Uma história de luta e resistência

Por Isabella Oliveira e Rosiane Lopes

Mesmo sendo um país com cultura diversa e muita força histórica, marcado por uma das revoluções mais importantes da América Latina, o Haiti sofre com um processo de apagamento de suas manifestações culturais e potencialidades, fruto da imagem formada na percepção internacional ligada apenas ao empobrecimento, à movimentação política e à violência do país. 

A Babel traz um panorama sobre as origens dessas lutas históricas e o que levou ao apagamento e marginalização do Haiti.

Impulso de liberdade e a luta negra

Durante a colonização francesa (1630-1804), a sociedade de São Domingos contava com quatro estratos sociais: os grandes brancos, donos de amplas propriedades e envolvidos no tráfico negreiro; os pequenos brancos, pessoas que trabalhavam na cidade, mas não possuíam grandes propriedades; os negros e negras livres, filhos de brancos com negros; e a grande população de escravizados. 

É essa população negra a responsável pelo processo revolucionário haitiano,  entre 1791 e 1804. Dois anos antes desse período, no contexto da Revolução Francesa, já existia a luta de negros livres, mas com outro objetivo: o direito de voto e de participação na Assembleia Nacional na França. 

Bethania Pereira, historiadora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) explica que a Revolução Haitiana pode ser dividida em dois momentos.  No primeiro, de 1791 a 1793, iniciou-se de fato a luta pela abolição da escravatura. Em agosto do primeiro ano, uma cerimônia vodu, liderada pelo sacerdote Dutty Boukman, marca o início da revolta de negras e negros escravizados na busca por liberdade. Dias depois do evento, o processo de destruição das plantações e morte dos escravagistas começou na região norte de São Domingos. 

Ainda em 1791, Boukman foi capturado e morto. Decapitado, o sacerdote teve a cabeça exibida à população como uma forma de lição aos revoltosos. Não adiantou. Dias depois do assassinato, as lutas e levantes continuaram a acontecer e novos líderes passaram a se destacar, entre eles o grande líder militar Toussaint L’ouverture.

A cada plantation destruída, o número de escravizados livres aumentava e as tentativas dos brancos para enfrentar a população negra eram fracassadas. Nas regiões Sul e Oeste, as revoltas eram lideradas pelos negros livres, impedidos pela população branca de exercerem o direito de voto nas Assembleias Coloniais. 

Contrariados com a situação, formou-se um grupo de monarquistas e anti-revolucionários na região. Representantes do governo francês começaram a negociar a liberdade de pequenos grupos de negros, desde que lutassem contra aqueles que se opunham à Revolução Francesa, numa tentativa de reestabelecer o controle sob a colônia.

Com a invasão de espanhois e britânicos, os comissários franceses foram forçados a abolir a escravidão em 1793, como uma forma de obter apoio dos negros libertos na luta contra Inglaterra e Espanha. 

O segundo período da Revolução, de 1794 a 1804, foi marcado pela luta contra os britânicos,  Napoleão Bonaparte e o retorno da escravidão.

Depois de derrotar os ingleses, Toussaint L’ouverture tornou-se governador-geral de São Domingos, em 1801. Como governador, adotou uma Constituição que dava à região significativa autonomia em relação à França, além de proibir a escravidão e proclamar igualdade a todos os habitantes da ilha. 

“Napoleão tinha uma postura de querer restabelecer a escravidão”, diz Bethania. Por isso, em 1802, Bonaparte manda prender Toussaint L’ouverture, que é levado à França onde acaba morrendo. Com a morte de Toussaint, Jean-Jacques Dessalines assume a liderança e expulsa os franceses que estavam na região a mando do cônsul francês. 

Em primeiro de janeiro de 1804, Jean-Jacques Dessalines declarou a independência de São Domingos e renomeou a ilha: Haiti. Foi neste momento que se oficializou a primeira nação independente da América Latina, governada por negros e viabilizada pela força e pelo desejo de liberdade de uma população escravizada. 

Depois da independência

O clima após a independência era de desconfiança. O colonialismo havia sido derrotado, mas floresceu uma nova divisão racial interna. Após a Revolução, os mulatos assumiram o poder na ilha enquanto os ex-escravizados negros continuaram a trabalhar nas plantações. Além disso, surgiram suspeitas em relação aos estrangeiros que permaneceram no país, o que culminou no massacre da população branca francesa entre janeiro e março de 1804.

O próximo passo era receber o reconhecimento das demais nações. No entanto, esse processo foi demorado, já que as potências europeias receavam que isso afetasse seus interesses políticos e econômicos ao incentivar outras colônias a lutarem por liberdade. Apenas em 1824 a França reconheceu a independência do Haiti.

Em 1805, foi  aprovada a primeira Constituição pós-revolucionária do Haiti. Entre os artigos presentes no texto, estava a determinação de que nenhuma pessoa branca poderia ingressar no território na qualidade de senhor ou proprietário, nem poderia no futuro adquirir propriedade alguma, exceto poloneses, alemães e mulheres brancas naturalizadas pelo governo. Esse artigo foi revogado na Constituição de 1918 para atender aos interesses do governo dos Estados Unidos que viriam a ocupar a ilha.

“Art. 12. Nenhuma pessoa branca, qualquer que seja sua nacionalidade, poderá ingressar neste território na qualidade de senhor ou proprietário, nem poderá no futuro adquirir propriedade alguma.”

Constituição Haitiana de 1805

Em 1825, o monarca francês Carlos X impôs o pagamento de uma indenização no valor de 150 milhões de francos para reconhecer a independência do país e ressarcir a perda das propriedades francesas. Ele também ameaçou invadir a ilha, caso a compensação não fosse paga. Por conta dessa situação, o Haiti desenvolveu uma grande dependência econômica com a França e teve que pedir empréstimos, inclusive a bancos franceses, para saldar a dívida. 

Segundo uma série de reportagens publicadas em 2022 pelo jornal The New York Times, os valores pagos pelo Haiti à França “custaram ao desenvolvimento econômico do país entre US$ 21 bilhões e US$ 115 bilhões de dólares de prejuízo em dois séculos, ou entre uma e oito vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Haiti em 2020”. 

Em 1915, o general Jean Vilbrun Guillaume Sam assumiu o comando da ilha apoiado por sua milícia privada. O militar temia perder o poder recém conquistado, então mandou prender dezenas de pessoas e deu ordem para que fossem executadas, caso algo acontecesse a ele. Pouco tempo depois, o general foi atacado, se escondeu na Embaixada Francesa e ordenou que os presos fossem assassinados. Isso gerou enorme insatisfação na população, que encontrou o esconderijo de  Guillaume Sam e o linchou.

Diante desse cenário, diplomatas estrangeiros argumentaram a urgência de uma intervenção externa no Haiti. A Casa Branca, que já tinha interesse em ocupar a região de Môle-Saint-Nicolas para impedir o acesso irrestrito de países europeus ao Canal do Panamá, abraçou a oportunidade sob justificativa humanitária. 

A invasão

Em julho de 1915, tropas dos fuzileiros navais dos EUA, conhecidos como marines, invadiram o Haiti e tomaram o poder. O governo norte-americano passou a administrar os principais setores do país, como as forças armadas, finanças, infraestrutura, alfândega e saúde pública. 

Os marines controlavam as províncias com poder de polícia e treinaram a força militar Gendarmerie d’Haïti, composta por haitianos e americanos, com o propósito de  conter revoltas populares contra a ocupação. 

Quando os Estados Unidos invadiram a ilha, eles também mantiveram até certo ponto os poderes da elite mulata. No entanto, quando os parlamentares haitianos não aprovaram a nova Constituição elaborada pelos EUA, houve um endurecimento das relações. “Dentre os diversos efeitos nefastos da ocupação, destaca-se a pilhagem sofrida pelo Banco Central Haitiano e a alteração da Constituição do país, que passou a autorizar a aquisição de terras por estrangeiros”, afirma Tadeu Morato Maciel, professor e pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa e Segurança da Universidade Federal Fluminense.

O período da ocupação foi marcado pelo racismo e abuso por parte dos marines. Essa atmosfera de violência fortaleceu movimentos nacionalistas, anti-imperialistas e de guerrilha, como o grupo liderado por Charlemagne Péralt, pequeno proprietário e oficial  do antigo exército haitiano. 

A ocupação chegou ao fim em 1934, quando os Estados Unidos transferiram o poder militar para a guarda nacional haitiana.

O Haiti pós ocupação

Entre 1934 e 1956, o Haiti teve uma série de governos instáveis.. Em 1957, o médico François Duvalier, também chamado de Papa Doc, venceu a disputa presidencial. 

A gestão de Papa Doc foi caracterizada pela centralização de poder, execuções, perseguições e prisões de opositores. Para pôr suas ordens em prática, o presidente se aliou à Milícia de Voluntários da Segurança Nacional (Tonton Macoute), reconhecida por perseguir qualquer pessoa que disseminasse ideias democráticas. 

Em 1961, Papa Doc dissolveu a Assembleia Nacional e três anos depois se declarou presidente vitalício do Haiti. Durante os 14 anos de governo duvalierista, muitas pessoas deixaram o Haiti por conta da violência, principalmente a parcela da população com melhores condições econômicas e maior nível de escolaridade. 

Quando François Duvalier morreu em 1971, seu filho Jean-Claude Duvalier, ocupou a presidência. Apelidado de Baby Doc, Jean-Claude continuou a administrar o país de maneira repressiva. 

Baby Doc abandonou o Haiti em 1986 devido ao aumento da insatisfação e da violência popular. Logo, as Gendarmerie d’Haïti assumiram o poder e juntas militares passaram a governar. Entre 1986 e 1989, a ilha viveu um período de grande instabilidade política até a realização de eleições presidenciais em 1990. 

Em fevereiro de 1991, Jean Bertrand Aristide chegou à presidência. No mesmo ano, foi alvo de um golpe liderado pelo militar Raoul Cédras e encaminhado ao exílio. Nas semanas seguintes, centenas de pessoas foram perseguidas e assassinadas pelo novo regime, principalmente os apoiadores do presidente. 

Em 1993, o Conselho de Segurança da ONU interrompeu o repasse de ajuda humanitária e enviou observadores ao país. A suspensão da ajuda forçou Cédras a negociar com o governo Aristide, que foi restituído ao poder. No momento em que a ajuda internacional voltou a chegar, os ataques também recomeçaram. No mesmo ano, teve início a Missão das Nações Unidas no Haiti (UNMIH), com o intuito de recolocar Aristide no poder.

Dois anos depois, René Préval, ex-ministro da gestão Aristide, ganhou o pleito presidencial. Em 1996, a ONU enviou outra missão de paz à ilha, nomeada de Missão de Suporte das Nações Unidas no Haiti (UNSMIH), com o objetivo de promover a reconciliação nacional e reabilitar economicamente o país.

Em 2001, Jean Bertrand Aristide retornou ao poder para um mandato marcado pelo caos político, fraudes eleitorais e repressão. Em 2004, ele sofreu outro golpe de Estado e deixou o país. No seu lugar assumiu Boniface Alexandre, presidente da Suprema Corte Haitiana, que solicitou auxílio à ONU. Em um primeiro momento, a organização estabeleceu uma força multinacional de paz provisória que prepararia a ilha para a chegada da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), que permaneceria no país até 2017.

O núcleo da MINUSTAH era composto pelo Core Group, constituído por Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Estados Unidos e França. De acordo com o Ministério da Defesa do Brasil, 37.449 militares brasileiros participaram da missão.

A MINUSTAH deveria ter sido encerrada em 2008, mas o terremoto de 2010 estendeu a missão, pois o país estava em situação de grande instabilidade e precisaria ser em boa parte reconstruído. O tremor de 7.3 graus na escala Richter causou a morte de aproximadamente 230 mil pessoas e deixou mais de um milhão de desabrigados. 

Desde o começo a MINUSTAH foi alvo de críticas, especialmente por haitianos que já haviam vivido sob intervenção estrangeira. Diversos capacetes azuis, como eram conhecidos os soldados da missão, foram denunciados por abuso e estupro.

“A ‘assistência’ oferecida pela comunidade internacional predominantemente se baseia no uso da força, refletindo uma abordagem colonialista e racista que ainda não reconhece o povo haitiano como protagonista de seu próprio destino. Destaca-se a falta de compreensão do contexto local e das dinâmicas de poder que moldam a sociedade haitiana.”

Tadeu Maciel

Bethania ressalta que o Haiti não deve ser visto como um país sofredor: “a cultura haitiana está muito além da narrativa de pobreza e de sofrimento”. A rica cultura do Haiti é formada pela mistura de elementos taínos, africanos, franceses e espanhóis, que são expressados na culinária, na música, literatura, religião e costumes de sua população. Munidos de uma memória histórica que não se apaga no presente, é possível observar o passado nas diversas manifestações culturais do país.