Uma jovem filipina de 22 anos estava cansada de carregar o computador sempre que tivesse vontade de assistir a seus filmes preferidos. Para ela, a solução foi conferir ao TikTok uma nova função: criar uma conta na qual pudesse publicar filmes na íntegra e assisti-los pelo celular, sempre que desejasse. Foi assim que nasceu o perfil @lluv.barbie que, para além da praticidade, rendeu 392 mil seguidores e mais de 6,3 milhões de curtidas à filipina.
É ilegal? Sim. O app não nasceu para vídeos curtos? Também é verdade. Mas, ao menos para parte da geração Z – a turma que nasceu entre a virada do milênio e 2010 – o TikTok parece ter surgido como uma solução para a indecisão do que assistir nos streamings – ou mesmo de quais tornar-se cliente. O que a criadora de @lluv.barbie pensou nas Filipinas já é uma tendência entre usuários da plataforma nos mais variados países, incluindo o Brasil.
A prática, na verdade, nada mais é do que pirataria. Para ter acesso a ela no aplicativo, não é preciso ir longe. Uma rápida busca na ferramenta por palavras-chave como “filme completo” ou “episódio” já fornece inúmeros conteúdos audiovisuais difundidos ilegalmente, incluindo animações, episódios de realities shows e videocasts.
Mas há outras dimensões envolvidas: o desenvolvimento de um novo nicho de negócios, a crescente insatisfação dos geradores de conteúdo original com as cópias não autorizadas, e o comportamento, entre o adaptado e o indignado, das grandes marcas que veem suas marcas replicadas.

Há uma série de truques que entram em cena. Para se adequar ao tempo máximo de uma hora permitido em uploads de vídeos no TikTok, os usuários que publicam os conteúdos adotam algumas estratégias, como acelerar a velocidade do arquivo original ou, ainda, dividi-lo em diferentes publicações. O resultado são filmes e séries postados em “1.5x”, “2x” e até “3x” e, por vezes, em dezenas de partes.
Para melhorar a experiência de consumo do conteúdo, as publicações geralmente acompanham instruções. Nas legendas ou acima dos próprios vídeos, os perfis sugerem que o espectador diminua a velocidade – para que ela volte ao ritmo natural –, coloque o celular na horizontal e “tire uma pausa e relaxe”.
E a audiência incorpora o seu próprio jeitinho de aproveitar. Do outro lado da tela, os usuários que se deparam com os vídeos em seu feed também empregam estratégias para consumir os conteúdos. É comum que comentem a minutagem exata em que pararam de assistir ou que peçam para que outras pessoas curtam o comentário e, assim, fique mais fácil de reencontrar o filme posteriormente.
Para @lluv.barbie, a interação através dos comentários é muito positiva e reconfortante. “Alguns seguidores param para me mandar mensagens de agradecimento, dizendo o quanto apreciam os vídeos postados porque sentem que a infância deles voltou. Alguns perguntam sobre meu filme favorito da Barbie, e outros respondem também. É como se uma comunidade tivesse sido criada por meio dos filmes postados”.

A opção de publicar vídeos de até uma hora foi o que possibilitou com que a criadora do perfil @lluv.barbie “disponibilizasse” suas animações favoritas. “Eu só quero maximizar o uso do TikTok. Eu postei os filmes completos por conveniência, não só para mim, mas para qualquer um interessado em assisti-los também”.
Como nos bons tempos…
A escolha do nome do perfil não foi à toa. Fã dos filmes da Barbie, a filipina começou na plataforma publicando os longas da personagem da Mattel, que se popularizaram durante as décadas de 2000 e 2010 entre o público infantil.
“Minha intenção era postar apenas os filmes da Barbie, já que eles são meus favoritos e eu tenho cópias deles, mas surgiram muitos pedidos para que eu também publicasse filmes da Tinker Bell, então comecei a fazer o upload deles também”.
Barbie e Tinker Bell são algumas das franquias pirateadas recorrentemente na plataforma. Produções da Disney e da Pixar são outras entre as mais comuns, e @lluv.barbie admite serem estas as que mais consome, além das suas próprias publicações. “Também assisto a clipes de comédias românticas e séries, como Game of Thrones, e Harry Potter”.
Os conteúdos audiovisuais direcionados ao público infantil e infantojuvenil são compartilhados aos montes e repetidamente. Filmes como Ratatouille, Coraline, A Noiva Cadáver e Shrek são postados de maneira constante, por perfis distintos. Até mesmo os vídeos são semelhantes, com thumbnails e frames iniciais idênticos, ainda que estejam publicados em contas diferentes.
E o apelo ao universo lúdico não é por acaso. Muitos usuários da plataforma parecem ter percebido o movimento nostálgico e o engajamento gerado por ele, e decidiram se aproveitar disso. De 30 perfis analisados pela reportagem entre setembro e novembro, 28 compartilham filmes animados e/ou cartoons.
Algumas das contas deixam explícita a intenção logo no nome, como “@desenhosantigoscompletos” e “@showdedesenhos_tv”. Outros apelam para a memória afetiva a partir de uma tentativa de reconstrução da programação da televisão aberta.
Um dos perfis, por exemplo, evidencia na descrição que posta “desenhos aos sábados”, enquanto outro relembra a grade da tevê dos anos 2000 com “um pouco de Bom Dia & Cia e TV Globinho”.
Eliseu Barreira Junior, especialista em gestão de negócios e de marketing e head de mídia e conteúdo do Grupo Globo, observa que nas redes sociais – e em especial no TikTok – ocorre um fenômeno relacionado a memórias afetivas de diferentes gerações. “Um conteúdo que volta à tona e que desperta uma base de usuários que já possuem uma relação afetiva com ele, ajuda a circular ainda mais [a obra]”.
É assim que obras antigas não ressurgem, e sim surgem, de acordo com Eliseu. Populações mais jovens, como a geração Z, estão descobrindo histórias que há muito já foram populares.
Um exemplo é o da minissérie Hilda Furacão que, após trechos viralizarem na rede social mundialmente, teve aumento de 347% no consumo dentro do Globoplay entre novembro de 2023 e janeiro deste ano.
“[As histórias] ressurgem, é verdade, porque elas já estavam ali disponíveis, já tinham sido gravadas, exibidas, revisadas e reprisadas, mas elas surgem pela primeira vez para muita gente. Mas estas histórias têm elementos que se conectam com o espírito do tempo, que se conectam com a curiosidade da geração que está ali consumindo”.
Só pela diversão?
A coisa virou negócio. Enquanto usuários como @lluv.barbie alegam que o senso de comunidade e o entretenimento são as maiores motivações, outros deixam clara a intenção de lucrar com a prática.
Acumulando mais de 2,7 milhões de curtidas, o perfil @claireclaire_111 se assemelha ao da filipina quanto ao conteúdo. Filmes de Barbie e Tinker Bell, além de outras franquias populares entre o público infantojuvenil, como Monster High e Descendentes, da Disney. Um detalhe, porém, chama a atenção. Nos stories, o criador do perfil divulga imagens vendendo arquivos de filmes completos a R$ 3 e até mesmo promoções de “vendas de drive” que chegam a R$ 15.

Outros usuários deixam explícita a vontade de monetizar os vídeos em publicações fixadas ou na própria descrição. É o caso da autora do @telinhaacine, que revela ter criado perfis no TikTok e no Kwai como tentativa de garantir uma renda extra.
Para a criadora do perfil, que é uma vendedora autônoma de 29 anos e natural do Paraná, publicar o que gosta de consumir nos tempos de lazer é consequência. “Sempre assisto antes algum filme ou série e depois posto um episódio para ver como meus seguidores vão reagir. Aí, se gostarem, posto mais conteúdos parecidos”.
O @telinhaacine se diferencia da maioria dos outros perfis do gênero na plataforma ao publicar somente produções audiovisuais focadas no público adulto. A paranaense revela que “estava cansada de ver sempre os mesmos vídeos de pessoas diferentes”.
Os vídeos que publica, em sua maioria episódios de comédias românticas, são divididos em até dez partes. Atualmente, a conta possui 4,5 mil seguidores e 52,1 mil curtidas. “Não consegui monetizar ainda, mas pretendo assim que conseguir bater 10k [dez mil seguidores]. Já pesquisei e não tem como monetizar antes disso, mas pretendo, sim, continuar até conseguir”.
A Revista Babel analisou, entre os meses de setembro e novembro, 30 perfis que publicam filmes e episódios completos de séries. Embora todos infrinjam direitos autorais, somente seis haviam sido banidos da plataforma até a publicação desta reportagem. O menor deles contabilizava 375 seguidores.
Já o maior, o perfil @goofuguffer0, contava com 325,6 mil seguidores e 2,8 milhões de curtidas quando foi excluído. No entanto, outro perfil com o mesmo nome de usuário (@teamkendrickw3) publicou os mesmos dois vídeos que constavam no primeiro: versões completas de O Mundo Estranho de Jack e Shrek. Na descrição da conta original, lia-se, em inglês, a frase “Apenas para fins educativos”.
Variação do número de seguidores nos meses de outubro e novembro. *Foram considerados os perfis que não foram excluídos e/ou que foi possível comparar a quantidade de seguidores durante o período.
Variação do número de curtidas nos meses de outubro e novembro. *Foram considerados os perfis que não foram excluídos e/ou que foi possível comparar a quantidade de curtidas durante o período.
Disputa por território
Foi no final de 2021 que os vídeos da jornalista Carol Fitzpatrick começaram a viralizar na plataforma. No caso dela, conteúdos originais, opiniões sobre produtos da cultura pop e assuntos do momento. Alguns chegaram a bater um milhão de visualizações, mas o engajamento não permaneceu muito tempo no mesmo patamar.
No início de 2023, a jornalista começou a notar que a recepção das postagens mudou. “Comecei a reparar que isso não aconteceu só comigo. Outros criadores de conteúdo – maiores do que eu, inclusive – estavam relatando a mesma coisa. Estava tendo muita queda no alcance dos vídeos, o TikTok não estava entregando. Em paralelo, comecei a notar o crescimento de conteúdos piratas”.
Carol se sente prejudicada, já que a prática vai contra as diretrizes do TikTok, mas os conteúdos continuam tendo espaço na plataforma. Para ela, é injusta e discrepante a forma com que a empresa lida com conteúdos originais e pirateados.

A jornalista relata que, por questões ideológicas, muitas lives e produções suas foram derrubadas. Os vídeos teriam caído após serem denunciados em massa por outros usuários, com acusações de conteúdo sexual explícito e nudez.
Por outro lado, perfis como @ddesenhos_animados, que acumula 468,5 mil seguidores e 3 milhões de curtidas e cuja última publicação foi um episódio completo dos Simpsons em 2022, continuam existindo no aplicativo.
Não só isso: o perfil, que se alimenta unicamente de séries famosas animadas, apareceu na ferramenta de busca com o selo de “Mais gostados” durante a produção da reportagem.
“Não tem como competir, né? Eu, uma jornalista desconhecida trans, falando aqui na minha casa, ou uma produção milionária, com estúdio, um milhão de gente trabalhando junto para fazer um desenho que é famoso, que é conhecido no mundo inteiro? A competição é desleal”.
Carol vê o TikTok como uma guerra por espaço. Uma competição coletiva pelo minuto de atenção cedido antes que o espectador role a tela. “A pessoa não entra no TikTok procurando alguma coisa específica, ela entra na For You e é uma busca meio passiva. ‘Quero ver o que tem hoje passando no TikTok’”.
A disputa por atenção fez com que a jornalista, que constantemente se posiciona na rede social, expusesse a opinião sobre os conteúdos pirateados publicamente. No vídeo, ela assume que se sente lesada enquanto criadora, mas faz a mea culpa: diz entender quem consome e assume que, no início, também foi atraída pela pirataria.
“Eu tô lá passando, aparece um desenho antigo que eu gostava muito, a nostalgia fala forte. ‘Nossa, não tava preparada para ver um episódio do Pequeno Urso hoje, mas apareceu, por que que eu não vou assistir? Só que enquanto eu tô assistindo, eu tô deixando de ver o conteúdo de algum criador independente”. A solução, para ela, é denunciar os perfis e pular os vídeos sempre que pode para que eles sejam evitados pelo seu algoritmo.
Como ficam as empresas na história
O combate à pirataria deve partir também das próprias empresas de redes sociais, de mídia e produtoras de conteúdo. Para Barreira Junior, que possui experiência com a área de visão estratégica de negócio de conteúdos de pirataria no Grupo Globo, a reprodução, por si só, não é danosa: depende da forma com que é realizada.
Ele separa os usuários que reproduzem obras audiovisuais às quais não são detentoras dos direitos autorais em dois grupos. “O primeiro é o pirata, que são aquelas pessoas que agem de má fé e se aproveitam daquele conteúdo para aumentar o número de seguidores e monetizá-lo sem ter o direito para isso”.
Já o segundo grupo é composto por fãs. Segundo o especialista em gestão de marketing, os fãs não têm a intenção de transmitirem integralmente as produções que admiram e, muitas vezes, nem mesmo planejam receber qualquer retorno financeiro.
Ainda que utilizem trechos das obras, as produções feitas por fãs geralmente envolvem edições e soluções criativas, gerando produtos como memes e edits, que são vistos de forma positiva pelas empresas.
O resultado, segundo Barreira Junior, é o movimento de uma comunidade que auxilia na disseminação do conteúdo de maneira orgânica e que precisa estar no radar das áreas de marketing das empresas de mídia.
“Quando as pessoas fazem isso, se tornam advogadas da marca, no sentido positivo. Se elas colocam a imaginação e o amor que sentem pelo conteúdo com o intuito de promovê-lo, aquilo não é um problema”.
Algumas corporações da comunicação parecem ter percebido o movimento e encontrado alternativas de entrar na onda. É o caso da Paramount que, para promover o musical Meninas Malvadas lançado neste ano, disponibilizou a versão de 2004 na íntegra no TikTok, em 3 de outubro de 2023.
A estratégia imitou a tendência dos conteúdos pirateados: o longa foi dividido em 23 partes e publicado na rede social, de maneira gratuita. Ele permaneceu no ar durante apenas 24 horas.
A Netflix Brasil também referenciou o assunto. Em sua conta oficial, publicou um vídeo em um template semelhante aos utilizados pelos conteúdos pirateados. Acima da imagem, a empresa sugere assistir “ao filme do Tubarão da Netflix completo” e, na legenda, comemora a publicação do primeiro filme da distribuidora no TikTok.
O vídeo não passa de uma crítica irônica ao modo com que a pirataria ocorre na plataforma. Aos sete minutos de duração, o vídeo “trava” e passa a transmitir, em loop, a animação de um tubarão nadando.
@netflixbrasil Meu primeiro filme aqui no TikTok! ☺️🦈 #filme #filmecompleto #sobasaguasdosena #riosena #tubarão #tubacão #desenho #underparis #tiktokmefezassistir #Netflix #NetflixBrasil ♬ Filme completo do Tubarão – Netflix Brasil
Mas como toda campanha de marketing, a estratégia precisa ser bem pensada. Em 22 de novembro, o Disney+ anunciou uma live para promover a série Amor da Minha Vida, estrelada por Bruna Marquezine. A obra, que tem classificação indicativa de 18 anos, teve o primeiro episódio veiculado ao vivo no aplicativo e transmitiu, inclusive, cenas de sexo explícito e nudez.
Eliseu Barreira Junior avalia que as equipes de marketing das produtoras de conteúdo começam a se apropriar deste movimento do público. “Em virtude do formato, do algoritmo e da linguagem, quase tudo que é recomendado ali [no feed do TikTok] tem um potencial de viralização.”.
No entanto, a estrutura da plataforma não é o único fator determinante para gerar curiosidade e promover as histórias, ressalta o especialista. “Este potencial de consumo só existe porque, na origem de tudo, existe um bom conteúdo – o conteúdo que impulsiona essas conversas, que impulsiona suas postagens. Não existe isso se não tiver um bom conteúdo”.