos e revoltas contra o sistema colonial e escravista começaram a crescer, o vodou também esteve profundamente relacionado ao movimento revolucionário.
O primeiro grande levante, em 1757, é guiado pela figura de Makandal. Ele foi um grande Oungan, sacerdote no vodou, com conhecimento do uso de ervas, tanto para remédios quanto para venenos. E por meio deles, ele começa um grande movimento de mortes de senhores de escravos através de envenenamentos.
Em 1758, Makandal foi capturado e executado. Mas a mística em torno dessa figura histórica com poucos registros cresceu ainda mais. Muitos acreditavam que, em sua execução, ele se transformara em um mosquito. A crença é associada ao surto de malária vivido posteriormente, que matou milhares de europeus.
Já em 1791, foi realizado um pacto vodou, guiado pelo Oungan Boukman, em que se comprometia a libertar todos e não permitir a volta da escravidão. Considerado um dos grandes marcos e catalisadores para a revolução haitiana. Considerado um dos grandes marcos e catalisadores para a Revolução Haitiana, o pacto tinha como objetivo “acabar com tudo que é branco, o que significava[, além de] matar os brancos e também acabar com todo o sistema de opressão que existia ali”, explica o professor Armstrong.
“Eles iriam criar uma república, livre e negra — aquilo que não se podia perdoar.”
Armstrong Santos
Em pouco tempo, Boukman também foi executado por seu papel nos movimentos contra a metrópole colonial. Mas assim como Makandal, a mística da sua figura cresceu, fazendo com que ele se tornasse mais um símbolo para os revolucionários.
Apesar disso, a religião continuou a ser perseguida, mesmo após a derrota da metrópole colonial. Isso devido à grande presença católica no Haiti e aos resquícios da colonização, que não aceitava o caráter revolucionário que a religião carrega.
Armstrong diz que “o colonialismo não terminou após a independência, ele é o colonialismo do ser, dos saberes, dos gestos, a gente é colonizado”. E entre as consequências disso, a visão do vodou como algo maligno permanece na sociedade.
Vodou é pra jacu?
Muito da visão que temos do vodou é fruto das representações distorcidas na mídia estadunidense, produzidas principalmente durante o século XX, após a invasão e ocupação do Haiti pelos EUA, em 1915.
Sempre associado ao mal, o vodou aparece como uma “magia negra”, em todos os significados da expressão. Desenhos antigos, como Pica-Pau (1962), filmes de terror, como Brinquedo Assassino (1988), e até filmes mais recentes, como A princesa e o sapo (2009), da Disney, são exemplos dessa representação estereotipada. E nada disso se aproxima do que o vodou realmente é.
Outro exemplo nas telas são as bonecas espetadas por alfinetes para atingir alguém, prática que tradicionalmente não existe no vodou. As bonecas que existem costumam ser utilizadas como amuletos, por exemplo, para cura, prosperidade e amor. Ou até para a comunicação com os antepassados.
O zumbi é mais um conceito retirado do vodou. A zumbificação existe dentro do imaginário vodou, mas não é uma prática comum. Ela consiste em enfeitiçar alguém para tirar a sua vontade e forçá-la a trabalhar. A alma da pessoa fica presa, impedida de seguir seu caminho, sem domínio sobre o próprio corpo. Dessa forma, o zumbi não fala, não pensa, só faz zumbidos.
Armstrong diz que “o zumbi pode ser pensado como uma metáfora à escravidão. O grande medo das pessoas é perder a própria autonomia”, ou seja, retornarem a um estado de escravização, sem domínio sobre si e forçadas a trabalhar para quem as “enfeitiçou”. Apesar disso, o morto-vivo se espalha pelo gênero de terror e posteriormente na cultura pop, completamente esvaziado de seus significados originais.
Além dos estereótipos
Entre muitas coisas, o vodou é sobre cuidar e manter a relação com os espíritos, com os antepassados e com a própria terra.
Nele, os espíritos são chamados de Lwa, os intermediários entre os seres humanos e o deus criador, chamado de Bon Dieu (bom deus). A figura de deus no vodou é muito abstrata, com o qual não se pode falar diretamente ou tratar sobre preocupações comuns.
Os Lwa são mais acessíveis aos humanos e interagem diretamente com o nosso mundo, inclusive através de possessões realizadas em cerimônias. Cada família ou indivíduo tem seus próprios Lwa, a quem servem e buscam suporte.
Além deles, o vodou também cuida dos antepassados, que não necessariamente se tornam espíritos Lwa, embora isso possa acontecer. E quando se tem uma terra grande o suficiente, é comum enterrar seus mortos e fazer túmulos nela, que são cuidados e servidos por alguém da família.
Existem diferentes visões do pós-morte: alguns veem como estar “debaixo d’água”, outros têm a concepção da volta para Guiné, como um retorno espiritual para terras ancestrais na África.
Acredita-se que os Lwa seguem por toda a família através de cada geração, como herança. Flávia Dalmaso, doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, afirma que “o sangue carrega história, carrega espírito”. Os Lwa são parte da família, eles comem, bebem, moram na terra e têm necessidades. E alguém deve ser responsável por esses cuidados.
Eduardo Regis, Oungan e doutorando em Ciências da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora, diz que grande parte das cerimônias vodou são para celebrar e honrar os Lwa ou os antepassados, e descreve um pouco de como realiza as cerimônias no Ounfó, templo vodou: primeiro, abre-se com invocações e rezas, a saudação aos quatro cantos, o mundo, e ao Poto mitan, poste central no Ounfó que liga o mundo visível e invisível e permite a entrada e saída dos Lwa. Depois disso chama-se os Lwa com canções, danças e vevés, símbolos que os representam, normalmente desenhados no chão com farinha de milho. Também se oferece comidas ou bebidas que os Lwa apreciam.
Durante a cerimônia, pode ocorrer a possessão, quando um Lwa “baixa” em alguém e, através dessa pessoa, ele pode interagir, dançar, falar com os outros participantes ou fazer limpezas.
As práticas do vodou e suas cerimônias são marcadas por uma grande heterogeneidade e variam muito de região para região ou até de Ounfó para Ounfó. “Cada um tem o seu jeito de fazer as coisas, não existe um dogma, uma liturgia única, isso não está escrito”, afirma Flávia.
O vodou não é formalizado por um livro com regras e dogmas, como a Bíblia, por exemplo. As práticas foram passadas principalmente de forma oral. Logo, dentro do Haiti, existem diversas formas de praticar o vodou.
Dentro delas, o sincretismo com o catolicismo é muito presente e não é considerado uma perda ou problema. Ele surgiu com os povos escravizados que conheciam a religião e a necessidade de disfarces para evitar repressões. É comum o uso de rezas católicas nas cerimônias ou de santos representando os Lwa. Existem, inclusive, sacerdotes que transitam entre as religiões.
Segundo Armstrong, uma das bases do vodou é a incorporação do outro. “Quando eu incorporo essa diversidade, isso me acrescenta. É a lógica ocidental colonial que diz que a diversidade me diminui, pelo aspecto da pureza”. O vodou não tem intenção de ser uma religião “pura”, ele é feito por vários povos, com influência diversas.
Está na vida, na cultura, no cotidiano
Religião não é suficiente para definir o que o vodou representa. No ocidente, a religião é lida como um esfera separada da “vida mundana”, com espaço e momento específico para ser celebrada. O vodou transcende esse conceito.
Eduardo considera que “não dá para separar a sua vida de maneira tão sistemática”. O vodou aparece de diversas formas dentro do cotidiano, principalmente no Haiti. Está presente na visão de mundo, na espiritualidade e dentro da família, independente de ser vodouizante ou não.
O vodou acaba se tornando um termo amplo, que varia de pessoa para pessoa. Alguns vão considerar um banho de ervas curativo como uma prática vodou, outros como um tratamento alternativo. Muitos cristãos não vêem problema em buscar serviços do vodou para resolver alguma questão, alguns deles nem consideram isso como vodou. Além de que muitos ritos do vodou são praticados de forma doméstica.
Segundo Eduardo, os espíritos estão presentes no cotidiano, eles têm agência e existência. O mundo deles e o nosso estão em continuidade, um influencia o outro a todo momento. “Isso tudo muda a sua vida e a sua maneira de pensar. É viver dentro de uma realidade mais ampla e mais rica”.
O serviço aos espíritos é essencial e não é uma prática limitada pela religião da pessoa. Tanto alguém voudouzante como alguém cristão podem “servir aos espíritos”, Flávia explica.
O vodou, dessa forma, influencia toda a cultura, relações familiares, relações com a terra, história e política haitianas. Porém, sua institucionalização serve para garantir reconhecimento e direitos políticos para algo que até hoje é visto como um culto a demônios e rituais malignos, principalmente por parte de Igrejas protestantes e neopentecostais dentro e fora do Haiti.
A variedade de práticas do vodou é ainda maior nos países para onde ele se expandiu. Eduardo diz que “não dá para fazer o vodou haitinano no Brasil igual se faz no Haiti. Não é idêntico e não é para ser idêntico”. A aproximação com os espíritos acontece de formas diferentes e por razões diferentes, além de existirem outras variações nas práticas.
Existem vodouizantes que são contra a presença de estrangeiros no vodou haitiano, para proteger suas tradições e cultura. Assim como existem Ounfós com restrições próprias sobre quem eles aceitam. Mas, no geral, nada impede alguém de estudar e se inserir nas práticas do vodou, desde que feito com respeito e responsabilidade.
É essencial reconhecer que o vodou é uma forma de resistência negra, um modo de enxergar e existir no mundo, uma ligação com espíritos e ancestrais. Parte de uma história e cultura riquíssimas.
Voodoo x hoodoo x vodu x vodou
Voodoo: é uma forma de escrita muito utilizada nos Estados Unidos. É associada aos estereótipos criados pela mídia estadunidense, por isso, pode ser considerada ofensiva.
Hoodoo: além de enfrentar a mesma problemática do anterior, com o uso associado a estereótipos, o termo se refere às práticas de magia popular, que não necessariamente se associam à religião.
Vodu: é a forma escrita mais comum a ser utilizada no Brasil, já que é adaptada ao português. É uma grafia muito próxima ao termo original.
Vodou: é a forma de escrita em créole haitiano, língua oficial do país. Esta reportagem se refere ao vodou que surge e é praticado no Haiti, portanto essa é a grafia utilizada ao longo do texto.