Do digital ao real: como o mundo dos games virou aliado para a inclusão

Por Anderson Lima e Caio César Pereira

Wzy é o nome artístico de Wesley Rios, gamer e dono do canal Blind Kombat  no Youtube. A paixão por videogames era algo que surgiu na infância, num prédio de classe média em que seu pai trabalhava como zelador. Fã de jogos de tiro, começou a ter problemas quando surgiram as dificuldades para mirar. Wzy tinha 17 anos e uveíte, uma complicação que pode causar cegueira. Aos 31, restam-lhe apenas 5% da visão.

A condição alterou a maneira com que ele aproveitava os consoles da época. O gamer precisou partir para outros estilos. “Eu fui forçado a parar com os jogos de tiro e começar com os de luta. Eu pulei de título para título, até conseguir me dar bem no Mortal Kombat. Esse foi o jogo que ‘sobrou’ para mim. Essa foi minha primeira relação com a acessibilidade.”

Wesley Rios, mais conhecido como Wzy [Foto: Acervo Pessoal]
Por muito tempo demonizada, atualmente, os videogames se mostraram como uma indústria muito influente. De acordo com estudo da TechNET Immersive, a indústria de jogos foi avaliada em US$ 163,1 bilhões em 2020, o que coloca a área como mais valiosa do que as indústrias de cinema e música juntas. Para além do valor, entretanto, os videogames hoje se tornaram mais do que uma ferramenta para o lazer e entretenimento. Eles se tornaram um meio para a socialização e o acolhimento.

Tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, o número de pessoas com deficiência que jogam videogames chega a 46 milhões de pessoas. ”No Brasil, a gente tem uma estimativa, da pesquisa  PGB (Pesquisa Games Brasil), cruzada com dados do IBGE, de que em torno de 25 milhões de pessoas com deficiência jogam videogame no Brasil. É muita gente, é quase 15% da população brasileira”, conclui Christian Bernauer, co-fundador e presidente da Ablegamers no Brasil, ONG voltada para acessibilidade em jogos eletrônicos.

“É uma visão minha e uma visão de toda a comunidade, que os jogos são feitos para incluir a galera. É uma válvula muito forte de escape. Eu tenho amigos que não saíam do quarto por conta da deficiência e depressão e que saíram do quarto por causa do videogame”, diz Gabriel Machado, 23, conhecido popularmente na internet como Machadinho, streamer de jogos e uma das principais vozes no que diz respeito a acessibilidade para a comunidade PcD.

Machadinho é portador da doença degenerativa rara conhecida como Atrofia Muscular Espinhal, ou AME, que afeta diretamente os neurônios motores do organismo. Durante a infância, Machadinho teve seu primeiro contato com o mundo dos videogames graças aos irmãos, enquanto jogava com os controles que acompanhavam os consoles como o Nintendo 64, Playstation 2 ou o Xbox. No entanto, conforme a doença progredia, adaptações foram sendo cada vez mais necessárias. “Hoje em dia eu prefiro jogar no teclado de mouse que é uma coisa que eu me sinto mais confortável e que é algo que eu tenho mais adaptabilidade para jogar.”

Gabriel Machado, o Machadinho [Foto: Acervo Pessoal]
Essas adaptações, porém, vão muito além dos controles. Ele comenta que teve dificuldades ao tentar jogar alguns jogos mais antigos como o Assassins Creed, por exemplo, e notou que os recursos de acessibilidade não eram tão vastos quanto os jogos atuais. “Por que o que eu basicamente uso é o mapeamento de teclas. É uma técnica para eu poder conseguir colocar os comandos no meu teclado de uma forma que fique mais acessível para mim. Nem toda produtora oferece esse recurso”. Machadinho também reforça que tem outros tipos de acessibilidade que também não vão ser contemplados em jogos antigos, como recursos para pessoas com daltonismo, baixa visão ou  baixa audição.

“As complicações em torno da acessibilidade em videogames não partem da habilidade do jogador, mas da falta de informação causada pelo não enxergar. Não importa se eu vejo tudo embaçado, o que define as barreiras são quantas informações eu não estou pegando ao enxergar aquilo embaçado”, explica Wzy, 31 anos, dono do canal Blind Kombat, voltado a temas relacionados à acessibilidade em jogos.

Apesar do avanço em termos de acessibilidade, ambos concordam que ainda há muito o que ser feito. Machadinho reforça que é importante e necessário que se ouça cada vez mais voz à comunidade. “Fazer mais questionários, dar mais voz à comunidade PcD. Porque, hoje em dia, tem muito mais incentivo até das próprias empresas”. Um dos exemplos citados por ele, é o controle adaptativo universal, lançado pela Ong Ablegamers em parceria com a Microsoft. Para isso, eles foram em ONGs de pessoas com deficiência no intuito de fazer um estudo da melhor maneira possível de lançar um controle adaptado.

“Se tem que adaptar é que já não foi concebido certo. Ser difícil não deve ser argumento para não fazer nada”, comenta Wzy, ao revelar que a acessibilidade para pessoas com deficiência ainda é vista como uma adaptação, não só na área dos videogames.

Para ele, o principal caminho para uma maior evolução da acessibilidade em jogos passa por inserir pessoas com deficiência desde o começo do desenvolvimento e não depois de já feito. Wzy usa o exemplo da produtora Naughty Dog, que contratou consultores com deficiência visual, auditiva e motora nas etapas iniciais de produção do jogo The Last of Us Part II, de 2020. 

Indústria de milhões, acessibilidade de centavos

Justamente buscando levar a acessibilidade em jogos para uma maior quantidade de pessoas, nasceu a ONG Ablegamers. Criada em 2004, nos Estados Unidos, a Ablegamers é uma instituição que promove a acessibilidade nos videogames. No Brasil, a filial é a primeira ONG aberta fora do território americano e tem o objetivo de combater o isolamento social de pessoas com deficiência por meio dos videogames, fomentando ferramentas mais inclusivas e melhorando a qualidade de vida desses jogadores. 

Para Christian, a acessibilidade nos videogames deve refletir em diferentes aspectos. “Na parte de hardware a Ablegamers trabalha com a doação de controles adaptados, mas não só doação. Tem todo um aconselhamento para as pessoas com deficiência, para que elas descubram e consigam entender qual é o setup, o controle ideal para elas”. 

Essa é justamente uma das questões mais complicadas, porque cada deficiência tem as suas características. A mesma deficiência pode ter graus de evolução diferentes, o que faz com que coisas que funcionam para uma pessoa, não funcionem para outra.

O controle, entretanto, além de resolver alguns tipos de deficiência, só se aplicam no  problema de uma pessoa por vez. Dessa forma, surgiu a necessidade da indústria entender que além dos controles, os jogos também precisavam ter funções de acessibilidade.

Tipo de controle adaptado para jogadores PcDs.

Ao perceber essa lacuna na indústria, a Ablegamers desenvolveu um software gratuito que possibilita a criação de padrões de design acessíveis, ou seja, técnicas de desenvolvimento de jogos com maior acessibilidade, a APX. A já citada produtora Naughty Dog, foi uma das primeiras desenvolvedoras a ter acesso ao software, utilizado na criação do game The Last of Us Part I Remake. 

Felipe Negrão, cofundador da ONG, ressalta, que para além de questões envolvendo hardware e software, a preocupação com a acessibilidade deve também refletir na narrativa. Felipe cita o jogo Gotham Knights, lançado em outubro de 2022, como um exemplo. “A narrativa traz a personagem Barbara Gordon que recebe um tiro do Coringa na coluna. Seria explicado que ela fez fisioterapia e que pela força de vontade, se curou da lesão na coluna. Isso não foi muito bem recebido e com a consultoria da Ablegamers, o background mudou. A acessibilidade envolve muitos detalhes”. Nos quadrinhos, a heroína volta a andar após passar por uma cirurgia neural experimental. 

Wzy, parte dessas 25 milhões de pessoas, acredita que pessoas com deficiência têm mais poder de compra para entretenimento, porque as opções são escassas. “Eu tenho uma gama de atividades muito reduzida para gastar o meu dinheiro, então, às vezes, sobra para comprar outras coisas”, explica.  

Os ganhos com a acessibilidade não são apenas financeiros, mas também nas relações pessoais. Durante uma live em seu canal, Wzy concluiu o jogo The Last of Us Part I Remake e um menino que estava o acompanhando fez um comentário sobre um dos personagens. Devido à ferramenta de audiodescrição disponível, o comunicador conseguiu discordar dele, usando argumentos do que foi ouvido durante todo o jogo. A acessibilidade quebrou a barreira da informação e gerou uma conexão até então inatingível. para Wzy, Machadinho e outros jogadores PcDs, esse é o maior avanço que a indústria de games pode proporcionar.