O ballet parece não doer

As histórias por trás das belas sapatilhas acetinadas, dos figurinos delicadamente produzidos, das coreografias cuidadosamente criadas e dos aplausos

Desde quando surgiu na Itália durante o período Renascentista, o ballet clássico tira suspiros de plateias lotadas pelos quatro cantos do mundo. Inicialmente era uma arte feita da nobreza para a nobreza, ou seja, poucas pessoas tinham acesso tanto do lado do público quanto de quem dançava.

Os tempos mudaram, surgiram novos métodos de ensino, dentre eles o método Vaganova – ou russo – que foi o responsável por conferir ao ballet movimentos leves e fluidos.

Com a chegada de George Balanchine, idealizador do método americano, o ballet conheceu outras face da dança: menos rígida e menos regrada, com linhas mais soltas e menos clássicas. Desse momento em diante, a dança passou a se renovar constantemente, sendo muito mais do que apenas movimento corporal e desenhos bonitos.

“A técnica é tudo, mas você precisa sentir as coisas”

A busca pela perfeição é recorrente na dança. As horas de treino, ensaios, exercícios na barra e no centro, alongamento, correções são ferramentas essenciais para dançar de forma graciosa e leve. Mas, nem tudo é técnica, como diz Katiah Rocha, dona da frase que inicia a leitura desse capítulo. Ela é professora de ballet clássico há quase 40 anos na Escola de Dança de São Paulo (Edasp) – filiada ao Theatro Municipal de São Paulo – e, apesar de exigir muito de suas alunos e alunos, diz que na dança é preciso sentir.

Diversas produções já foram feitas abordando o ballet por diferentes perspectivas e criando as mais diversas narrativas. É seguro dizer que um dos temas mais comuns entre todas as histórias desenvolvidas é a persistência necessária para dançar profissionalmente em grandes companhias.

Uma dessas produções cinematográficas que teve grande reconhecimento é Cisne Negro (2010). A personagem principal Nina – interpretada por Natalie Portman que venceu o Oscar de Melhor Atriz pelo papel – é uma jovem bailarina que foi escolhida para interpretar o papel principal em O Lago dos Cisnes. Nesse ballet de repertório, a mesma bailarina interpreta tanto o Cisne Branco quanto o Cisne Negro.

Nina era a escolha perfeita para interpretar a inocência e leveza de Odette, mas enfrentava dificuldades para passar a sensualidade e confiança de Odile, que era a personagem perfeita para sua concorrente Lily. Ao longo da trama, a bailarina desenvolve grande obsessão pelo papel e uma relação tóxica com a dança, até que tem um desfecho inesperado.

Embora a narrativa de Cisne Negro retrate um caso extremo, não é incomum que bailarinas desenvolvam relações não saudáveis consigo mesmas e com a dança, seja por pressões e cobranças pessoais ou por parte de terceiros. Enquanto algumas desistem de seguir carreira profissional, outras conseguem se apoiar na paixão pela dança e seguir trabalhando com o que amam.

Nathália Massa é uma das inspirações para esse texto. Ela começou a dançar aos oito anos em Cordeirópolis, sua cidade natal, mas tem uma história cheia de reviravoltas. Até os 15 anos, dançou em um ginásio de sua cidade e participava também de apresentações de algumas bandas. Nesse momento, sofreu um acidente: foi atropelada e o carro passou em cima de seu pé. 

Foi esse acontecimento que fez com que ela se distanciasse e se fechasse para a dança. Resolveu se profissionalizar em outras áreas e trabalhar em grandes empresas. Ficou longe do ballet – e da dança como um todo – por cerca de sete anos, até que voltou a fazer aulas, aos 21 anos, a convite de uma professora.

“Parece que eu acordei e pensei que queria voltar a dançar profissionalmente”. Durante o ano de 2014 inteiro se organizou e se preparou fisica e financeiramente e decidiu pedir as contas da empresa em que trabalhava e se mudar para São Paulo. Desde então, tem se dedicado inteiramente à sua arte.

A partir desse momento Nathália começou a enfrentar maiores desafios na dança. Além da questão da idade, teve que recomeçar os aprendizados praticamente do zero. E, embora tenha se preparado durante um ano antes de se mudar, as aulas eram em um ritmo diferente daquele que encontrou quando chegou em São Paulo. “Eu pensei ‘gente, eu não sei dançar ballet’. Foi um mundo assustador. Só que eu tenho a persistência, força de vontade. Eu pensava ‘é isso que eu quero, é isso que eu vou fazer e eu vou conseguir’”.

Nathália diz que a dança é algo muito pessoal. Embora existam professores e diretores que auxiliem no processo de desenvolvimento, a persistência e a força de vontade são interiores e só a própria bailarina pode lidar com isso.

Em 2017, ano de sua formatura no curso técnico, foi especialmente difícil. “Eu estava muito confusa, eu não sabia o que eu ia fazer. Eu estava desanimada, porque parecia que eu ensaiava tanto e nada ia e parecia que eu estava começando a regredir tecnicamente. Mas isso porque eu não estava bem psicologicamente”. Nesse período, quebrou um dos pés fazendo uma sequência de giros e ficou quatro meses fora. Foi um momento de muitas dúvidas sobre seguir na dança e cogitou voltar para o interior e escolher outro caminho.

Mesmo assim, participou dos últimos ensaios para a apresentação final da formatura com as sapatilhas de ponta e foi uma das melhores apresentações de sua vida. “Eu amo tanto a dança, ela é tão importante para a minha vida. Por que eu vou abandoná-la? Vou insistir mais um pouco.”

Voltando de férias do interior, participou de alguns cursos de verão e fez uma audição para uma companhia de ballet neoclássico, onde dançou por dois anos. Foi lá que iniciou o processo de cura do que viveu na companhia anterior. Depois de algum tempo ensaiando e dançando com um grupo sem competição e com um diretor que apoiava o processo criativo dos bailarinos, Nathália voltou a ter paixão pela dança. Ela diz que “a autocobrança é importante, mas se você não cuidar, ela te destrói.”

Mesmo diante de todos esses desafios, que envolveram desde lesões físicas até mudança de carreira, Nathália nunca deixou sua paixão pela dança de lado. Segundo o bailarino brasileiro Jair Moraes, – em vídeo da série Figuras da Dança, publicado no canal do YouTube da São Paulo Companhia de Dança – “a dança não pode ser sofrimento, ela tem que ser vida. Ela é os teus sonhos, ela tem que ser alegria, você tem que estar feliz com o que está fazendo”.

Ballet como gatilho para transtornos 

É comum associar o ballet a corpos magros e longilíneos, com linhas delicadas e harmoniosas. Para o público que não faz parte ativamente do mundo da dança, essas condições parecem vir sem esforço, mas são horas de treinos intensos. Por diversas vezes o ballet é diretamente relacionado a transtornos de imagem corporal, por ser uma atividade que enfatiza o corpo esteticamente.

Distúrbios alimentares são os primeiros desta lista de transtornos e podem ser motivados por diversos fatores. Além disso, não coincidentemente problemas relacionados à anorexia nervosa e bulimia, por exemplo, atingem mais mulheres do que homens.

Companhias e diretores têm grande responsabilidade nessa questão. Nos anos 1970, por exemplo, George Balanchine era conhecido por cultuar corpos extremamente magros. No livro Dançando em meu túmulo, a bailarina Gelsey Kirkland narra sua dramática história no ballet ao conviver com dismorfia corporal. 

Garotas que desejam seguir carreira profissional na dança passam horas dentro de salas cobertas de espelhos do chão ao teto, vestidas em roupas justas que marcam o corpo. Somados a predisposição genética, dinâmica familiar, pressões sociais e midiáticas, dietas e mudanças corporais, inevitavelmente, o ballet acaba tornando-se gatilho para o surgimento de transtornos alimentares.

Os primeiros sinais relacionados a uma imagem corporal negativa normalmente surgem durante a puberdade, quando o corpo passa por mudanças naturais significativas. No ballet, esse problema tem potencial para tornar-se ainda mais agudo, devido ao ambiente ao qual jovens bailarinas estão expostas todos os dias. 

O ballet não deve levar toda essa responsabilidade por si só. Todos os dias, meninas e mulheres são expostas a padrões de beleza inalcançáveis e falsos, por parte de revistas, influenciadoras e grandes marcas. No entanto, as companhias de dança, assim como seus diretores têm papel fundamental para o surgimento e desenvolvimento de transtornos corporais.

Não raramente surgem notícias, principalmente em jornais internacionais, que contam histórias de bailarinas que passaram por momentos delicados causados por distúrbios alimentares. O assunto já foi retratado por grandes veículos como BBC, New York Times, The Guardian e The Washington Post, além de ser tema recorrente em revistas especializadas em dança.

Em março desse ano, a bailarina Kathryn Morgan, atualmente solista no Miami City Ballet, falou à revista Dance Spirit sobre suas questões relacionadas a distúrbios alimentares, após ser convidada a falar sobre o tema no “Today Show” e continuar a discussão em um vídeo em seu canal do YouTube.

Enquanto era solista no New York City Ballet, Morgan ficou doente e começou a ganhar peso. Ela conta que a companhia se eximiu da obrigação de oferecer apoio psicológico. Durante esse período, a bailarina tomou medidas drásticas para perder peso e entrar “em forma”, mas mesmo assim ficou fora das apresentações de Pássaro de Fogo, em que dançaria uma variação solo.

Morgan deixou a companhia, entrou em depressão e passou por uma crise de identidade, pois sua vida era o ballet. Algumas semanas depois, encontrou o apoio psicológico necessário e iniciou seu canal no YouTube, onde conta sua história e aborda temas de imagem corporal que ajudam outras pessoas que estejam passando pelo mesmo problema.

Dawn Smith-Theodore, uma bailarina profissional, psicoterapeuta e sobrevivente de anorexia nervosa, escreve na Pointe Magazine sobre perfeccionismo na dança. Essa é uma característica presente na personalidade de algumas pessoas, mas a dança cultiva isso. No artigo na revista norte-americana ela escreve que as bailarinas “tornam-se supercríticas delas mesmas e sentem vergonha e culpa, porque não estão correspondendo às suas próprias expectativas e às de outras pessoas. Eventualmente, o amor que sentiam pela dança desaparece.”

Uma das grandes questões dos distúrbios alimentares, é que podem ser engatilhados por palavras que parecem inofensivas. Em entrevista ao The Washington Post, a ex-bailarina Anais García, fez uma audição para ingressar na Baltimore School for the Arts (BSA), instituição reconhecida no ensino de ballet. Ela não foi aprovada sob a justificativa de que os diretores estavam procurando bailarinas com mais tônus muscular. Mais tarde, fez a audição novamente e foi aceita, mas os professores sempre repetiam que ela precisava ser mais definida. Para ela, essas expressões foram interpretadas como gorda e, a partir disso, começou a tomar medidas extremas para perder peso, até que precisou ser hospitalizada e passar por um longo processo de reabilitação.

No início dos anos 1990, Hamilton e Michelle Warren, professores da Columbia University, estudaram durante três anos comportamentos de risco em bailarinas da School of American Ballet, afiliada ao New York City Ballet. Durante a pesquisa, muitas das estudantes que negaram ter distúrbios alimentares, apresentaram sintomas.

Além dessa, muitas outras pesquisas foram realizadas com o objetivo de entender porque tantas bailarinas desenvolvem transtornos alimentares. Mas, mesmo 20 anos depois pouco mudou no ballet e bailarinas continuam expostas aos mesmos riscos.

O período de quarentena causado pelo avanço da pandemia de Covid-19 trouxe preocupações também relacionadas a hábitos alimentares de bailarinas profissionais e jovens estudantes. A revista Dance Spirit escreveu um artigo que tranquiliza bailarinas quanto a possíveis ganhos de peso. O texto chama a atenção de como dançarinas com tendências perfeccionistas podem ficar vulneráveis nesse momento e alerta que é preciso desenvolver uma experiência positiva com a comida.

O padrão mudou?

Existem muitos profissionais que levam a arte aos alunos de forma leve e respeitosa. Joseph Lopes, professor da Escola de Dança de São Paulo (Edasp), acredita que “o ballet é muito além do que movimento; é educação, cultura e esporte.” 

Lopes começou a dar aula muito cedo, porque já se sentia realizado como bailarino. Hoje se afasta da tradição e da crença que para ensinar é preciso machucar, porque entende que, psicologicamente falando, alunos e professores estão em lugares diferentes.

Ao desenvolver uma técnica de consciência corporal aplicada à dança, Joseph passou a estudar o corpo e entender porque um aluno não consegue realizar determinado momento por exemplo. Ele explica que grande parte dessa dificuldade está ligado à parte cognitiva que interfere diretamente na parte motora. Isso o fez entender também a dança como algo singular, em que se trabalha o individual para trazer o coletivo.

Trabalhando também como professora, Nathália reconhece que exige comprometimento e respeito de suas alunas. “Uma coisa que eu aprendi muito e ensino às minhas alunas é o respeito. Não deixo que se pendurem na barra, por exemplo.” A bailarina, mesmo diante de duras críticas, nunca respondeu aos seus diretores. Ela acredita que hoje, as gerações mais jovens, encontram muitas desculpas pelo fato de não conseguirem fazer algo durante as aulas. 

No entanto, existe uma diferença entre exigência e cobranças desnecessárias, que beiram o abuso psicológico. A bailarina diz ter muito medo de ser uma pessoa frustrada e descontar isso em suas alunas, por isso, sempre procura ser uma fonte de inspiração e levar sua arte com amor para mais pessoas “O que eu mais me orgulho é como professora como eu consigo tocar, moldar e lapidar as minhas alunas para essa questão da persistência, força de vontade, um trabalho verdadeiro.”

Katiah Rocha também exige muito de suas alunas. A carreira de bailarinas profissionais começa cedo, mas também termina cedo. “Se você levar a dança para esse lado de sentimento, ela te engole e você perde o foco. É preciso ter inteligência emocional.”

A dança, principalmente o ballet clássico, encontra-se em um lugar difícil. É função também dos profissionais da área manterem a arte viva e presente em gerações futuras. 

Katiah diz ser muito realizada com em seu trabalho e tem prazer em devolver tudo o que aprendeu. “O mundo do corpo da dança fica dentro da sala de aula, é solitário E ela não precisa ficar só no corpo e no palco.” Por isso, reconhece a importância de profissionais que atuem não apenas como bailarinos, mas como críticos, produtores de conteúdo, educadores.

Joseph se desconstruiu como bailarino para conseguir fazer de suas frustrações e histórias pontes para seus alunos. Para ele, o movimento se traduz em “vários graus de liberdade.”

A bailarina como personagem

No mês de maio, a blogueira Bianca Andrade, também conhecida como Boca Rosa, causou polêmica ao postar, em sua conta do Instagram, fotos de um ensaio fotográfico que fez inspirada pela arte das bailarinas. Em algumas fotos ela aparece usando sapatilhas de ponta.

As fotos geraram repercussão no mundo dança, principalmente entre bailarinas e bailarinos profissionais que saíram em defesa da classe. A brasileira Ingrid Silva, primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem em Nova York, escreveu em um post no Instagram como a rotina do ballet exige fisica e mentalmente dos dançarinos e chamou o público a repensar como a arte é retratada na mídia e utilizada por marcas, modelos e influenciadoras.

“A única coisa que quero que seja refletida é que parem de usar o ballet como referência para vídeos, fotos e afins sem ter um profissional que realmente saiba o que está fazendo” Não, não é qualquer um que pode acordar hoje e falar ‘quero ser bailarina e amanhã vou colocar uma sapatilha de ponta’. Não é assim gente.”, dizia um trecho do post que vinha acompanhado de uma série de fotos que retratavam uma rotina exaustiva de exercícios, treinos e ensaios.

As postagens levantaram discussões e reflexões sobre como a dança é retratada e percebida pelo público em geral hoje. Segundo Katiah Rocha, para aqueles que querem seguir carreira profissional na área, é preciso enxergar na dança uma disciplina de trabalho. “Eu acho muito possível viver de dança. Tudo o que eu tenho, tudo o que eu fiz na minha vida foi através da dança. Ela é meu sustento, porque eu optei por ela como profissão.”

No início desse ano, Nathália voltou ao interior. Um dos principais motivos que a fez tomar essa decisão foi a falta de reconhecimento e incentivo à dança. Esse é um aspecto que faz com que profissionais da área questionem o que fazem e se vale realmente à pena continuar. “Durante os anos de 2018 e 2019, eu fiz quase trinta apresentações e muitas delas em grandes e conhecidos teatros. A entrada era de graça e, mesmo assim, nós não conseguíamos encher o teatro.” 

Grandes companhias também enfrentam problemas para produzir pela falta de patrocínios, como o Grupo Corpo, de Belo Horizonte, e a Companhia de Dança Deborah Colker, do Rio de Janeiro. Nathália completa dizendo que a situação é muito triste e que “se contarmos quantas companhias fecharam ano passado, é surreal. E são coletivos com trabalhos muito construtivos. Ninguém no Brasil tem o costume de chegar na porta de um teatro e pagar para ver uma apresentação de ballet.”

Essas condições têm refletido principalmente no ballet clássico que vem perdendo espaço na cultura brasileira. O Theatro Municipal do Rio de Janeiro, mesmo sob direção de grandes artistas como Cecília Kerche e Ana Boto Fogo, fechou as portas. Na capital paulista, O Balé da Cidade – filiado ao Theatro Municipal de São Paulo – antes conhecido como Corpo de Baile Municipal foi inicialmente criado para acompanhar as óperas do Theatro e apresentar obras de repertório clássico e hoje é totalmente voltado à dança contemporânea, sob direção artística de Ismael Ivo. Ainda em São Paulo, uma das únicas companhias que ainda interpretam clássicos é a São Paulo Companhia de Dança.

Por Ana Cipriano
ana_cipriano@usp.br