Acordar, desligar o alarme, olhar o WhatsApp, verificar o Twitter. Lavar o rosto, sentar à mesa. Ligar o notebook, digitar a senha, abrir uma aba no Google, assistir a uma aula longa. Levantar-se, cozinhar. Assistir a uma série no almoço. Lavar a louça, sentar à mesa. Trabalhar e estudar pelo computador com eventuais pausas para verificar o Instagram. Jantar – quem sabe um pedido do iFood –, responder emails. Enfim terminar de assistir o episódio começado mais cedi. Deitar e ler um e-book; olhar o Youtube, o Facebook, o Twitter de novo. Ativar o alarme; dormir.
É claro que nem sempre nessa ordem, nem com esse ar melancólico que talvez se tenha pintado. Mas a minha rotina (de uma jovem estudante de jornalismo em tempos pandêmicos e em São Paulo) muitas vezes tem se parecido com isso, mesmo. E é claro que os verbos no infinitivo dão uma impressão meio mecânica, mas a leitura antes de dormir costuma ser intensa, o almoço gostoso, e o Twitter às vezes calha de me anunciar o lançamento da próxima temporada de minha série favorita.
Para o bem ou para o mal, é possível (é provável) que boa parte das pessoas que agora leem esse texto se identifiquem com ao menos parte de minha rotina. Segundo pesquisa do IBGE, 82,7% dos domicílios nacionais já acessavam a internet em 2019 – um aumento de 3,6% em relação a 2018. Além disso, dentre eles, 99,5% acessavam a rede por meio de celulares.
É fácil imaginar que, nos anos 90, ou mesmo no início dos anos 2000, o acesso era radicalmente diferente. Como é então que fizemos para absorver essas mudanças em apenas 30 anos? O que pensávamos sobre os dispositivos digitais e móveis nessa virada de século, e o que pensamos hoje? De que forma a internet foi passando a fazer parte do nosso dia a dia (aos poucos e, paradoxalmente, de maneira tão rápida)?
Para escrever essa pauta, encontrei algumas pessoas que topassem conversar comigo e que relatassem como foi acontecendo essa mudança de rotina ao longo dos anos. Duas delas, achei pelo Facebook, conversamos por mensagem e depois por telefone. A outra é um professor de minha faculdade, escritor de um livro chamado A Cidadania Digital e pesquisador das redes digitais.
Em um primeiro momento (Parte I), quero explorar a visão negativa sobre tecnologia digital que muitos podem ter previamente, antes de ler a matéria. Enfim (Parte II), vamos conversar com os entrevistados e seus cotidianos ao longo de três décadas.
Parte I – Indissociáveis
A medicina usa para pronto-atendimento, teleconsultas, até mesmo cirurgias de risco e com necessidade de maior precisão. A arquitetura constrói projetos inteiros por softwares eficazes em selecionar texturas, materiais e medidas, simulando o resultado de futuras construções. A engenharia lança mão de impressoras 3D que podem construir materiais do zero; unida à biologia, ambas têm criado uma área poderosa e inovadora que manipula DNA para fabricar organismos melhorados de vegetais ou mesmo animais.
O pesquisador Massimo Di Felice é professor do departamento de Relações Públicas da Escola de Comunicações e Artes da USP, e é um estudioso das redes digitais. Sociólogo de formação, bate sempre em uma tecla: por que a sociologia e filosofia ocidental são algumas das únicas disciplinas que permanecem maldizendo as tecnologias digitais? Por que enxergam as redes sociais sempre como uma ferramenta de alienação e distração, quando a grande maioria das outras disciplinas se aliam a elas?
Dentro do centro de pesquisa internacional Atopos, de que é fundador, Di Felice ajudou a formular uma linha de pesquisa chamada tekó. Tentando entender, em um primeiro momento, como estava se dando o processo de digitalização nas comunidades indígenas, essa linha vem realizando pesquisas de campo em várias aldeias brasileiras.
Reconhecidos por seu contato mais intenso com florestas e animais, esses povos poderiam (segundo a intuição ocidental) negar a tecnologia digital como algo artificial ou supérfluo. Mas Massimo relata que em muitos casos não é isso o que acontece: “Um dos pontos com o qual nos deparamos é que esses povos tinham uma clareza na interação com a tecnologia: ela não era alienadora ou invasiva. Não era algo que fosse fonte de conflitos, ou ameaçadora, como as ciências sociais costumam defender que seria”. E ele ainda lembra: “A primeira manifestação nacional indígena da história do Brasil aconteceu justamente por essas redes”.
Em outras palavras, a visão negativa sobre as redes digitais pertence a nós, ocidentais: não é inerente às tecnologias em si. Segundo Di Felice, nosso alarmismo seria um fruto da maneira dualista com que separamos historicamente sujeito de objeto, e principalmente humano de técnica.
Vou tentar explicar melhor. Desde Platão, a maioria dos filósofos ocidentais desenvolveram suas teorias partindo da percepção de que havia uma “natureza” externa ao humano e um “sujeito” interno, e que este sujeito seria não apenas independente dessa natureza, como teria controle sobre ela através de sua técnica. Estamos falando de conquistar o mundo com navios, escavar terra com grandes máquinas agrícolas, apontar armas de fogo para os animais que estavam no meio do caminho. E se considerar o rei de todos os terrenos em volta, e exaltar o humanismo como uma ideia nobre e bonita.
Bem, Massimo diz que essa ideia de técnica (como instrumentos que eventualmente criamos e sempre controlamos, e que são separados de nós) é meramente uma narrativa. O teórico parte de pesquisadores como Bruno Latour e Martin Heidegger para defender que os humanos sempre estiveram intimamente ligados à técnica e que sua relação com ela sempre foi imprescindível para sua própria existência. Os humanos não são o centro do mundo e não controlam tudo o que está ao seu redor: somos dependentes de milhares de seres, minerais e tecnologias; ecologias inteiras que só funcionam a partir de trocas.
Abominar a relação com as redes digitais, portanto, seria uma forma de dar continuidade a essa longa narrativa de que somos independentes da técnica – de que precisamos ser independentes dela.
Como se, ao me sentar diante da janela e passar uma hora inteira analisando o céu cinzento de São Paulo, eu estivesse sendo menos alienada ou me distraindo menos do que se passasse essa mesma hora com o rosto iluminado pelas telas. Como se, para encarar o mundo de verdade, precisássemos nos desfazer da tecnologia; mesmo que, claramente, essa seja uma missão impossível.
Afinal, o céu cinzento é fruto das dinâmicas tecnológicas da cidade – e eu subi um elevador para estar diante da minha janela.
Parte II – Rotinas em três décadas
Essa longa matéria parte do pressuposto, portanto, de que somos indissociáveis das tecnologias e de que não faz sentido negá-las. Isso não é o mesmo que dizer, é claro, que as redes digitais têm sempre um impacto positivo e não são, nunca, um motivo de receio. A questão aqui é retirar a essência das coisas: não defender que os dispositivos móveis são inerentemente bons ou ruins, e sim que eles se fazem nas relações.
As relações mudaram rapidamente, no entanto, de trinta anos atrás até hoje. No Brasil do final dos anos 80, eram as universidades e raras empresas quem possuíam acesso à internet, e mesmo essa tinha um modo de funcionamento bastante diferente. Em que momento então ela começou a se popularizar e a fazer parte intimamente do cotidiano da população do país?
Anos 90
Para Marcos Aurelio Costa, que tem mais de 40 anos e é de Florianópolis, esse momento chegou um pouco mais cedo do que para seus vizinhos. Técnico de informática, o catarinense iniciou um curso na área de programação aos 12 anos, por influência de seus pais, e já começou a trabalhar na área quando jovem. Teve o primeiro celular perto dos anos 2000 (“o Nokia da lanterninha, que todo mundo tinha”), mas o primeiro computador ganhou em 1994 de um amigo com quem trabalhava. De famoso processador “486”, esse computador demorava mais de uma hora para aquecer, e Marcos à época já instalava o Windows 95 para rodar seus programas.
Nesse início, segundo relata o técnico, eram apenas as grandes corporações quem tinham acesso à internet, já que o preço era muito elevado. “Para usar o computador, o pessoal que era mais nerd acabava comprando revistas que vinham com um CD para instalar programas”. Dois programas citados por ele e que continuam sendo usados até hoje são o Photoshop e o Coreldraw, embora suas interfaces fossem bastante diferentes nos anos 90. “Você tinha que ir até as bancas de revistas, comprar um CD que gravava um jogo ou uma parte de um programa, e depois instalava em casa. Eu gastei muito dinheiro em revista nessa época”.
Marcos conta que as poucas pessoas que compravam esses produtos tinham um certo status. “Você era bem-visto porque ajudava a vizinhança. Eu digitava rápido e as pessoas me achavam o máximo… era como receber uma curtida no Instagram”, brinca.
A conexão via internet começou a ser acessada por usuários comuns no final dos anos 90, e ainda assim apenas em momentos específicos. Por ser muito caro, os novos internautas procuravam horários em que o acesso era mais barato – como aos finais de semana ou pela madrugada. Isso é o que relata Marcos Aurelio, mas também Neli Martelozzo Grego, uma outra entrevistada para esta matéria.
Neli tem 62 anos e é moradora da Zona Leste da cidade de São Paulo. Hoje é aposentada, tendo trabalhado muitos anos como secretária na área financeira de empresas privadas. Ela conta que, já nos anos 80, algumas empresas grandes possuíam computadores (imensos), mas reservados ao uso apenas de funcionários da área de TI: “A gente não chegava nem perto. Fazíamos tudo de um jeito manual, mandávamos para o Centro de Processamento de Dados, que tinham funcionários especializados em mexer em computadores”.
Em fins dos anos 90, comprou seu primeiro computador compacto, que usava em casa junto com a filha. Mas, assim como Marcos Aurelio, ela conta que procurava horários específicos para acessar por conta do preço: “Eu comprei o computador para lazer, mas a gente não usava tanto porque era caro. Para acessar a internet, ainda não era banda larga, então usar por meia hora era como ficar ligando para alguém por meia hora pelo telefone”. Da meia-noite até às seis da manhã, Neli conta que existia uma brecha e o preço era mais barato. “Pelo menos para a minha casa, o acesso não era tão fácil, simples e expandido como é hoje”.
Anos 2000
De início, Neli usava o computador e a internet mais no trabalho do que em casa, realizando transferência de arquivos e enviando emails em sua empresa. Quando a internet foi entrando dentro de casa, já era início dos anos 2000.
Nessa virada de século, Marcos Aurelio conta que chegou a ter problemas sérios com o uso do computador. Enquanto a maioria das pessoas passou a ter um problema de vício com a chegada das redes sociais, o técnico de informática o viu bater à porta mais cedo: “Fiquei meio viciado. De 99 para 2000, passei dois anos sem sair de casa, porque foi quando as pessoas começaram a pagar para ter uma conexão única. E aí eu mal dormia, ficava sempre ligado para conseguir uma conexão boa”.
Ainda assim, Marcos não tem uma visão negativa sobre o uso da internet. “Quando você entra em contato pela primeira vez com alguma coisa, leva um tempo para digerir. A internet traz uma liberdade que as pessoas não conseguem compreender de imediato, mas aos poucos essa relação vai se equilibrando”.
Enquanto Marcos deixava seu vício, Neli e sua filha compravam seu primeiro celular, em 2001. Ainda era apenas destinado a ligações telefônicas mas, como uma delas morava em Guarulhos e a outra no Brás, o aparelho ajudou a mantê-las unidas. Neli repete algumas vezes o quanto recebeu apoio da pupila para aprender a mexer com tecnologias digitais: “Quando temos filho adolescente em casa, só passamos aperto se quisermos. Porque, graças a Deus, eles estão sempre por dentro das novidades. Até hoje, a minha filha me ajuda com alguma coisa que não sei e tenho dificuldade – mesmo que por vídeo chamada, já que ela mora na Inglaterra”.
Entre 2002 e 2003, Marcos se lembra de entrar na fase das lan houses. Essas casas de computadores e conexão via internet permitiam que as pessoas pagassem e acessassem a rede individualmente ou em grupos. “Eu usava muito para jogar. A gente fazia um programa de chamar os amigos jogadores e fechava a lan house para jogar a noite toda”.
Nessa mesma época, também se começava a acessar o famoso orkut, muito popular no Brasil. Criado em 2004 e desativado em 2014, a rede chegou a ultrapassar seus 30 milhões de usuários no país, sendo uma das primeiras experiências de muitos brasileiros com as redes sociais. Seu desenho permitia que cada usuário criasse um perfil e publicasse depoimentos para os amigos, mandasse mensagens, bem como integrasse comunidades curiosas como “Eu amo chocolate” ou “Queria sorvete, mas era feijão”.
O orkut se iniciou cedo, em 2004, mas Neli se lembra de usar anteriormente o programa “ICQ” (acrônimo feito com base na pronúncia de I Seek You, em inglês) como rede social. Não havia ainda áudio nem imagens: era composto apenas pela troca de mensagens dos usuários conectados, como uma espécie mais antiga de MSN.
Neli ainda estava apenas se introduzindo nos dispositivos digitais, mas já tinha uma imagem bastante positiva sobre eles. “Eu sempre achei a oitava maravilha. Pra mim, que sou da época da máquina de escrever, aquilo era maravilhoso – mesmo não tendo o mesmo acesso à internet que tenho hoje”. Ela lembra que algumas pessoas, nessa virada de século, já enxergavam o computador como “a besta do apocalipse”, mas ela nunca teve a mesma visão. “Eu acho que, com critério e coerência, tudo nessa vida flui”.
Conforme foi passando o tempo, Neli e Marcos constatam que os computadores e celulares também foram ficando mais compactos: “Menores no tamanho e maiores na abrangência”. E as plataformas digitais também foram se desenvolvendo…
Anos 2010
Na década seguinte, pode-se dizer que os brasileiros experimentaram um boom das redes sociais. Tendo passado o auge do Orkut, em agosto de 2011, segundo o Ibope Nielsen, o Facebook se tornou a maior rede do Brasil. Com um design mais moderno, a plataforma também tinha uma fama diferente, já que se passou a criar um preconceito contra a “orkutização” (como se o Orkut tivesse ficado popular demais). Sobre isso, Neli conta inclusive que, de início, só era possível ingressar no Facebook se uma pessoa já inscrita te convidasse.
No geral, Marcos lembra que já fazia algum tempo que os programas de comunicação iam se tornando mais fortes, com um protocolo chamado Internet Relay Chat (IRC). Utilizado na internet, ele permite a troca de mensagens e arquivos, permitindo que as conversas sejam mantidas em grupo ou de forma privada.
Nesse momento, os IRCs já estavam bem mais populares do que quando nasceram, em 1993, e permitiam que comunidades próximas começassem a trocar fotos e informações de maneira mais frequente. “Até então, quem tinha contato eram mais os nerds, mas os programas com códigos mais prontos (mais fáceis para pessoas comuns) foram sendo criados e se popularizaram”, relata ele. As comunidades foram ficando gigantes: primeiro dentro dos messengers, depois em salas de papo virtual, depois nas redes sociais maiores. “O pessoal todo se encontrava ali, porque era possível criar amizades e até namorar”.
Embora o Instagram seja bastante famoso hoje, o técnico lembra que o Photolog foi uma primeira opção para fotógrafos e pessoas comuns começarem a postar e curtir fotos.
Trabalhando em uma loja de computadores com um amigo, Marcos Aurelio se voltou mais para o lado da eletrônica do que da programação nesse momento. Começou a trabalhar com venda e conserto de produtos, então viu de perto o avanço do uso dos dispositivos eletrônicos móveis. “O celular estava começando a tomar a posição que tem hoje. O Iphone 1 o brasileiro nem conheceu, ele começou a ter contato a partir do terceiro. E eu tive mais acesso por trabalhar com isso na loja”.
Segundo ele, o Iphone foi importante para que o computador passasse das casas fixas para a palma da mão das pessoas. Por seu design moderno, seu modo touch e seu processador melhorado, os usuários começaram a procurar mais por esse tipo de modelo de celular. Uma revolução estava em voga: não mais a internet seria acessada apenas das casas brasileiras. “A partir desse momento, ficou muito mais fácil saber pelo que o mundo estava passando, porque as informações vinham de todos os lados nas redes sociais”, opina Marcos.
Para além das redes sociais, Neli também diz que nessa época já utilizava bastante a internet para fazer compras – embora com menos frequência do que o faz hoje. Afinal, as plataformas já começavam a extrair informações dos usuários e armazená-las em bancos de dados, para que pudessem oferecer produtos específicos a cada nicho social. “Tem uma cópia sua digital do outro lado da tela. Que não é tão perfeita, mas traduz a sua personalidade e suas escolhas. Então as marcas e as plataformas começaram a entender que poderiam se utilizar disso para vender”, analisa Marcos.
Os sites para consulta de informações e leitura também passaram a ser mais acessados. “Sempre gostei muito de ler, então sempre pesquisei e aprendi muita coisa nova pela internet”, conta Neli. Por não ter TV paga pelo elevado preço, e por ser fascinada por cinema, ela também conta que nessa década já começava a pesquisar sites em que pudesse acessar filmes bons.
Hoje
30 anos depois, e acessar a internet já é imprescindível no modo de vida que fomos organizando no decorrer do tempo. Não é só esta narradora que vos fala que costuma acordar e conferir as notícias do dia, afinal. “A última coisa que vejo é o celular, e a primeira também. Como trabalho e conserto placas, eu tenho 2 celulares. Um seria para a profissão e o outro pessoal, mas as coisas se misturaram bastante. A minha vida é isso: se faz no meio digital”, relata Marcos.
Neli não trabalha com placas nem conserta celulares, mas também tem rotina semelhante. “Acordo e já olho o WhatsApp. Como eu moro sozinha na minha casa, e deixo o celular no silencioso durante a noite, a primeira coisa que faço ao acordar é conferir se não tenho alguma mensagem”. Ela conta que, ainda na pandemia, uma amiga de infância faleceu durante a noite e a filha ligou para avisar, sem que ela tivesse notícia já que estava dormindo. Por essa memória, fica atenta para saber se alguma urgência a chama sempre que acorda pela manhã.
Além disso, com os irmãos morando em Osasco, Mogi das Cruzes e Belo Horizonte, e a filha na Inglaterra, Neli prefere manter o celular sempre por perto. Tanto porque pode precisar de ajuda, por estar sozinha, mas também porque adora uma conversa. “Moro sozinha em uma casa, muito bem, e sou bem resolvida – e graças à internet. Graças a ela eu converso com as pessoas o dia todo. Eu até tenho que deixar o celular de lado às vezes, porque senão eu esqueço do cachorro, não dou água e comida, esqueço do almoço, das plantas. Agradeço muito aos céus porque tenho muita gente no whatsapp, então muitos me passam bom dia, perguntam como é que eu estou”.
O contato é tão frequente que, se ela passa 3 ou 4 horas sem visualizar o WhatsApp durante o dia, alguém já liga e pergunta: “Neli, você está bem? Faz tempo que você não olha suas mensagens”. E ela parece feliz com a rotina: “Só tenho a agradecer, porque isso é carinho”.
Além do Facebook – que foi por onde a encontrei –, Neli, também diz que acessa muito os jornais internacionais com tradução em portugês: CBN, BBC, El País. Não gosta muito da imprensa brasileira: “Ela não nos dá informação exata das coisas, sempre divulga só o que é de interesse de alguns”. Para ela, só portais internacionais.
Netflix, aplicativos de delivery e sites de compra também entram na conta diária. “Eu compro bastante online, principalmente na pandemia, que eu fico sozinha e não posso ficar indo no mercado. Então eu uso e faço pesquisa, porque às vezes você encontra o produto e frete baratos”.
Pessoalmente, Neli entende que os dispositivos fazem muito bem e facilitam muito a vida. “O fato de eu morar sozinha me coloca em contato com a minha família, com amigos e vizinhos. Tanto é que, onde eu ando em casa, eu levo o celular. Não sou neurótica, mas sou precavida: pode acontecer de eu me sentir mal e não conseguir chegar ao telefone. Então eu ando com ele e qualquer coisa eu peço ajuda”.
Mas, para ela, vai além de pedir socorro, caso necessário. “A internet me facilita porque me coloca em contato com o mundo. A minha condição financeira não me dá possibilidade de viajar muito, e a internet permite isso. Conheço várias pessoas que nunca vi pessoalmente. Então pra mim é muito bacana por causa disso: eu me sinto em contato com o mundo, não me sinto sozinha, não me sinto isolada. Por conta da distância, acaba que a gente precisa da internet”.
Já Marcos, que ainda não consegue dormir deixando o celular em outro quarto, conta que sua primeira percepção sobre as tecnologias digitais foi bastante assustadora. “Tinha medo que a nível mundial a gente fosse perder o nosso controle para ela. Hoje eu vejo que isso é quase a mesma coisa que o nosso medo com o carro, há anos atrás. Meu pai tinha medo de usar carro, mas passou. A gente vai aprendendo a lidar. A nossa vida toda está lá hoje”.
O técnico me confessa que inveja meu futuro. Quando tiver 80 anos, diz ele, vai conseguir ver minha geração vindo de Marte, sem poder interferir tanto. “O medo que eu tinha, eu perdi, porque eu acreditei em pessoas da sua idade que estão fazendo a diferença no papel deles, e estão implantando coisas uma simbiose entre tecnologia e ser humano. Claro que sempre vai ter um problema de capitalismo e vendas, e charlatões. A tecnologia está aí para isso, mas ela vai ser cada vez melhor”.
Em um período de pandemia, Marcos também lembra que é muito mais fácil saber pelo quê o mundo todo está passando. Se não fossem as redes sociais, não teríamos a mesma ideia dessa proporção.
É claro que nem tudo são flores. Neli enxerga uma dualidade. Apesar de entender que a internet conecta pessoas distantes, pode também afastar pessoas mais próximas. “Saí pra almoçar com meu irmão, cunhada e sobrinha e estavam todos olhando pro celular. E aí falei: ‘vamos deixar de lado e conversar?’ Então tem que ter alguns cuidados em relação a isso”. Para ela, ao mesmo tempo que o mundo digital coloca em contato com muita gente, o núcleo familiar pode se tornar mais fragmentado. “É muito bom, mas tem que ter critério e bom senso. Tem que se ligar e não deixar que ela te domine”.
Talvez essa pauta não tenha entrado em tópicos polêmicos e mais sérios sobre o uso da internet. As políticas regulatórias, o direito dos usuários à sua privacidade e as respostas aos ataques de ódio… além de outras milhares de questões que também poderiam ser abordadas. Talvez não hoje: afinal, na vida rotineira desses dois personagens entrevistados, elas não foram citadas.
Quando falam sobre o lado ruim das tecnologias digitais, é comum que pensem no vício e no medo das novidades. Sobre isso, penso que Marcos pode trazer uma bela finalização:
“Um dia, eu conversei com uma senhora de 80 anos que me deu uma lição. Eu tinha uma visão muito pessimista sobre a nova geração que está crescendo com as tecnologias digitais. Uma visão pessimista parecida com a que meu pai tinha em relação à minha geração, que nasceu dançando e fazendo funk (como se a gente estivesse ‘perdido’ por causa do teor das letras e da dança). E isso me assustava muito. E aí essa senhora me disse: ‘a sua geração deu tanto medo na minha geração, que a gente teve que ir pro psicólogo. Mas vocês sempre dão jeito. Os responsáveis são as pessoas da sua idade que veem e fazem o futuro ser diferente’”.
Por Lígia de Castro