Um internauta que decide buscar no Google a expressão “pele perfeita” encontra 29 milhões de resultados em 0,35 segundos. O equivalente em inglês, “flawless skin”, consegue ir além, retornando 95 milhões de links no mesmo tempo.
Mas se para a ferramenta de busca a perfeição está a um estalar de dedos, para milhões de pessoas a jornada para se encaixar nas expectativas do rosto impecável é uma tortura que se estende por anos a fio.
A acne, o vitiligo, as sardas, as pintas de nascença: são todas características vistas por certas áreas da dermatologia e cosmetologia como adversidades a serem superadas, vendendo incontáveis tratamentos para quem convive com elas em sua própria pele.
Para aqueles que preferem escapar da dor e dos gastos dos procedimentos mais invasivos, as empresas de maquiagem oferecem ainda um paliativo: as bases de alta cobertura.
E assim criou-se um laço repressivo entre a indústria da beleza e seus consumidores que não atendem às exigências da pele lisa e uniforme.
Só que em tempos de questionamento de padrões, o movimento skin positive incentiva pessoas a conviverem com as particularidades da pele que habitam, procurando possíveis melhorias sem almejar se equiparar a um único ideal.
Um dos precursores desse movimento foi a hashtag Free the Pimple, em referência ao movimento norte-americano Free The Nipple, a favor de mulheres optarem por sair de casa sem sutiã sem serem assediadas por isso.
No caso da “libertação da espinha”, a influenciadora Lou Northcote, criadora da campanha, se inspirou no divórcio entre os seios femininos e a lingerie para compartilhar sua jornada para se separar da maquiagem, em uma rotina diária para esconder a acne.
A modelo, que cresceu em Dubai, contou à revista Women’s Health que começou a sofrer com a pressão estética aos 13 anos, quando ingressou na carreira de modelo.
Lou detalhou que teve seu contrato encerrado pela agência em que trabalhava quando seu quadro de acne se intensificou, sendo orientada a não voltar às campanhas até limpar sua pele.
Depois do episódio, ela começou a usar maquiagem até no convívio com pessoas próximas.
“Mesmo quando nós tínhamos festas do pijama e eu estava no quarto com outras meninas ou quando eu ia para a escola de manhã, eu sempre tinha que estar com o rosto coberto por base”, lembrou a modelo.
Investindo em tratamentos dermatológicos, ela conseguiu se livrar momentaneamente do problema. Mas as espinhas voltaram no que pareceu o pior momento possível: Quando Lou tentava recomeçar sua carreira nas passarelas, dessa vez na Inglaterra, no reality show Britain’s Next Top Model.
Na primeira prova do programa, em 2017, ela teve que se apresentar para os jurados como uma “tela limpa”, sem nenhuma maquiagem, o que a obrigou a expor seu problema de pele.
Algum tempo depois, quando já tinha encerrado sua participação, a modelo se viu aterrorizada pela reação das pessoas quando o reality estreasse na televisão britânica.
Foi então que ela decidiu se antecipar, postando uma foto de seu rosto sem retoques, detalhando sua jornada com a acne.
Após meses de interação e troca de experiências com seus seguidores no Instagram, em agosto de 2018 ela inaugurou o Free The Pimple, que hoje tem mais de 20 mil publicações.
Em sua conta pessoal, com 43 mil seguidores, Lou continua as postagens expondo as imperfeições de sua pele.
Aos 23 anos, ela afirma que o objetivo não é apenas estimular que as mulheres amem suas versões acneicas, mas também propagar informações embasadas sobre tratamentos para o problema, em uma era repleta de tutoriais virtuais milagrosos e fraudulentos.
Entre as publicações, ela também expõe os efeitos negativos e as frustrações nas tentativas de reduzir as espinhas, tendo recorrido inclusive a isotretinoína, princípio ativo do remédio Roacutan, considerado o remédio mais potente e agressivo contra a acne.
“Eu realmente tento usar minha plataforma para educar as pessoas”, disse. “Eu sou sortuda de ter tido acesso a vários dermatologistas e a todos esses produtos de pele diferentes, então tento compartilhar isso”, afirmou.
Abuso sistemático da indústria da beleza
E ao analisar a pressão pela pele perfeita, a indústria da moda continua se mostrando como um elemento central da discussão.
Outra campanha de skin positivity com grande repercussão foi liderada pelo fotógrafo Peter Devito, também em 2018.
Aos 20 anos, o americano começou uma campanha que expunha com palavras as pressões sofridas por quem não tinha “a pele perfeita”.
Modelo com vitiligo escolheu uma das frases preconceituosas que enfrentou pelas manchas de sua pele (Reprodução/Instagram/@peterdevito)
Peter decidiu fotografar seus modelos “imperfeitos” estampando em seus rostos frases ouvidas por eles para reforçar seu suposto defeito.
Entre os retratos, lê-se em modelos com vitiligo “ninguém irá se casar com você com esse rosto” e “você quer ser branco?”.
Uma outra voluntária, identificada como Sarah, destacava o orgulho de uma grande marca de nascença em volta do olho, mas registrando que já foi acusada de mentir: “Você tiraria se pudesse”.
Peter ainda expõe com frequência fotos do próprio rosto para mostrar suas espinhas, defendendo a redução do uso de programas de edição para esconder defeitos comuns a pessoas reais.
Em seu perfil, ele ironiza inclusive a simplificação de questões complexas como a acne, com possíveis motivações genéticas e hormonais, brincando com dicas populares como “beba água”.
O tema e o estilo de Peter viraram sua marca registrada. E depois de quase 3 anos ele já acumula 183 mil seguidores.
Em entrevista à revista Elle no início do projeto, o fotógrafo nova-iorquino destacou que, em sua opinião, grande parte da batalha interna de pessoas com problemas de pele era a “falta de representatividade” nos ensaios.
Para ele, enquanto as modelos exibirem pele de porcelana, o alcance do movimento skin positive pode ser travado.
“Fazendo esse projeto, eu aprendi que algo só pode te definir se você deixar”, defendeu Peter em outra entrevista, para a Vice. “Eu espero que esse projeto irá fazer as pessoas perceberem que nós precisamos de mais modelos com pele diversa. Quanto mais modelos com tez diferente tivermos, mais normais as condições de pele se tornarão”.
Mas seria a Skin Positivity apenas uma ilusão?
Apesar da bolha de positividade criada pelos movimentos de skin positivity, as fundações criadas há décadas pela indústria da beleza não parecem ser tão frágeis.
É importante pensar qual seria a estratégia possível para marcas que sempre venderam soluções para corrigir a pele se reposicionarem no mercado dos dermocosméticos. E se essa estratégia existe sem perda de lucro.
Esse é um problema escancarado mesmo em situações inocentes, como no caso da blogueira Ayesha Amir, do Omã.
No início deste ano, a ativista do movimento skin positive teve um vídeo de maquiagem compartilhado pelo Instagram, da marca Anastasia Beverly Hills, com mais de 20 milhões de seguidores.
Mas em vez da habilidade de Ayesha com os produtos, o que chamou a atenção foi sua pele no início do vídeo, limpa e com bastante acne à mostra.
A influenciadora contou que desde então suas redes foram invadidas com ataques, e até mesmo a presidente da empresa, Norvina, teve que intervir para pedir mais gentileza.
“Eu sou atacada todos os dias por centenas de pessoas só porque tenho acne e marcas de acne”, lamentou Ayesha em entrevista à Vogue.
Ayesha Amir posta fotos gráficas de sua acne em meio aos tutoriais de maquiagem, espantando as tentativas de ataque à sua autoestima (Reprodução/Instagram/@ayeshaamirofficial)
“Nós estamos tão acostumados a ver influenciadoras e blogueiras com pele limpa, retocada e com filtros. Ninguém nunca vai falar sobre o outro lado”, afirmou ela.
O que era pra ser uma associação atípica entre propaganda de beleza e uma mulher com pele “imperfeita” virou um show de imposições de padrão.
Mas apesar da repercussão negativa no Instagram, em seu perfil pessoal Ayesha continua mostrando que, no que depender de sua vontade, continuará expondo o “lado B” da beleza para seus 66 mil seguidores, com destaque para sua pele acneica em meio às fotos totalmente maquiada.
Cultura da vergonha
Ataques como o sofrido por Ayesha não são um fenômeno isolado. Eles fazem parte de um fenômeno definido como “cultura da vergonha”.
Clare Varga, diretora de beleza na WGSN, empresa americana que prevê tendências de consumo e design, explicou que essa cultura está presente nas propagandas de beleza quando elas focam em estimular que as pessoas escondam, e não que assumam, a existência de seus supostos defeitos.
“Mesmo nessa era de amor próprio e positividade corporal, as pessoas continuam se sentindo envergonhadas e inseguras sobre breakouts (crises repentinas de acne). Apesar dos avanços em entender as causas da acne, ainda existem mitos persistentes de que é sobre estilo de vida, ou higiene, ou dieta, e isso é de certa forma auto-infligido e poderia ser resolvido com alguns hábitos de auto-cuidado”, defendeu ela também em conversa com a Vogue.
Essa cultura da vergonha atinge todos os tipos de características físicas, principalmente em mulheres, analisando e julgando de maneira não solicitada seus corpos e rostos.
Quando o assunto é a pele, mesmo superestrelas não estão acima do tribunal que julga problemas de pele, alguns deles patológicos, como “culpa” de quem os tem, diminuindo as pessoas que não alcançam a pele perfeita por não tentarem o suficiente.
Essa exigência de que as celebridades estejam acima de questões normais do corpo humano se reflete também em outra indústria vital: a do entretenimento. Em que até mesmo os personagens adolescentes de séries e filmes teen parecem não contar com a acne em sua lista de problemas, ao contrário da maioria dos jovens que enfrentam a puberdade.
Essa falta de identificação entre o adolescente médio e o adolescente ficcional ajuda a perpetuar essa cultura que aponta e criminaliza “erros” na aparência de determinadas pessoas.
Entre as famosas que sofreram com os comentários sobre sua pele, dois exemplos conhecidos são a cantora Lorde e a modelo Kendall Jenner.
A artista neozelandesa comentou sobre os conselhos dermatológicos que recebeu ao longo de seus anos sob os holofotes, quando era “flagrada” com as espinhas à mostra, contando que foi questionada se “lavava o rosto”, entre outros comentários a culpabilizando por não ter a pele perfeita, o que ela definiu como uma “maldição genética”.
“Quando você tem tido acne por anos e anos, tomado todos os remédios e tentado todas as coisas e as pessoas continuam falando: ‘Sabe o que funcionou pra mim…hidratante’”, ironizou Lorde em um post em seu Instagram, em 2018, tentando responder aos conselheiros inconvenientes.
Já Kendall, que virou assunto depois de ter sido fotografada com uma quantidade visível de acne no tapete vermelho do Globo de Ouro, também em 2018, definiu sua luta contra as espinhas como “debilitante”.
Hoje, aos 25 anos, ela disse em vídeo para a Vogue que conseguiu controlar o problema com mudanças na sua dieta, reduzindo o consumo de alimentos inflamatórios, como os laticínios, mas antes, por pelo menos 10 anos, ela disse ter enfrentado a vergonha de seu próprio rosto.
“Eu tinha 13 anos e voltava para casa chorando todo dia porque as pessoas encaravam a minha pele”, lembrou Kendall ao postar uma montagem de antes e depois no Instagram.
“Apesar de haver problemas maiores no mundo, sofrer de acne para mim foi debilitante. É algo com que eu tenho lidado desde o início da minha adolescência e fez eu me sentir ansiosa, sem esperanças e insegura. Como humanos, eu não acho que compartilhamos nossas inseguranças o suficiente porque nós vivemos em um período em que ser ‘perfeito’ é o padrão. Nós fazemos uma curadoria da nossa vida online e escolhemos os momentos bonitos para postar”, argumentou a ex-angel da Victoria’s Secret.
“Eu gostaria de mostrar a nova geração que nem tudo é perfeito. A insegurança sobre a minha acne me fez criar uma ‘casca grossa’, mas eu não desejo esse sentimento para ninguém”, concluiu ela, se colocando como uma ativista pela discussão em torno da skin positivity.
Se mesmo figuras já vistas como influenciadoras, como as celebridades, não escapam ao crivo do tribunal da pele perfeita, fica ainda mais visível que os exemplos vendidos pelas propagandas e produções audiovisuais não é meramente uma exposição de pessoas reais privilegiadas pela natureza, mas um produto manufaturado pela era dos filtros, maquiagem e Photoshop.
Por Pietra Carvalho / pietracarvalho@usp.br