O vídeo abaixo é um desenho animado produzido pelo animador, diretor e produtor americano Aaron Augenblick. Com pouco menos de 3 minutos de duração, “The Wire” (“O Fio”, em português) retrata um homem sem rosto que, durante sua rotina, descobre um fio saindo de suas costas. Intrigado, resolve segui-lo até chegar à tomada no qual ele está plugado.
Criado em 1995, o curta-metragem ganhou alguns prêmios e até chegou a ser exibido no canal Cartoon Network em 20 de outubro de 1996, em um especial de animações independentes. O que não se esperava é que, depois disso, a obra seria perdida e deixaria de ser vista por 23 anos.
Sua recuperação e eventual publicação no YouTube só foi possível graças aos esforços dos membros de uma comunidade de entusiastas da chamada lost media (mídia perdida, em português), que conseguiram localizar, após exaustiva busca, uma cópia em fita VHS que continha o curta.
Apesar de curioso, o caso de “The Wire” está longe de ser único. Lost media é um termo abrangente, usado para se referir a produções que foram perdidas ou não podem mais ser acessadas pelo público geral.
É possível encontrar, por exemplo, uma lista com todas as lost media da TV Globo. A primeira novela da emissora, “Ilusões Perdidas” (1965), foi totalmente perdida por motivos atualmente desconhecidos, embora acredite-se que o arquivo possa ter sido destruído por incêndios.
A famosa novela “Ti Ti Ti” (2010), por sua vez, é um remake de duas outras mídias perdidas da Globo: “Plumas e Paetês” (1980) e a homônima “Ti Ti Ti” (1985) – e esses são apenas alguns de muitos exemplos. Já o capítulo 177 da Malhação de 1997, em específico, também foi completamente perdido, por motivos desconhecidos.
Se engana quem pensa que o termo se aplica apenas a obras audiovisuais. Músicas fora do mainstream que tenham sido tocadas poucas vezes no rádio, a demo de um jogo que foi apresentado apenas em alguma convenção mas nunca propriamente lançado, livros com poucas cópias – a lost media pode se apresentar através de uma multiplicidade de formas.
Embora tenha se originado a partir de casos de perda de mídia física, esse fenômeno continua se mostrando presente no século XXI, mesmo em uma época em que as possibilidades de armazenamento são praticamente ilimitadas. Isso tem acontecido, no entanto, sob uma configuração diferente – e não menos preocupante.
Em agosto de 2022, o serviço de streaming HBO Max protagonizou um caso do tipo. Sem aviso e com pouco reconhecimento aos respectivos criadores, a plataforma multimilionária removeu cerca de 40 programas de seu catálogo. Além da exclusão de atrações como “Trem Infinito” e “Acampamento de Verão”, também foram impactadas produções que, apesar de prontas, nunca foram – e nem serão, ao que tudo indica – lançadas, como é o caso da nova temporada da animação infantil “Mao Mao” e do live-action “Batgirl”, projeto que chegou à cifra dos US$ 90 milhões.
A justificativa oficial coloca as deleções como parte de um processo de unificação da plataforma com o Discovery+, outro serviço de streaming operado pela Warner Bros. Por outro lado, circulam alegações de que as ações miram diminuir o lucro tributável da companhia, reduzindo o valor a ser pago em impostos.
Até as últimas décadas, a existência de uma mídia física garantia a permanência da obra – a recuperação de “The Wire” só foi possível graças a isso. As fitas VHS, disquetes, CDs e outros eletrônicos do tipo, no entanto, caíram em desuso a partir da ascensão da internet e do chamado armazenamento em nuvem.
O problema se dá no fato de que a “nuvem” não é um lugar propriamente dito, o que significa que, em casos de remoção ou cancelamento como o promovido pela HBO Max, é impossível encontrar essas obras. Não sendo possível achá-las nas plataformas que as produziram e sem acesso a cópias físicas, elas basicamente não existem para o público. Tornam-se lost media.
Muitos usuários tentam contornar esse tipo de problemática a partir de uma terceira via: a pirataria. O download ilegal de mídias é extremamente comum na internet e, em muitos casos, acaba agindo como uma forma de preservar obras presumidamente perdidas. Apesar disso, dependendo do alcance da produção, pode ser que essa cópia nunca chegue a ser feita – além de levantar todo um debate a respeito da violação de direitos autorais.
Adicionalmente, a configuração apresentada pelas lost media na atualidade também levanta também um debate a respeito do poder que os streamings e outras plataformas do gênero têm sobre o que as pessoas assistem. Ao deterem direitos de exibição de um volume tão expressivo de programas, esses canais acabam assumindo uma posição que vai além da conveniência, tornando-se uma espécie de curadoria não solicitada.
O problema não seria tão expressivo se as mídias tivessem sua exibição liberada em outros locais – mas esse não é o caso. A situação se mostrou tão complicada que até mesmo animadores famosos como Alex Hirsch, criador do popular desenho animado Gravity Falls, endossou, em seu Twitter, a pirataria como forma de evitar que as obras excluídas se percam.
Talvez seja cedo para dizer se a solução sugerida por Hirsch é, de fato, a única ou melhor opção. No entanto, a preocupação do animador não pode ser ignorada. A perda de mídias é um risco real – e, diferentemente de The Wire, nem todas elas serão recuperadas.