Você acorda e olha o celular. Uma notificação na tela indica que está na hora de fazer seu post do dia. Entrando no aplicativo, ele cronometra seus dois minutos. Você tira duas fotos: uma da câmera traseira e uma da câmera da frente. Olha as duas fotos que cada um dos seus amigos postou no dia e desliga o celular. Pronto. Agora só amanhã.
Não é utopia e nem distopia. Essa é a proposta do BeReal, rede social que surgiu em 2019 e está crescendo rapidamente no pós-pandemia, principalmente entre os jovens: já são mais de 50 milhões de downloads pelo mundo. Como o próprio nome indica, o BeReal convida a “ser real”, sem filtros, edição, enfim, nada além de duas fotos e dois minutos. Mas será que dá pra ser genuíno em um ambiente tão manipulável, como as redes sociais?
Para a estudante Juliana Huang, de 18 anos, o BeReal é mais real comparado a outras redes: “É um take do seu dia, não tem filtro, não tem como editar a foto, só tem como você tirar ela várias vezes pra sair um pouquinho melhor”. Pedro Ferro, de 22 anos, concorda: “A maioria dos ‘BeReals’ que eu vejo durante a semana é sempre alguém ou deitado assistindo uma série, ou estudando. Eu mesmo posto alguma vez ou outra no trabalho, ou fazendo TCC. Então é bem rotina, sabe? Eu gosto de ver a pessoa só fazendo nada, é bem a vida”.
A doutora em Ciências da Comunicação Issaaf Karhawi coloca que é preciso primeiro entender que o “real” do BeReal é, antes de mais nada, um manifesto da plataforma, um conceito defendido por ela, em oposição às demais plataformas, sobretudo o Instagram. “O Instagram é um aplicativo estético, em que há o uso quase abusivo de filtros, ferramentas de edição, onde existe uma estética construída que é oposta à estética do real. O BeReal, como negócio, constrói esse manifesto em oposição às plataformas vigentes, o que é uma tentativa mercadológica de destaque”, argumenta.
Pelo visto, a tentativa de destaque funcionou. A Juliana e o Pedro, por exemplo, baixaram por recomendação de amigos, assim como a Ana Clara Fleming, estudante de 22 anos. Ela conta que entrou para manter o contato com aqueles que estão longe: “A maioria dos meus amigos acabou se mudando por conta da faculdade. Alguns continuaram em Goiânia, eu mudei pra São Paulo, outros pra Belo Horizonte, então a gente baixou o BeReal como forma de continuar pelo menos tendo uma notícia do outro todo dia”.
Ana Clara confessa que a rede social que mais toma seu tempo ainda é o Instagram, mas não é a preferida dela. No ano de vestibular, Ana teve uma relação conturbada com o aplicativo: “Ficava comparando minha realidade com a das outras pessoas, vendo elas fazendo coisas que eu sentia que não tinha tempo por causa dos estudos. Por um tempo eu fiquei até tentando não usar porque isso estava me deixando triste, e eu sentia que estava perdendo tempo de qualidade com as pessoas que eu amava”.
Hoje, a rede onde a estudante mais se diverte é o BeReal, que é mais leve tanto pelos conteúdos quanto pelo pouco tempo de uso da plataforma, que não mantém os usuários “reféns” como o Instagram ou TikTok, por exemplo. Além disso, sempre dá pra achar alguma foto engraçada ou inusitada, que os amigos não teriam coragem de postar no Instagram, o que também é um destaque positivo para Pedro e Juliana.
Issaaf explica que essa forma diferente de agir e construir a imagem em cada rede social é chamado de “performance” nos estudos de comunicação. Diferente do significado dessa palavra para o senso comum, performar não tem a ver com fingir ou mentir. É um pouco menos preto no branco: “A gente faz gestão de imagem nas redes como a gente faz no nosso ambiente de trabalho. O que a gente faz no ambiente de trabalho é uma performance. A gente reconhece o ‘auditório’, que é o nosso trabalho, são nossos colegas de trabalho, nossos clientes, e performa jogando luz ao que é mais coerente para aquele espaço e deixando outros elementos na sombra”.
É por isso que o Pedro, a Juliana, a Ana Clara e os amigos deles não “têm coragem” de postar uma foto no Instagram, para os parentes e os colegas de trabalho verem, mas postam no BeReal, para os mais íntimos. Assim como não tem nada a ver agir no trabalho da mesma forma que você age em uma mesa de bar, você não vai se comportar da mesma forma pessoalmente e no Instagram.
Mais do que tentar buscar essa autenticidade ou falta dela nas redes, a pesquisadora Issaaf Karhawi conclui dizendo que é preciso educar nosso olhar para enxergar essas performances que não são nem autênticas, nem mentirosas, mas imagens construídas em um ambiente: “Há muitas mediações no digital, e talvez a gente esteja falando de uma outra lógica de autenticidade, que não é essa que a gente romantiza, uma pedra preciosa dentro do sujeito. Isso a gente encontra no divã, né? A gente não vai encontrar nas redes, nem no post do nosso melhor amigo. Então acho que também é uma questão de reconhecer o lugar das plataformas”.