Hemorragia, saudades e boas histórias: o diário de bordo dos comissários de voo

[Imagem: Acervo Pessoal]

Por Camila Paim e Edson Junior

Sejam bem-vindos a bordo. O comandante e sua tripulação desejam a todos uma boa viagem”. 

Com certa liberdade poética, essa fala é o sonho de muitas pessoas. Ela remete à elegância e classe associadas à profissão de comissário de bordo. Como não lembrar do famoso clipe de Toxic, da Britney Spears, em que ela vive aventuras dentro de uma aeronave? 

britney spears em avião aeromoça
Britney Spears atuando como aeromoça [Imagem: Reprodução]
Trabalhar em um avião é uma oportunidade para conhecer diversos lugares do Brasil e do mundo. Mas atenção, passageiros: a glamourização não existe na prática. Os padrões de comportamento exigidos pelas companhias são altos, as viagens trazem malefícios para a saúde física e emocional e as dificuldades financeiras para a profissionalização são um empecilho para muitos. Embora, claro, o livro de memórias esteja cheio de histórias saborosas.

Antes de falarmos das turbulências, vamos carimbar o passaporte e pôr o avião para voar.

Check-in

Quem deseja ser comissário de bordo – tecnicamente, não existe aeromoça ou aeromoço – precisa ralar. Foi com a expectativa de viver na finesse que Jivarlos Cruz, de João Pessoa, Paraíba, começou a se preparar para ser comissário. Ele largou a computação e fez de tudo para ter experiência com atendimento a pessoas para incrementar seu currículo: entrou na faculdade de Letras-Inglês, participou de projetos sociais e começou a rodar como Uber. 

Jivarlos em frente a avião
Jivarlos largou seu emprego na área da computação para se preparar para ser comissário [Imagem: Acervo Pessoal]
A seguir veio a prova da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), etapa obrigatória para trabalhar como comissário em companhias aéreas brasileiras. O exame é constituído de perguntas objetivas sobre os temas: emergência; sobrevivência e segurança; primeiros socorros e saúde; e regulamentação da profissão de aeronauta e conhecimentos gerais de aeronaves. 

Quem é aprovado, como Jivarlos, já está pronto para apertar os cintos.

Decolagem 

Comissário na Emirates Airlines, o pernambucano Rafael Moreira se sentiu realizado após as primeiras viagens internacionais. Ele lembra com carinho da primeira vez que foi para a Grécia e visitou locais que só via nos livros de história, como a Acrópoles em Atenas.

Bruna Guedes, de Ponta Grossa, Paraná, voou por mais de dois anos na Qatar Airways, parando em 2019, e também descreve como uma experiência de crescimento pessoal e profissional, graças ao contato com tantas culturas. 

Que os passageiros devem chegar no aeroporto com bastante antecedência ao horário dos voos, muitos já sabem. Mas isso também se passa com os funcionários. Antes de cada viagem, existem reuniões pré-voo, nas quais são apresentadas a lista de passageiros, quantidade de crianças, se serão necessárias comidas especiais, entre outras informações.

E se o passageiro for “classe A”, o tratamento é ainda mais personalizado, com pedidos de comida e bebida reservados antes da viagem. Uma experiência de cinco estrelas. 

Em seu portfólio, Bruna lista algumas personalidades que já voaram com ela: o time do Liverpool completo, a presidente do Nepal, Bidhya Devi Bhandari, e vários membros da família real do Qatar. 

 

Mau tempo 

O frio na barriga enquanto o avião atravessa uma zona de turbulência é único. Devido à variação de altura e pressão, pode acontecer do nosso corpo não reagir bem a viagens de avião. 

A pressurização da cabine permite que o avião consiga manter as condições ideais mesmo em elevadas altitudes. No entanto, para os passageiros a sensação é de inchaço no corpo. 

Para os comissários, a rotina intensa de voos em um curto período de tempo prejudica o funcionamento de seus órgãos – que após dois anos de profissão não podem mais ser doados, por exemplo. Em determinado momento, Rafael desabafa que a sensação era de estar realmente doente. 

Ele explica que “o efeito de tudo lá em cima é duplicado e, às vezes, triplicado. Até uma dose de álcool: se você tomar qualquer bebida alcoólica nos céus, você vai ter três ou quatro vezes mais efeito que aqui no chão.”

As consequências físicas não são as únicas. Os destinos começam a perder a magia inicial: “Eu devo ter ido para Paris umas 200 vezes. Então, eu passei a chegar lá com a sensação de ‘ainda bem, vou poder dormir’”, comenta. 

E a saudade da família e amigos começa a apertar, ainda mais para quem trabalha em companhias internacionais, caso de Rafael e Bruna. São muitos meses sem ver os conhecidos para, quanto têm a chance, o tempo para ficar próximo deles é pequeno. Mesmo em companhias nacionais, Jivarlos também sente falta de casa e de comemorar as datas festivas com familiares.

Lucas Ramos, de Guaratinguetá, São Paulo, trabalhou na companhia internacional Etihad Airways entre 2013 e 2019. Para ele, os lados negativos pesam menos. Ele não sente tanta falta da família e sente prazer em revisitar os mesmos países várias vezes, criando uma rotina em cada um deles. Vindo de uma família de militares, ele justifica que teve uma criação mais independente e com menos apego físico.

 

Espaços aéreos também enfrentam zonas de instabilidade quando o assunto é diversidade, com uma baixa presença de profissionais negros. Apenas 5% de tripulantes em voos de companhias aéreas brasileiras, nos mais diversos cargos, são negros, segundo levantamento do Quilombo Aéreo, coletivo antirracista na Aviação Civil Brasileira. 

Ainda de acordo com a pesquisa, entre os pilotos, apenas 3% são negros, sem contar com nenhuma pilota negra na aviação civil comercial brasileira.

Jivarlos é fundador do Quilombo Aéreo. Enquanto homem negro, sente os efeitos do racismo estrutural na pele desde que começou na aviação. Ele precisou cortar seu black power, que não se encaixava nos padrões exigidos. Conversando com outros comissários negros, ele percebeu que compartilhavam das mesmas dificuldades e assim nasceu o coletivo. 

Com o avanço do movimento – incluindo um edital com recursos para a formação de dez pretos de periferia como comissários de voo – , as companhias brasileiras liberaram o uso de black power e tranças. 

Quem viaja, conta história

Entre as decolagens e pousos, o que não falta para os comissários são histórias para contar. Em seus 6 anos de comissário, Lucas acumulou tantas que começou uma conta no TikTok. No perfil, ele conta suas aventuras e esclarece alguns mitos aéreos, com doses de humor.

Rafael se recorda bem de uma vez em que um grupo de norte-coreanos que estavam saindo da China embarcaram. De acordo com ele, todos eram muito animados e educados, mas uma situação não lhe passou batida: um deles usava uma camiseta do Mickey Mouse. Ele estranhou, pois não esperava o personagem americano no guarda-roupa deles. Quando questionado sobre isso, o passageiro afirmou que o roedor da Disney era uma criação da Coreia do Norte, e não aceitou nenhuma opinião contrária. 

O pernambucano também experienciou um voo com pouso de emergência antes do destino, enquanto uma passageira tinha uma parada cardíaca, e quase vivenciou uma aterrissagem de barriga – ou seja, raspando a parte inferior do avião diretamente na pista do aeroporto – devido a uma falha no trem de pouso. 

Para Bruna, uma história que lhe chocou foi com uma passageira chinesa que retornava de Londres para seu país natal e teve uma hemorragia. Procurando entender o problema, os comissários perguntaram se ela estava com algum problema de saúde recentemente e ela confidenciou ter feito um aborto dois dias antes. Bruna e o resto da equipe acreditam que, por conta do controle de natalidade chinês, ela optou por sair do seu país para realizar o procedimento na Inglaterra. “É muito difícil se conter nessas situações porque, quando estamos no uniforme de comissários, não podemos demonstrar sentimentos de maneira física, como dar um abraço.” 

“Navegar é preciso, viver não é preciso.” 

A citação que, há muito tempo, está popularmente associada ao poeta Fernando Pessoa, – e entretanto é de Pompeu, antigo general romano – parece ser levada quase ao pé da letra por comissários de bordo.

Para Bruna, o plano inicial era trabalhar como comissária por apenas dois anos. Ela acabou ficando por mais alguns meses e só se desligou da Qatar Airways no final de 2019. Seu objetivo era completar o curso superior em administração e depois voltar a voar. Com a redução do quadro de funcionários das companhias após a pandemia, isso está levando mais tempo do que o esperado.

Lucas também não esperava que fosse encontrar empecilhos para o regresso. “Eles voltaram a contratar recentemente e estou participando de processos seletivos. Se me chamarem para qualquer lugar, seja no Brasil ou fora, eu vou.” Enquanto isso, seu perfil no TikTok tem feito cada vez mais sucesso e atualmente a internet é sua principal fonte de renda. 

Rafael com a filha Sofia e marido (1)
Rafael com a filha Sofia e o marido [Imagem: Acervo Pessoal]
Mas também existem aqueles que não pensam mais em voltar para os céus. Pode-se dizer que Rafael aterrissou de vez: desde que saiu da Emirates, construiu uma carreira como professor de inglês com cursos e aulas on-line, casou e recentemente a família cresceu, com a filha Sofia, de 5 meses. “Nunca tinha sido o meu sonho [ser comissário de bordo], eu queria viajar o mundo e ganhar dinheiro. Quando já tinha feito isso, podia voltar”, ele conta, enquanto coloca Sofia para dormir em seu colo.