No dia 12 de novembro de 2022, o Estádio Monumental David Arellano, em Santiago (Chile), recebeu 47 mil pessoas em seu campo e arquibancadas. O público se diferenciava por cores, que referenciavam as paixões de cada um. Grupos organizados entoavam canções que, mesmo em outra língua, eram conhecidas do início ao fim. Era grande a expectativa por aquele que prometia ser o espetáculo de suas vidas.
O cenário parece uma das tantas partidas de futebol que o Estádio Monumental – casa do Colo-Colo, um gigante do futebol chileno – está acostumado a receber. Houve show, mas com estrelas de outra constelação. A arena foi palco do Music Bank, festival de K-pop que recebeu seis grupos de fama efervescente: NCT Dream, THE BOYZ, (G)_IDLE, ATEEZ, TXT e StayC.
Tudo certo, só que não. Problemas na produção e o mau tempo fizeram o festival ser cancelado no meio das apresentações da noite. Mas os K-poppers, nome dado aos aficionados do gênero, ainda viram no evento um espaço seguro para expressarem seu apoio aos artistas sul-coreanos. Entre elas, a brasileira Camila Monteiro, de 33 anos, que voou de Pelotas (RS) para Santiago. Frustração? “Mesmo que a experiência tenha sido triste pra muita gente, foi bom estar em um espaço onde todos estão juntos, com suas luzinhas na mão. Traz um grande senso de comunidade”, diz. “Ser K-popper não se trata apenas de conhecer um grupo, mas de entrar em contato com uma cultura totalmente diferente.”.
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Camila pode ser considerada uma exceção de acordo com as estatísticas. A maioria dos fãs de K-pop é mulher, mas adolescente ou jovem adulta. Em 2020, o Spotify apontou que cerca de 53% dos fãs do gênero possuem idade entre 18 e 24 anos. Mas esse dado não parece impor um limite para quem se interessa (ou é esperado que se interesse) pelo K-pop. Na plataforma, os streams do gênero aumentaram 230% no mundo desde 2018.
O que pode ser visto como constrangedor por alguns – aqueles que limitam a figura da fã em idade, aparência e localização –, ganha novas nuances quando se trata de K-pop, um estilo musical asiático (alô, xenofobia) venerado por um fandom quase exclusivamente feminino (alguém pensou em machismo?).
Essas barreiras podem parecer gigantes, mas o amor de fã – seja de ídolos pop ou de jogadores de futebol – as derruba com destreza. E Camila é apenas uma entre tantas que levantam a bandeira em defesa das k-poppers meninas e mulheres.
Um tsunami do leste asiático
O K-pop é um dos elementos de destaque da Hallyu, ou Onda Coreana – nome dado à popularização e influência da cultura sul-coreana no contexto asiático e mundial.
Daniela Mazur, pesquisadora da UFF (Universidade Federal Fluminense), explica que o K-pop atrai paixão e engajamento dos fãs de todo o mundo pelo conteúdo de qualidade produzido. E é necessário deixar isso claro porque esse tipo de consumo não acontece sem base, uma vez que é preciso ter qualidade para desenvolver um vínculo com os consumidores ao ponto de eles virarem fãs.
“O universo do K-pop enquanto indústria é muito criativo e ativo. Ele apresenta novas opções, grupos, apresentações, programas e produtos com assiduidade, alimentando assim os fandoms como poucas indústrias no mundo conseguem fazer”, diz.
Segundo a integrante do MidiÁsia (Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Asiática Contemporânea), outro elemento que merece destaque é o fato de a Hallyu ser um fenômeno racializado e étnico, que apresenta vivências asiáticas amarelas e sul-coreanas, assim como é não-ocidental e a anos-luz de distância da língua inglesa. “Por esses motivos, para os fãs internacionais, a experiência de consumo desse universo pop demanda o reconhecimento e o entendimento desse cenário mercadológico e cultural”.
Paixão sem limite de idade, espaço e tempo de duração
A analista de marketing Thais Lima, de 28 anos, é K-popper desde 2016 e também atravessou o continente – saindo do Rio de Janeiro (RJ) – com o objetivo de ir ao Music Bank e ver o THE BOYZ ao vivo. Essa foi a segunda vez em que foi ao país para ver um show de K-pop. “Em 2019, fui ao Chile ver o GOT7. Eles são meu grupo favorito”, conta.
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Assim como Camila, Thais investe tempo e dinheiro não apenas em viagens e no consumo das músicas e do conteúdo que os seus grupos do coração postam nas redes sociais. As duas também são collectors – colecionam os photocards (cartões de foto) de seus integrantes favoritos, encontrados nos álbuns físicos lançados pelos grupos. O esquema é o mesmo de uma coleção de figurinhas, com os grupos de troca e venda, a procura por photocards considerados raros e a expectativa de comprar o álbum sem saber com qual photocard será premiado.
Mesmo acompanhando o gênero há certo tempo, Thaís criou um Instagram para falar sobre o assunto apenas em 2021, no qual compartilha suas coleções, os shows que vê e os lançamentos de seus grupos do coração. Entre as inseguranças que adiaram essa decisão, estava a visão, por parte de algumas pessoas, de ser “apenas uma fase”, ou estar velha demais para gostar de K-pop.
Para Camila, o machismo em relação às meninas, principalmente adolescentes, tenta transformar tudo o que gostam em uma bobagem. Os gostos dos meninos, porém, são vistos como investimentos. ‘Uma camiseta de clube de futebol é muito mais cara que um disco de K-pop, mas um disco ou um show é uma bobagem. Um jogo de futebol, que inclusive pode ser horrível para o torcedor, não é visto assim”. Mas ela não se abala: em seu Instagram pessoal, posta fotos, vídeos e stories quase diariamente sobre o que anda consumindo no mundo do K-pop.
Daniela Mazur explica que as associações de mulheres a objetos de paixão em seus próprios termos sempre foram vistas como negativas. A demonstração de interesse e dedicação das mulheres por produtos culturais que as representam é vista como algo a ser contido, e então são rotuladas como “exageradas”, “emocionais” ou “infantilizadas”.
Isso se reflete na lógica entre homens que são fãs de futebol ou até mesmo de séries televisivas e filmes: esses produtos culturais, eventos e obras que apelam a um público masculino são vistos como valorizados e mais “complexos”. “Para o público feminino, por sua vez, o efeito é o contrário”, diz.
Camila pontua outra questão a ser encarada quando se fala sobre ser fã de K-pop: a xenofobia. Muitos ainda enxergam os artistas como impossíveis de serem diferenciados e entendidos, colocando-os como “exóticos” ou “incomuns”. Daniela descreve que esse é um preconceito inerente ao orientalismo, ou seja, a representação estereotipada, por parte do Ocidente, de aspectos das culturas que não fazem parte dessa região.
A pesquisadora explica que produções desenvolvidas por países de fora do centro global (Estados Unidos e Europa Ocidental), especialmente asiáticos, são vistas por lentes orientalistas que exotizam, reduzem a estereótipos e desvalorizam esses produtos. Tal ignorância e preconceito permeiam o contato com o K-pop e afastam potenciais interessados nessa indústria.
Mesmo com essas barreiras, Daniela vê o K-Pop e a Hallyu em constante crescimento. “Essa indústria não é mais um simples fenômeno com data de duração no cenário global”, diz. E para as fãs, o desejo é que essa comunidade possa crescer cada vez mais. “Se as pessoas perdessem um pouquinho desse preconceito, com certeza descobrirão alguma coisa que gostam nas produções asiáticas, não só em K-pop,” finaliza Thais.