Relatos paralímpicos: As histórias de quem brilha sob holofotes difusos

MAIS DE 300 MEDALHAS CONQUISTADAS, SENDO 124 DE OURO: este foi o desempenho do Brasil no Parapan-Americano de 2019, disputado em Lima, no Peru. A delegação brasileira levou para casa 100 medalhas a mais que todas as outras nações e mostrou por que é referência no esporte paralímpico, principalmente nas Américas. O que ainda é difícil de entender é a pouca atenção que a categoria recebe da mídia, dos patrocinadores e do público.

Conversamos com três paratletas que prometem manter a chama do esporte paralímpico brasileiro viva por muito tempo. Petrúcio Ferreira, Lorena Spoladore e Ricardinho tiveram o calendário de competições interrompido pela crise do coronavírus em 2020, mas seus planos foram apenas prolongados. Eles continuam focados nas Paralimpíadas de Tóquio, adiadas para 2021, e, enquanto não colocam a medalha no peito, compartilham suas histórias de sucesso e rotinas durante a pandemia com a gente.

Petrúcio Ferreira: como o mais rápido da história conquistou o mundo?

A provocação para a câmera faz parte de um ritual tradicional de todo velocista durante a apresentação de atletas, segundos antes de começar a prova. Ajoelhado com a mão sobre o queixo, Petrúcio Ferreira posa de forma séria enquanto tenta aliviar a pressão da final dos 100 metros rasos no Mundial de Dubai de 2019. 

Uma leve passagem da mão sobre o rosto transforma a seriedade em sorriso. Um gesto de destruição, arrancando ‘algo’ do braço esquerdo é seguido de uma provocação para o público: uma apontada para a câmera. Finalmente, ele parte para o famoso “meio coração” – que se tornou conhecido após a medalha de ouro nos Jogos Paralímpicos do Rio em 2016. 

A confiança durante a apresentação caminha junto à expectativa de que o atleta paralímpico mais rápido do mundo conquiste outra medalha. Mas nem mesmo o favoritismo faz com que a pressão diminua. 

“Às vezes eu sou um pouco ansioso”, comenta Petrúcio Ferreira. “Então, para me conter com tudo isso, eu acabo interagindo. Brincando com os colegas de seleção, ouvindo música, conversando com alguém da família. Focado na competição, mas tentando esquecer ao máximo o que eu vou fazer, para tentar chegar o mais descontraído possível.” 

A competição rendeu mais uma medalha para a coleção de Petrúcio, que além de vencer os 100 metros rasos, também conquistou novamente o título de atleta paralímpico mais rápido do mundo, quando quebrou na semifinal o recorde mundial (que já era dele), ao registrar 10 segundos e 42 milésimos. A etapa de Dubai ainda renderia outra medalha de ouro nos 400 metros, com o tempo de 47 segundos e 87 milésimos. 

“Ao chegar no Mundial eu estava determinado a fazer um bom resultado. Acabei conseguindo e atingido um objetivo grande que tinha, que é me tornar o paraolímpico mais rápido do mundo”, revelou o velocista. 

Mas quem olha os resultados de 2019, que também lhe rendeu duas medalhas de ouro e uma de prata nos Jogos Parapan-Americanos de Lima, mal sabe que o atleta imaginou que não iria conseguir competir. No dia 2 de janeiro daquele ano, Petrúcio fraturou o maxilar e quebrou dois dentes após pular e se chocar com uma pedra em um rio, no interior da Paraíba. 

“Foi um início de temporada bem difícil para mim, cheguei a passar três meses sem fazer nada. Fiquei dois meses só com alimento líquido porque não conseguia mastigar. Teve um momento que eu não acreditava que conseguiria chegar no Campeonato Pan-americano ou no Mundial. Devido ao acidente, eu perdi muita massa muscular. Enquanto todo mundo já estava bem adiantado na caminhada para o Mundial, eu estava atrasado,” revelou.

Ainda assim, o atleta conseguiu voltar a tempo para as competições e acabou sendo nomeado pela premiação do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) como um dos melhores do ano. “Ele é muito competitivo”, afirmou Pedrinho Almeida, treinador de Petrúcio. “É um cara que gosta do desafio e já é uma pessoa muito motivada para competir. Diante de um desafio e de competidores mais fortes ou tão fortes quanto ele, mais motivado ele fica para enfrentar esses momentos”.

O jovem atleta de 23 anos, que nasceu em São José do Brejo Cruz, no interior da Paraíba, olha para o ano de 2019 com certo orgulho de ter enfrentado um dos momentos mais difíceis de sua vida. Hoje, ele se entrega de corpo e alma para o esporte, que mudou completamente a sua história: “Eu costumo a falar que de uma hora para outra a minha vida não deu uma virada, ela deu uma tremenda capotada”. 

“Coisas que eu só via pela televisão e tive a oportunidade de ver pessoalmente. Viajar para países que eu nunca imaginei viajar. Pelo esporte consegui dar uma condição melhor a minha família, aos meus pais. Dá uma dimensão da força que o esporte tem para mudar vidas”, afirma Petrúcio.

COM APENAS DOIS ANOS DE IDADE, Petrúcio perdeu uma parte do braço esquerdo em um acidente com um moedor de capim. “Foi um pouco assustador para os meus pais, já que eu fui o primeiro filho. Eles ficaram se culpando sobre tudo isso. Eu sei que não foi culpa deles”, afirmou.

“Cheguei a sofrer preconceito, em alguns momentos eu tinha vergonha da minha deficiência. Por ser deficiente, tinha criança que comentava sobre o meu braço na época de colégio. Os meus pais sempre me mostraram ao máximo que isso não me fazia diferente de ninguém. Sempre ganhei força em tudo isso”, disse.

O primeiro contato com o esporte não aconteceu em uma pista de atletismo, mas com uma bola de futebol nos pés. O menino, que nunca gostou de ficar parado em casa e sempre buscava alguma atividade para fazer, alimentou o sonho de virar jogador de futebol, assim como o seu ídolo da infância: Ronaldinho Gaúcho. O amor pelo jogos de futsal e de campo, deu lugar às pistas de forma tardia, quando tinha 16 anos.  

Jogando uma partida de futsal em 2013, Petrúcio recebeu a proposta que mudou totalmente a sua vida e o futuro do esporte paralímpico brasileiro: uma proposta para participar de uma etapa de atletismo. Na segunda competição, Petrúcio provou todo o seu potencial. Sem treinar sequer uma vez, correndo somente o que sabia com sua experiência jogando futebol, o atleta venceu a prova e foi convocado para a seleção de jovens.

Foi somente no ano seguinte, em 2014, quando tinha 17 anos, que Petrúcio se mudou para João Pessoa e investiu totalmente no atletismo. Nesta mudança, ele conheceu o seu atual treinador, Pedro de Almeida Pereira, que hoje em dia está salvo na sua lista de contatos como ‘Pedrinho Doido’.

“Quando ele veio para cá, era um menino que não conhecia nada do mundo. Muito pobre, muito humilde. Não tinha nem um tênis”, contou o treinador e professor da Universidade Federal da Paraíba. “No dia em que os ele veio com os pais, eu tive uma conversa. Falei tudo o que poderia acontecer com ele, com sua vida, a partir do desenvolvimento do trabalho. Até hoje, eu não errei nenhum ponto dos que eu projetei. Isso aconteceu de fato, a mudança de 360 graus na vida dele. O esporte introduziu Petrúcio no mundo e hoje é esse destaque mundial.”

A mudança estratosférica na vida de Petrúcio Ferreira aconteceu dois anos depois, nos Jogos Paralímpicos do Rio. O velocista deixou a sua marca ao conquistar o ouro nos 100 metros rasos na classe T-47, quando também quebrou o recorde mundial, registrando 10 segundos e 57 milésimos (naquele momento o recorde já era dele, pois o atleta havia registrado 10,67 nas semifinais).  

O resultado nos 100 metros rasos o colocou no topo do esporte e deu um desejado ouro para o Brasil nos Jogos Paralímpicos, mas essa não é a única lembrança especial de Petrúcio em 2016. O atleta também faturou a prata nos 400 metros, uma segunda colocação que teve um gosto diferente, já que ele não estava ranqueado entre os melhores da prova. 

“Foi especial, mesmo não sendo a prova que era a minha favorita. Eu me aventurei.  Com os meus resultados não tinha nem condição de estar na final e, mesmo assim, consegui sair dos 400 com a medalha de prata”, relembrou.

Pensando em Tóquio, na próxima edição da Paralimpíada, os 400 metros viraram um foco de Petrúcio. Mesmo admitindo que não gosta da prova, o atleta passou a treiná-la desde de 2019 e, diferentemente de como aconteceu no Rio, entrará em Tóquio como um dos favoritos para subir ao topo do pódio, pois conquistou o ouro no Parapan de Lima e no Mundial de Dubai de 2019.

O lado extremamente competitivo de Petrúcio faz com que ele consiga obter resultados expressivos em pouco tempo. A evolução nos 400 metros é só mais um exemplo de um atleta que em apenas três anos largou o sonho de jogar futebol para conquistar a medalha de ouro na Paralimpíada de 2016. Mas, para o seu treinador, ele ainda não chegou na sua melhor forma.

“Existe uma diferença incalculável entre a corrida dele hoje e a corrida que ele fazia em 2014. Todas as qualidades que interferem direta e indiretamente no nível de performance, na mecânica e no desempenho, todas estão em evolução. Ele é um atleta em construção. Não está no seu plateau, que se diz: ‘A partir desse ponto ele não vai evoluir’. Vai evoluir bastante. Ele ainda tem 12 anos para fazer história no esporte paralímpico, no mínimo”, opinou.

ENTRE UM VÍDEO DOS TRAPALHÕES no Youtube, uma brincadeira com os seus cachorros ou ajudando seu pai nas atividades do sítio no Rio Grande do Norte, Petrúcio Ferreira tenta se manter ativo durante a pandemia do novo coronavírus e no planejamento para Tóquio. 

“Quando eu não estou treinando, estou dormindo. Não consigo passar muito tempo parado em um local só e não consigo assistir filmes. Mas nesse momento tive que me adaptar ao máximo”, afirmou o atleta. 

Por conta da pandemia, que também forçou o adiamento dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos para 2021, o velocista voltou para o sítio que comprou para o pai no Rio Grande do Norte e tem feito os seus exercícios no local. 

A rotina de treinamentos também foi alterada. Com foco na saúde dos atletas e no aumento da imunidade, Pedro de Almeida passou uma sequência de exercícios com pouco volume e baixa intensidade, que devem ser feitos de sábado a sexta e por no máximo duas horas. 

  “Infelizmente, por conta da pandemia a gente teve que mudar a rota, suspender o que vinha sendo feito. Neste momento, a performance está em terceiro plano. Estou preocupado com a saúde e com o bem-estar dele e dos outros atletas que treino” afirmou Pedrinho, que além de treinar Petrúcio também comanda outros atletas de alto nível, como Jefferson Marinho de Oliveira e Cícero Valdiran Nobre.

Aproveitando o tempo de sobra na pandemia, Petrúcio retomou seu curso de Educação Física na Unisal, que foi necessário trancar por conta das viagens e das competições, que dificultavam a rotina de estudante. Agora, ele tem conseguido acompanhar as aulas da universidade.

A vontade de ingressar nos estudos e pensar na vida após aposentadoria foi despertada pela relação de Petrúcio com ‘Pedrinho Doido’. “É um cara que eu admiro muito pela sua competência, como ser humano e na forma como ele trabalha os atletas. Me despertou vontade de me tornar um treinador como ele é para ajudar a próxima geração”, afirmou o atleta.

“Meu relacionamento com o Petrúcio é o melhor possível”, afirma Pedrinho. “Ele é um dos melhores talentos que eu já tive. Petrúcio foi uma das pessoas mais ricas em todos os sentidos com quem eu já trabalhei, entre outras que já passaram por mim e ainda estão comigo. É o ponto fora da curva, em termos de qualidade, de potencial e, assim vai…”

VISANDO TÓQUIO 2021, Petrúcio sabe que os holofotes estarão sobre sua cabeça, com a esperança de que  “o mais rápido do mundo” seja capaz de trazer uma medalha de ouro para o Brasil. Mas, mesmo com toda a expectativa dos próximos Jogos Paralímpicos, o atleta tenta não se colocar sob pressão. 

“Hoje eu faço o que eu gosto: estar treinando, competindo, representando o meu país. Tudo isso que eu faço é por amor e acaba não se tornando uma pressão para mim. Sei que chegando na prova vou enfrentar adversários fortes, mas tenho consciência que estou pronto para dar o meu melhor. E que meu melhor é subir no ponto mais alto do pódio”, revelou. 

Motivado a encontrar o seu limite e acostumado a quebrar os próprios recordes, o velocista ainda não sabe o que o futuro lhe guarda. Talvez uma medalha paralímpica nos 100 metros rasos em 2021 ou até o tão sonhado ouro na prova dos 400. 

Mas, independente do que acontecer, seja conquistando bons resultado nas pistas ou adquirindo sucesso como professor de Educação Física, Petrúcio sabe que a sua essência não vai mudar nunca: “Um cara alegre, sorridente, que gosta de andar sempre espalhando alegria.”

Lorena Spoladore: “Quero voltar de Tóquio com três medalhas de ouro”

Lorena não via a hora de o Comitê Olímpico Internacional (COI) se posicionar, aguardando ansiosamente a decisão sobre a situação dos Jogos. Sem sair de casa por causa da disseminação da doença – ainda mais por São Paulo ser desde o início o epicentro da pandemia no Brasil –, ela estava realizando os treinos em seu apartamento de 65 m². 

Acostumada a treinar até a exaustão, o treinamento caseiro angustiava a atleta. “Não tá dando certo, isso não vai funcionar”, relembra, em uma mistura de risada com desespero, das mensagens que enviava aos treinadores: “Na pista a gente treina horas, aqui eu estou treinando 40 minutos e mal consigo suar, não vai dar certo, não vai dar tempo”.

“Eu quase surtei, foram cerca de 14 dias até a decisão, foi uma tortura psicológica horrível”, desabafa. À medida em que boatos sobre o adiamento iam surgindo e potências do esporte (como o Canadá e os Estados Unidos) começaram a pressionar publicamente o Comitê, ela foi ficando mais calma. “Quando a notícia saiu, eu consegui respirar mais tranquilamente.”

Para a próxima edição dos Jogos, Lorena tem grandes ambições: “Quero voltar de Tóquio com três medalhas de ouro”. A atleta de 24 anos quer repetir a conquista do ouro, sensação que vivenciou pela primeira vez há sete anos.

DAS 16 MEDALHAS DE OURO conquistadas pela delegação brasileira no Mundial Paralímpico de Atletismo de 2013, na França, uma foi o triunfo de uma paratleta cega de 17 anos: Lorena Salvatini Spoladore.

Convocada naquele ano para representar o país no Mundial adulto, a jovem atleta conquistou o pódio no salto em distância da categoria T11 com a marca de 4,37 metros. E logo em sua primeira participação em competições internacionais. 

Junto da conquista, veio o sentimento — quase como uma necessidade — de honrar o título, de orgulhar não apenas a sua família como toda a nação: “Eu não sou mais aquela Lorena Spoladore, filha da Dona Zilda e do Walter. Agora sou uma medalhista de ouro, eu represento o Brasil.”

Mas essa inesquecível estreia não era imaginada nem mesmo por ela, que conta ter competido “sem a mínima pretensão”. “O Mundial de 2013 foi o divisor de águas da minha carreira”, relata Lorena, que até então treinava atletismo porque gostava, sem encarar como profissão. “Não tinha noção nem dimensão de quanto o esporte paralímpico era grandioso. Quando ganhei a medalha, vi a responsabilidade que estava em cima de mim”, relembra.

Desde então, ela acumula pódios e sentiu diversas vezes a sensação de “dever cumprido” ao conquistar medalhas, inclusive em diferentes modalidades. Em 2015, foi medalhista de prata no salto em distância nos Jogos Parapan-Americanos de Toronto (Canadá) e no Mundial de Doha (Catar). No ano seguinte, no Rio 2016, sua primeira Paralimpíada, ganhou o bronze no salto em distância e a prata no revezamento 4 por 100 metros.

O início de toda essa história foi traçado depois daquela primeira participação no Mundial, há quase sete anos, em que a jovem Lorena escolheu de fato seguir a carreira do esporte. “Eu precisei decidir o que realmente queria fazer da minha vida, se estava disposta a me tornar uma atleta de alto rendimento, porque não é brincadeira. E graças a Deus eu decidi que sim, e tem dado certo.”

O PRIMEIRO ESPORTE com que Lorena teve contato foi o balé, aos oito anos de idade na capital de Goiás. Naquela época, ela já era totalmente cega há cerca de dois anos, devido a um glaucoma congênito que foi lhe tirando gradativamente a visão. E fazia quatro anos que a futuro atleta, nascida em Maringá, vivia com a família em Goiânia, cidade para a qual se mudaram quando a avó materna faleceu.

“Era quem mantinha a gente no Paraná, porque minha mãe era muito apegada com ela”, comenta sobre a avó. Após a perda familiar, decidiram se mudar para a capital goiana, onde um tio residia e que conta com centros oftalmológicos de referência, como o Centro Brasileiro de Cirurgia de Olhos e o Instituto do Olhos. Antes, na cidade natal, Lorena tinha que viajar para São Paulo de três em três meses em função de seu tratamento.

Em Goiânia, começou como bailarina antes de iniciar no atletismo, e foi conciliando ambas as práticas durante a adolescência até ser convocada para o Mundial de Paratletismo de 2013. Sobre essa fase de sua vida, Lorena ressalta a importância de um professor de Educação Física que foi marcante para a sua carreira: “Foi quem me resgatou em uma época em que não queria mais treinar, e que me fez voltar ao atletismo antes do Mundial”.

A pessoa em questão é João Turíbio, então professor voluntário no Centro Brasileiro de Reabilitação e Apoio ao Deficiente Visual (Cebrav), quando conheceu a jovem atleta. “A importância foi, num primeiro momento, colocar o ‘Jaba’ na vida dela”, introduz Turibio, atual gerente de Práticas Paradesportivas e Paralímpicas da Secretaria Estadual de Esporte, sobre seu papel na trajetória da atleta.

Na época, quando a garota estava começando a se destacar na modalidade, o educador indicou ‘Jaba’, seu aluno na Universidade Estadual de Goiás, para ser o primeiro atleta-guia de Lorena, e começou também a colaborar com o seu treinamento. A partir de então, ela passou a participar com regularidade de provas de atletismo em competições oficiais e não oficiais. Tudo caminhando bem, até que a lista de convocados para o Mundial de Paratletismo culminou no verdadeiro impacto de João Turíbio na carreira da atleta.

“O segundo momento de importância”, explica o professor de Educação física, “foi minha intervenção quando Lorena foi convocada para o Mundial de Lyon e Jaba, como guia, não foi”. O educador revela que, na ocasião, a atleta ficou muito chateada e o guia, na imaturidade, sugeriu que a jovem de 17 anos não fosse à competição ou blefasse na prova. “Foi quando intervi em conversa com ela e sua mãe e defendi que fosse à competição e desse o seu melhor”, esclareceu.

“Ela era uma guria que já apresentava maturidade de atleta. Lembro quando me disse que treinava para ser campeã mundial, isto ainda criança”, recorda. Lorena, então, foi à França e retornou ao Brasil com a medalha de ouro no salto em distância, além da decisão de seguir no atletismo. E, ao escolher o rumo das pistas, a jovem se separou da dança, antiga companheira: “Foi uma das decisões mais difíceis que tive que tomar, porque eu gostava muito do balé, mas meu corpo não ia aguentar as duas coisas. É humanamente impossível.”

COM O FUTURO ENCAMINHADO, Lorena, que vivenciou a realidade competitiva, percebeu a necessidade de ter um treinamento profissional para a carreira que escolheu. O fator geográfico na infraestrutura esportiva brasileira é uma condicionante de grande peso. Após consultar os treinadores da Seleção, ela decidiu se mudar para São Paulo aos recém completados 18 anos, despedindo-se de seus familiares que continuaram em Goiás.

Família, a propósito, é um tema que aparece várias vezes em uma conversa com Lorena. “A minha família é a base de tudo, sem eles eu não teria me tornado a atleta que me tornei”, relembra. Ao resolver ir para o Estado paulista, a atleta relembra, rindo, da reação da mãe: “Quando falei ‘Mãe, vou embora’, ela quase infartou, coitadinha”.

A mais de 900 quilômetros de distância, a jovem se instalou primeiramente em São Caetano do Sul, onde treinava no Clube de Atletismo BM&F Bovespa. Na cidade do ABC Paulista, em meados em 2014, Lorena conheceu Renato Ben Hur, seu atual guia, que estava começando na profissão e chegou para ser um atleta-guia reserva. No final daquele ano, a condição mudou.

Querendo trocar de guia, Lorena convidou Renato para ser seu novo parceiro. “Falei para ela que nunca tinha guiado e que ela seria a minha primeira atleta. E Lorena disse: ‘Vamos encarar juntos essa missão’. Então, a gente iniciou a parceria”, revela Ben Hur. Tal companheirismo já dura mais de 5 anos e acumula competições e medalhas.

Na opinião do guia, um dos sucessos da parceria é a boa relação e transparência, mas enfatiza a separação entre amizade e profissionalismo. “Dentro da pista, eu tenho que cobrar o máximo dela, tenho que fazer o papel de chato. Além do treinador, ainda tem eu”, comenta. Ele acredita que a motivação da atleta é ser melhor a cada dia: “Se faz um treino bom, no próximo quer fazer melhor, está sempre buscando evoluir. Lorena é guerreira, costumo falar que nem ela sabe a força que tem”.

Em 2015, Lorena ganhou uma dobradinha de prata no salto em distância, sendo medalhista tanto no Mundial de Doha quanto no Parapan de Toronto. Determinada, como reforça Ben Hur, a atleta não sossega até conseguir bater suas metas, e logo que consegue já estabelece novos objetivos. O guia destaca um dos momentos mais marcantes que passaram juntos: os Jogos Paralímpicos de 2016, realizados no Rio de Janeiro. 

“A gente já viveu bastante coisa, mas no maior evento esportivo do mundo, no Brasil, a gente estava em casa. Foi a nossa primeira competição deste tamanho, então foi especial nesse sentido”, recorda. Nos Jogos, Renato aponta que a dupla teve muito aprendizado e amadurecimento. Além, claro, das conquistas.

Assim como em sua estreia no Mundial, Lorena marcou presença no pódio logo em sua primeira Paralimpíada. E por duas vezes. Uma foi a conquista do bronze no salto em distância da mesma categoria. A outra veio no revezamento 4×100 metros da categoria T-11, junto ao guia Renato Ben Hur, que lhes rendeu a medalha de prata. 

Da competição, a atleta lembra que sua mãe “quase morreu”. Mas no bom sentido. Em sua venda, sempre personalizada, Lorena escreveu “Mãe”, e conta que Dona Zil mal conseguiu ver a corrida de tão emocionada com a homenagem. A outra recordação é a sensação da medalha no pescoço: “O sentimento de ganhar uma medalha paralímpica é de dever cumprido, de recompensa, de que todo o sacrifício valeu a pena e que consegui alcançar o meu objetivo principal, que é a medalha paralímpica”.

“PARA SEGUIR A CARREIRA DE ATLETA, a gente precisa abrir mão de muitas coisas na vida”, reforça, antes de introduzir o assunto família mais uma vez: “Às vezes eu passo seis meses sem ver a minha mãe. Por causa da rotina de treinos, é complicado sair de São Paulo para visitar a família em Goiânia”. Lorena treina de segunda a sexta em dois períodos, e ainda nas manhãs de sábado, no Centro Paralímpico Brasileiro (CPB) localizado na capital paulista.

Durante as seis horas diárias de treinamento, a atleta alterna entre exercícios de musculação, técnica, fortalecimento com fisioterapeuta e “tiros” nas pistas. Tudo com objetivos definidos: “Estabeleço com a equipe de treinadores a minha prova alvo, e todo ano a gente analisa as minhas marcas pessoais e o meu desenvolvimento durante o ciclo anual”.

A análise equipara os resultados pessoais da atleta com as melhores marcas registradas nas competições. A partir dessa comparação, os treinadores mensuram o percentual de melhora necessário nos índices da atleta para se tornarem elegíveis às medalhas de ouro e recordes mundiais nas modalidades em que ela treina. As metas miram no topo.

Lorena compete, atualmente, em três provas: salto em distância, 100 metros e 200 metros rasos. Apesar de possuir bons resultados e de já ter sido medalhista no revezamento 4×100 metros, ela decidiu parar de treinar para esta modalidade em 2017. “As minhas provas favoritas são os 100 metros e o salto em distância. Não adianta treinar e me matar para correr os 400 metros se eu não estou afim, porque o treino não vai ter o mesmo resultado”, comenta.

No entanto, tal decisão custou a vaga da atleta no Mundial de 2017 de Londres (Inglaterra). Lorena conta que não quis competir no revezamento 4×100 para poder focar e apostar nos 100 metros rasos, mesmo com as ressalvas dos treinadores e sabendo que a primeira modalidade estava mais fácil para se qualificar. “Como eu não consegui a evolução que eu precisava e não consegui atingir a marca nos 100 metros, não fui pro Mundial. São escolhas”, desabafa.

Só que Lorena, como ressaltam seus companheiros, não é a atleta que desiste. Dois anos depois, no Mundial seguinte, ela foi medalhista de bronze em Dubai (Emirados Árabes Unidos) pela primeira vez em provas individuais de pista, justamente nos 100 metros e nos 200 metros rasos. Além disso, também conquistou em 2019 o bronze na prova dos 200 metros nos Jogos Parapan de Lima (Peru) .

“Eu sempre admirei nela um poder de crescer nas competições”, revela Fábio, um dos seus atuais três treinadores, que a conheceu primeiramente como atleta adversária. “Nós começamos a trabalhar juntos no início de 2018 e eu pude identificar que o poder que ela tinha de crescer nas competições vinha muito do treinamento dela. Ela é uma atleta que dificilmente se dá por vencida”, comenta o integrante da seleção.

Com a performance e as medalhas de 2019, Lorena atingiu o índice para competir nos Jogos Paralímpicos de Tóquio, programados para este ano antes do adiamento para 2021 em função da pandemia da Covid-19. “A gente não sabe como vai ser após a quarentena, mas temos consciência de que, devido ao seu treinamento, determinação e força de vontade, Lorena vai conseguir superar”, defende Fábio.

A MUDANÇA DE DATA DOS JOGOS para o dia 24 de agosto do ano que vem fez Lorena retornar para a casa dos pais, em Goiânia. Por enquanto, ela mantém uma rotina de exercícios para preservar a condição física, sabendo que o ciclo de treinamento terá de recomeçar após a pandemia. A atleta acredita que, passada a pandemia, se tiver um ano de preparação para a competição é um prazo suficiente: “Se manter condicionamento, cuidar da alimentação, pegar firme e se dedicar, dá tempo”.

Maior competição esportiva paralímpica do mundo, a Paralimpíada possui um grande impacto tanto para o fomento quanto para a valorização do esporte perante a sociedade. Lorena comenta sobre as expectativas para o público nos Jogos no Brasil: “Eu não imaginava que o estádio estaria tão lotado, fiquei surpresa. Estava muito cheio em vários dias e em várias finais, nós atletas ficamos enlouquecidos”.

Lorena percebe uma evidente mudança na forma com que o esporte paralímpico vem sendo destacado pela mídia e tratado no país como o grande legado da Rio 2016. “A diferença de quando eu comecei a competir, em 2010, para hoje, é muito grande. E tá crescendo cada vez mais. As pessoas têm outra visão, já entendem que ser atleta paralímpico hoje em dia é uma profissão e eles admiram muito” aponta, orgulhosa.

Para a próxima edição dos Jogos, Lorena sonha com o ouro em Tóquio, depois de ter sido medalhista de prata e de bronze no Brasil. “Estou sendo ambiciosa com meu treinador, já falei que quero voltar de Tóquio com três medalhas de ouro”, revela. Ao médio e longo prazo, ela pretende ser a detentora dos recordes mundiais nas provas dos 100 metros, 200 metros e no salto em distância. “Está tão perto, mas tão longe ao mesmo tempo”, completa, com a leve descontração de uma atleta que sabe onde quer – e que tem tudo para – chegar.

Futebol em 5: A seleção que reina nos Jogos Paraolímpicos?

NENHUM TIME ENTRA nos Jogos Paralímpicos de Tóquio 2021 tão vitorioso quanto a Seleção Brasileira de Futebol de 5 – esporte praticado por deficientes visuais. O pentacampeonato mundial conquistado em 2018 e o quarto título do Parapan-Americano de 2019 aumentam o favoritismo para os próximos Jogos, mas também criam um ambiente de muita pressão. Com o fortalecimento da Argentina, China e Irã na modalidade, o Brasil será desafiado na disputa pela quinta medalha de ouro paralímpica no Japão.

“Nenhuma outra seleção teve o prazer de colocar uma medalha de ouro no peito. E é por isso que nossa responsabilidade aumenta a cada ciclo”, afirma Cássio, fixo brasileiro.

Enquanto tentam controlar a ansiedade que antecede os Jogos Paralímpicos, adiado para agosto de 2021 após a pandemia do novo coronavírus, os jogadores recordam de forma especial a última edição disputada no Rio de Janeiro, quando subiram ao topo do pódio pela quarta vez seguida.

As arquibancadas cheias respeitaram completamente a modalidade, que requer silêncio da torcida para que os atletas consigam ouvir o som da bola durante os dois tempos de 25 minutos. A cobertura jornalística, a recepção calorosa e a pressão de exercer o domínio em casa formaram um clima que os jogadores não estavam acostumados, mesmo fazendo parte de uma das equipes mais vitoriosas da história. “Foi bem mais especial que outras (edições)”, revela Ricardinho, capitão da seleção e autor do único gol na final contra o Irã.

“Ganhar Rio 2016 para mim foi uma sensação inenarrável”, confessa Cássio. “Foi a maior competição que participei e acredito que nenhuma irá superar a atmosfera que envolveu o Rio.”

Além de vencer as quatro paralímpiadas disputadas, o futebol de 5 brasileiro soma seis Copas Américas das nove que participou, tornou-se pentacampeão mundial em sete participações e ainda conquistou a medalha de ouro nas quatro edições do Parapan-Americano. Mesmo assim, os atletas nunca tinham presenciado uma atmosfera semelhante à do Rio de Janeiro em 2016.

“O Brasil tem uma seleção vitoriosa como essa e não sabe que cego joga futebol”, diz o técnico do Brasil Fábio Vasconcellos. “Ainda tem gente que vê ceguinho como coitadinho e não como atleta. Está melhorando um pouco, mas deveria melhorar ainda mais.”

O sonho de uma maior visibilidade é de um time que busca manter o domínio e ter mais uma medalha paralímpica para guardar na sala de troféus. Assim como a dor sentida com a ausência de reconhecimento vem de uma equipe que ficou onze anos sem perder um único título. 

A derrota na final da Copa América de 2017 para a Argentina foi duramente sentida por jogadores que esqueceram a sensação de sair das competições sem a taça. O último revés em finais até então tinha acontecido em 2006, quando os hermanos bateram o Brasil na final da Copa do Mundo disputada em Buenos Aires.

Contando com os maiores jogadores do mundo como Cássio, Jefinho, Gledson e Nonato, o Brasil também tem em seu capitão um dos pilares de uma geração vitoriosa. A trajetória de Ricardinho, jogador que com 16 anos já vestia a camisa verde e amarela, caminha paralelamente à história da seleção que dominou o esporte de forma invicta de 2006 a 2017.

ARGENTINA E CHINA não possuem as melhores memórias de Ricardinho, sendo constantes vítimas de boas atuações do capitão da Seleção Brasileira. Na final da Copa América de 2009, o ala-ofensivo marcou dois gols contra os hermanos, sendo um deles uma pintura de cavadinha. 

O jogo entraria para a história como uma das 26 vitórias de uma rivalidade de domínio brasileiro. Nos 52 jogos contra a Argentina, o Brasil perdeu apenas cinco vezes e empatou outras 21. A diferença no saldo de gol é ainda mais estratosférica: são 55 tentos marcados e 17 sofridos. 

Fábio recorda muito bem um dos duelos de Ricardinho contra a outra rival China. Na semifinal do Mundial de 2014, a seleção voltou para o intervalo perdendo de 1 a 0. “Se perdêssemos, eu provavelmente estaria fora”, revela o treinador. 

Após dar a sua preleção no vestiário, o técnico percebeu algo incomum. O capitão, que costuma a sair primeiro e liderar o time de volta para o campo, decidiu esperar, ficar por último e entrar ao lado do treinador: “Fábio, não se preocupa que a gente vai ganhar”. O ala cumpriu sua promessa. Com um gol de falta e outro com a bola rolando, o camisa 10 liderou a seleção na virada por 2 a 1, garantindo a classificação para mais uma final – e também o emprego do técnico. 

No entanto, antes mesmo de liderar o Brasil e se tornar conhecido como Ricardinho, Ricardo Steinmetz Alves sonhava em se tornar um jogador de futebol de campo, assim como o seu ídolo, Ronaldinho Gaúcho. Mas um problema no olho interviu. 

O menino nascido na cidade de Osório, no Rio Grande do Sul, começou a apresentar problemas de visão por conta de um deslocamento de retina. Após cinco cirurgias mal sucedidas, o jovem ficou cego. “O que me entristeceu foi pensar que eu nunca mais poderia jogar bola”, contou o atleta. 

Com dificuldades de acompanhar as aulas, ele se mudou com o pai para a capital Porto Alegre e se inscreveu no Instituto Santa Luzia, escola focada para o aprendizado de deficientes visuais. A mudança permitiria que Ricardo voltasse a sonhar em representar a Seleção Brasileira, sendo apresentado a diversas modalidades paralímpicas, como goalball, natação, atletismo e o futebol. 

“Eu me deparei com muitos alunos da minha idade que praticavam o futebol de 5. Se eu ficasse no município do interior onde nasci, talvez não acontecesse, já que por ser um esporte coletivo fica difícil praticar. É um problema que acontece muito. Os alunos deficientes estão espalhados por vários municípios e fica difícil desenvolver o esporte coletivo”, contou o atleta.

Com a oportunidade de praticar o esporte, Ricardinho se destacou. O alto desempenho fez o ala assinar seu primeiro contrato como profissional aos 15 anos de idade. Era muito comum ele ouvir de seus companheiros que tinha a chance de chegar à Seleção Brasileira com 19 ou 20 anos, e que se tivesse o planejamento correto poderia conquistar seu sonho em quatro ou cinco anos. Mas a ascensão do atleta foi mais rápida. 

Um ano depois, em 2005, Ricardinho foi chamado para defender o Brasil em um amistoso contra a França, só que passou a maior parte do tempo no banco. Olhando para trás, o jogador revela que ficou surpreso com o que se desenrolou. “Foi muito rápido!”, conta Ricardo sobre os eventos que se sucederam. “Eu sonhava em ser jogador profissional e já estava muito realizado. Mas eu não cogitava negócio de melhor do mundo. Não tinha dado tempo para eu pensar isso. Era só um adolescente”. 

A ascensão meteórica aconteceu na Copa América IBSA 2006, uma competição que não teve a participação da Argentina. Enfrentando a Bolívia, o Brasil aplicou uma goleada de 13 a 0, que contou com seis gols do jovem ala brasileiro. Mais tarde, durante a Copa do Mundo de 2006 disputada em Buenos Aires, Ricardinho deixou mais uma vez a sua marca. O atleta foi responsável pelos três gols do Brasil na semifinal contra a Espanha. Apesar de perder a final para a Argentina, o menino de 17 anos terminou o ano como o melhor jogador do mundo. 

Além de ser o atual técnico do Brasil, Fábio Vasconcellos foi goleiro da seleção entre 2003 e 2012 e esteve presente durante a ascensão de Ricardinho. Para ele, o atleta evoluiu muito desde da primeira vez que foi eleito o melhor do esporte. 

“Ele ia todas para cima do adversário quando era mais novo. Quando fazia gols estava tudo muito bom. Mas, às vezes, se a bola não entrava ele cansava e chegava desgastado no final do jogo. De todos os jogos que acompanhei dele, eu nunca vi Ricardinho jogando mal. Mas, agora ele sabe a hora de decidir”, conta o treinador.

Com 31 anos, o experiente camisa 10 se destaca pela simplicidade fora das quadras. Luan, atual goleiro da seleção que também atua ao lado de Ricardinho no clube gaúcho Agafuc, se tornou extremamente próximo do camisa 10, dividindo quarto com o atleta na concentração brasileira. “Dentro de quadra ele é o monstro que todos vêem, mas o que chama mais atenção nele é o ‘extra quadra’. O ser humano incrível que ele é. Tenho ele como um amigo, que vou levar para a vida”, conta. 

“Ele é bastante extrovertido”, descreve o fixo Cássio. “Adora estar no meio do grupo e bater papo com os caras novos. É um cara que dá bastante atenção para as pessoas que se aproximam dele.” 

A amizade cultivada com Luan e Cássio não é uma exclusividade, mas um padrão de um atleta que separa o momento do jogador e do ‘Ricardo’ que sobra do lado de fora das quatro linhas. Enquanto cultiva uma conversa sobre os seus cachorros com os companheiros de time ou fala sobre música e sua banda CartAberta, o capitão se destaca pela simplicidade no dia-a-dia. 

“Não dou bola para coisa material, quanto menos coisa melhor”, confessa Ricardinho. “Cada vez mais reflito sobre isso porque conheço os dois lados da moeda. Conheço o que é ser praticamente ninguém aos olhos da sociedade e o que é ser badalado, porque depois de ganhar a medalha e arrebentar jogando bola, todo mundo vem dar tapinha nas costas.

COM O RELÓGIO MARCANDO 22 minutos e 19 segundos do segundo tempo, o Brasil tinha uma falta contra a Argentina na final da Copa do Mundo de 2018. Enquanto ouve o som da trave que o ajuda a reconhecer onde está o gol, Ricardinho espera a liberação para o retorno do jogo. 

Após a bola rolar, o capitão da Seleção Brasileira de Futebol de 5 aguarda pacientemente a chegada de três marcadores argentinos que o rodeiam. Escutando o som da bola, Ricardinho aplica um drible rápido e arremata um chute veloz que delicadamente toca na trave antes de atingir o fundo das redes. O lance fez até o narrador argentino esquecer a eterna rivalidade que separa os dois países e se submeter à grandeza do jogador: “Golaço!” 

Com outro belo gol de Nonato, o Brasil conquistou a sua quinta Copa do Mundo de Futebol de 5 — com um gostinho a mais, já que a vitória veio sobre a rival Argentina. Mas a partida também seria mais um exemplo da trajetória vitoriosa do capitão da seleção, que foi eleito o melhor jogador da competição e saiu como artilheiro com 10 gols marcados. 

Ricardinho entrou em campo com uma máscara, que tinha como objetivo proteger seu nariz fraturado. A lesão aconteceu na vitória sobre a China por 1 a 0, na semifinal do Mundial, devido a uma cotovelada que levou do adversário. Após o jogo, o clima no vestiário não era de um time que havia acabado de chegar na final do Mundial e buscava o pentacampeonato. O clima era de velório.

“Eu lembro que eu cheguei no vestiário, o médico me examinou de uma forma preliminar e disse: ‘Tu fraturou! Só precisa saber como foi e ir ao hospital fazer o raio-X’”, relembra Ricardinho. “Todo mundo achou que eu não ia jogar. Eu tive um estalo e falei: ‘Fiquem tranquilos que eu vou estar na final com vocês, mesmo com o nariz quebrado’”.

O espírito competitivo do atleta não permite que ele se ausente de um jogo decisivo. Para se preservar e evitar dores maiores, o jogador ficou três dias de molho até a decisão.  Chegando a hora, o ala-ofensivo sofreu, já que não conseguia respirar direito, e sabia que um simples esbarrão poderia causar sangramento no nariz. Mas o momento de superação rendeu glórias à seleção, que contou com jogadores ainda mais motivados para a conquista. 

“Vale a pena ser ‘raçudo’”, diz Ricardinho. “Eu sou o capitão da equipe desde 2012 e são nesses atos que precisamos passar firmeza aos outros. Imagina a motivação ao ver seu colega com nariz quebrado entrando em uma final contra a Argentina. Os outros precisam pensar: ‘Eu estou aqui 100%! Vou dar o sangue pelo time, meu colega com nariz quebrado está dando o exemplo.’”

“Não é a toa que é meu capitão”, conta Fábio Vasconcellos. “Um líder no meio do jogo. Acima de tudo é um fenômeno realmente iluminado. Ainda bem que nasceu no Brasil.”

Uma leve pausa e Fábio fala a frase que permite que alguém que nunca acompanhou uma partida de futebol de 5 entenda a real dimensão de quem é Ricardinho: “O Ricardo é o Pelé. Ele é o Pelé.” 

DEPOIS DA COPA DO MUNDO, o Brasil voltou a bater a Argentina em duas finais, contando com o protagonismo de outros atletas. Em 2019, com a Copa América sendo disputada em São Paulo, a seleção aplicou outro 2 a 0, desta vez com Nonato marcando os dois gols do confronto. Na final do Parapan-Americano de Lima, o placar se repetiu, desta vez com gols de Jefinho e Cássio. 

O fixo da seleção lembra da importância do gol marcado no Parapan. “Tínhamos 1 a 0 a favor e faltando cinco minutos eles vinham para cima. O segundo gol deu uma tranquilidade fantástica. Pudemos jogar o final do jogo esperando o tempo passar. Tentando quem sabe um terceiro gol, mas nos cuidando, sem aquela necessidade extrema de atacar e correr riscos”, analisou Cássio. 

O atleta que já foi eleito melhor do mundo em 2016 se destaca atualmente por ser um dos líderes do grupo. Mas, assim como Ricardo, Cássio só veio a sonhar com a Seleção Brasileira de Futebol de 5 quando era um adolescente. 

Nascido na cidade de Ituberá, na Bahia, ele sempre apresentou problemas de visão, e fez uma cirurgia para remover uma catarata quando tinha apenas dois anos de idade. Mais tarde, ele perdeu 100% do funcionamento do olho esquerdo por conta de um acidente, no qual se chocou com a quina de uma mesa. Quando ficou mais velho, começou a demonstrar maior dificuldade para enxergar, sendo obrigado a se aproximar muito dos objetos para identificá-los. Um dos sinais para a família foi a forma como o menino aproximava cada vez mais a cadeira para assistir televisão. 

Apesar de observar as dificuldades que Cássio tinha no dia-a-dia e na sala de aula, a família não tinha auxílio necessário na cidade e só conseguiu ir ao médico em Salvador após cinco anos dos primeiros sinais. Chegando na capital, foi constatado um deslocamento de retina que não podia ser mais tratado e que o deixou totalmente cego aos 14 anos.

A mudança definitiva para Salvador aconteceu em 2003, quando o menino ingressou no Instituto de Cegos da Bahia (ICB) e teve o primeiro contato com o paradesporto. Três anos depois, ele começou a atuar como fixo no time profissional do ICB. O ano de 2008 marcou sua primeira convocação para a seleção, mas é 2011 que o atleta guarda na memória com mais carinho. 

Titular na conquista do Parapan-Americano de Guadalajara, no México, Cássio se estabeleceu de forma absoluta na zaga e conquistou a confiança de seus companheiros de time. O título veio de novo em um jogo contra a Argentina. O Brasil não conseguiu marcar durante o tempo regulamentar e só foi tirar o zero do placar no segundo tempo da prorrogação.

“Eu me sinto muito honrado de participar deste grupo. Como um todo é homogêneo e bem treinado. Isso para mim é mais importante do que ter um ou outro atleta de destaque”, confessa Cássio. A experiência da seleção é extremamente importante, mas o principal segredo para o sucesso é a constante renovação do grupo. 

Ricardinho, que foi eleito melhor jogador do mundo em três oportunidades (2006, 2014 e 2018), ingressou na seleção em 2005. Jefinho, que ganhou o prêmio de melhor do mundo em 2010, chegou ao time em 2006. Gledson vestiu a camisa da equipe pela primeira vez em 2007, Cássio fez sua estreia em 2008 e Nonato entrou no time em 2011.

A nova geração composta por Dumbo, Jardiel e Maicon vem sendo levemente colocada à prova junto de uma revolução tática desenvolvida pelo treinador Fábio Vasconcellos. O ex-goleiro aplicou alguns conceitos tradicionais do futsal: “A gente joga muito em bloco. Na minha equipe eu tenho um conceito de defesa e ataque onde todos participam. Não tem essa coisa de Ricardinho e Jefinho só atacarem ou só marcarem”, contou. 

A revolução dentro da quadra não é a única. Por ter sido jogador, Fábio entende os problemas estruturais que os jogadores enfrentam e, por isso, luta para fornecer condições melhores aos seus atletas. A comissão era composta apenas por três pessoas, com um treinador e dois auxiliares técnico. Desde que entrou na seleção, o comandante conseguiu adicionar um preparador e um fisiologista na equipe, além de constantemente brigar por aumento na premiação.  

“O esporte paralímpico já evoluiu muito, por incrível que pareça”, conta Ricardinho. “A gente sempre que está longe do que deveria ser, mas tínhamos um amadorismo muito grande no esporte paralímpico quando eu comecei. E agora nós temos, por exemplo, uma estrutura melhor e grandes profissionais – principalmente nas seleções. Hoje os atletas podem também se dar ao luxo de viver do esporte, principalmente os da seleção.”

O ANTAGONISMO ENTRE Japão e Brasil não podia ser mais escancarado do que nos Jogos Paralímpicos de Tóquio em 2021. Sem contar com o resultado similar ao dos brasileiros no futebol de 5, o Japão dá uma aula na estrutura que fornece aos deficientes visuais. Quando foram disputar a Copa do Mundo de 2014 no outro lado do planeta, os jogadores da Seleção Brasileira apareceram em uma matéria no Globoesporte sentindo e aproveitando a estrutura de acessibilidade do país asiático. 

“O Japão é o exemplo. É disparado o que está à frente”, afirma Ricardinho. “Na estação de trem, as lixeiras têm braille. Óbvio que eu não entendi nada porque estava em japonês, mas as pessoas lá sabem onde é o lixo seco e o orgânico. Aqui temos ferros para os carros não subirem na calçada, mas lá no Japão os ferros são revestidos de borracha, para quando um deficiente visual bater não se machucar.”

Para a sua pós-carreira, Cássio já começou a desenvolver um projeto no qual pretende lutar pela melhor estrutura disponível para os deficientes visuais. O fixo da seleção prepara a sua candidatura para a Câmara de Vereadores de Ituberá, onde tentará dividir a vida pública com a sua de atleta.  

Enquanto batalham também por uma melhora no investimento do esporte paralímpico, os jogadores e a comissão da seleção sabem que entrarão em 2021 como favoritos e com a torcida já esperando a quinta medalha de ouro. Ainda assim, Fábio está confortável sabendo que a seleção está movida pelo lema: “futebol é jogado dentro de campo”.

“A Seleção Brasileira, em decorrência de tantos títulos que tem conquistado, sempre entra nas competições sendo bastante pressionada, mas a gente sabe lidar bem com isso”, revela Ricardinho. “Muitas pessoas dão a medalha de ouro como certa, mas sabemos que não é assim. O lado emocional da equipe vai estar bem tranquilo, porque sempre lidamos bem com isso.”

“Trabalhamos muito, nos dedicamos bastante e todos sabem o real papel que precisam desempenhar dentro dos Jogos”, garante Cássio. É claro que tem a tensão, a ansiedade, mas a gente tá bem preparado para lidar com isso.”. 

A pandemia da Covid-19 paralisou as competições e fez cada jogador continuar os treinamentos dentro de casa, tendo o acompanhamento da comissão técnica. Mas, enquanto se mantêm isolados e na preparação para os Jogos de Tóquio, cada atleta aproveita para revisitar as medalhas que conquistou e garante: “Nenhuma outra seleção teve o prazer de colocar uma medalha de ouro paraolímpica no peito.”

Por André Martins, Bruno Nossig e Henrique Votto
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